Opinião

O juiz interamericano e o sistema prisional brasileiro

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12 de maio de 2021, 16h08

Sob o título "Período de pena cumprido em situação degradante deve ser contado em dobro", no último dia 7 a ConJur, com exclusividade, publicou importante notícia sobre a decisão monocrática proferida pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca (STJ) provendo recurso ordinário constitucional em Habeas Corpus para determinar "que se efetue o cômputo em dobro de todo o período em que o paciente cumpriu a pena no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho" (RHC nº 136.961, DJe 30/4/2021).

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O título da matéria não poderia ser outro; colocou em evidência o descalabro da unidade prisional carioca, que, aliás, havia sido alvo de diversas inspeções realizadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos a partir de denúncias da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Essas inspeções, aponta o texto, culminaram com a edição de uma resolução pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 22/11/2018, que "proibiu o ingresso de novos presos na unidade e determinou o cômputo em dobro de cada dia de privação de liberdade cumprido no local", ressalvados os casos de crimes contra a vida ou a integridade física e de crimes sexuais.

É inegável a relevância que o tema prisional tem entre nós pela verdadeira mazela da grande maioria dos estabelecimentos prisionais. Tanto é assim que, ao julgar a ADPF 347, o STF deferiu cautelares diversas, mas gizou que "deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como 'estado de coisas inconstitucional'", pois "há um quadro de violação massiva e persistente de violação de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária". O ministro Luís Roberto Barroso, em outro julgamento, salientou que "mandar uma pessoa para o sistema é submetê-la a uma pena mais grave do que a que lhe foi efetivamente imposta, em razão da violência física, sexual e do alto grau de insalubridade das carceragens, notadamente devido ao grave problema da superlotação" (voto no RE 580.252). O ministro Gilmar Mendes, que ao presidir o CNJ desenvolveu, sem favor nenhum, o maior programa de direitos humanos que o país conheceu em favor dos presos, em histórica entrevista conduzida pela jornalista Mônica Bergamo, em 2013, falava do horror que presenciou em visita a presos em contêineres no estado do Espírito Santo, nos quais os de cima "faziam suas necessidades nos que estavam embaixo". e concluía: "É um quadro de abandono".

A despeito da importância da questão carcerária, está embutida na decisão do ministro Reynaldo um outro tema de igual importância, que é o submetimento do Brasil às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, como observa seu prolator: "A partir do Decreto 4.463, de novembro de 2002, o Brasil submeteu-se à jurisdição contenciosa da Corte IDH e passou a figurar no polo passivo de demandas internacionais, o que resultou em obrigações de ajustes internos para que suas normas pudessem se coadunar com a Convenção Americana de Direitos Humanos" (RHC nº 136.961).

Além do mais, a decisão assume que "as sentenças emitidas pela Corte IDH, por sua vez, têm eficácia vinculante aos Estados que sejam partes processuais…". Indo além, o ministro pontua a imperiosidade da ampliação da proteção dos direitos humanos, "por meio do princípio pro personae, interpretando a sentença da Corte IDH da maneira mais favorável possível aquele que vê seus direitos violados" (grifo do original).

O ponto alto da decisão nessa matéria parece ser o reconhecimento de que as autoridades judiciárias devem exercer o controle de convencionalidade, "observando os efeitos das disposições do diploma internacional e adequando sua estrutura interna para garantir o cumprimento total de suas obrigações frente à comunidade internacional", de modo que os juízes nacionais devam "agir como juízes interamericanos e estabelecer o diálogo entre o direito interno e o direito internacional dos direitos humanos".

Independentemente de se tratar de uma decisão monocrática e sujeita a recurso, aliás já interposto pelo MPF, ela representa um marco em termos do reconhecimento do efeito vinculante das decisões emanadas da Corte IDH e do papel dos nossos juízes na sua implementação. Se pensarmos o contraste que há entre o decidido pelo STF na ADPF 153, proposta pela OAB para rever a Lei da Anistia, e as decisões da Corte IDH em casos de violação de direitos humanos nos quais o Brasil já foi condenado, veremos que a decisão proferida pelo ministro Reynaldo dá uma chacoalhada no padrão vigente de não se exercer o controle de convencionalidade entre nós. Mais do que isso, a decisão está a refletir uma nova mentalidade jurisdicional a arejar o nosso sistema de Justiça.

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