Tribuna da Defensoria

WhatsApp e inclusão digital: uma saída para as Defensorias Públicas

Autores

  • Júlio de Camargo Azevedo

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) defensor público no Estado de São Paulo coordenador do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da Defensoria Pública de São Paulo (GEDPC-DPSP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro de Estudos Avançados em Processo (Ceapro) e pesquisador no Global Access to Justice Project.

  • Giovani Ravagnani

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Gestão de Negócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (ESALQ-USP) membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual head of Legal da Buser e coordenador dos Livros "O Advogado do Amanhã" e "Direito Processo e Tecnologia".

11 de maio de 2021, 8h01

Para conter a propagação da Covid-19 e diminuir o contato social, as repartições públicas foram obrigadas a mudar sua rotina de trabalho, fechando as portas físicas e privilegiando o atendimento virtual aos cidadãos.

Todavia, a inevitabilidade do isolamento social e a dinâmica de desmaterialização do acesso aos serviços públicos trouxeram novas adversidades para uma parcela da população, que passou a sofrer com a ausência do acesso à tecnologia (exemplo: aparelhos de telefonia ultrapassados) ou com a precariedade do acesso à internet (exemplo: pacote insuficiente de dados), havendo ainda aqueles que, embora possuam acesso à tecnologia e à internet, carecem de capacitação tecnológica para o exercício da cidadania digital.

Estudo divulgado em 2019 pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), em parceria com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), ilustra que 20% da população paulista cerca de 7,5 milhões de pessoas nunca acessou a internet [1]. Ainda de acordo com a levantamento realizado pelo Sesc São Paulo e pela Fundação Perseu Abramo, apenas 19% dos idosos maiores de 60 anos fazem uso efetivo da rede mundial de computadores [2]. Esses dados revelam que o Brasil ainda possui um grande contingente de pessoas excluídas digitalmente.

A jornada dos brasileiros para saque do auxílio-emergencial consubstancia outro exemplo sintomático da vulnerabilidade digital. Durante a pandemia, diversas famílias suportaram dificuldades para confirmar o direito ao benefício, uma vez que as listas de beneficiários foram disponibilizadas apenas na rede mundial de computadores, enquanto o aplicativo Caixa Tem constituiu o canal oficial para a obtenção de valores diante da indisponibilidade das agências físicas. No âmbito da Seguridade Social, igualmente, pessoas enfermas enfrentaram dificuldades para ingressar com os pedidos de auxílio-doença, feitos unicamente por meio do aplicativo Meu INSS durante o fechamento das agências.

Outro problema pouco discutido, mas bastante presente no cotidiano da população vulnerável, refere-se à baixa capacitação tecnológica para operar as ferramentas digitais. Como divulgado pela grande mídia, novidades como a leitura de QR Codes para fins de transferências e pagamentos constituíram barreira para muitos brasileiros, seja pela falta de acesso à ferramenta, seja pela incompreensão acerca de seu funcionamento [3].

Todos esses exemplos evidenciam que a migração dos serviços públicos para o ambiente virtual aponta para a erupção de uma nova barreira ao acesso da população vulnerável à Justiça.

Não foi diferente com os serviços de assistência jurídica. Conforme pesquisa levada a efeito pelo Global Access to Justice Project em mais de 50 nações [4], 72% dos sistemas de assistência jurídica de diferentes países adotaram medidas para mitigar o impacto da Covid-19, observando-se em 53% dos países a opção pelo trabalho remoto e em outros 47% a suspensão temporária do atendimento presencial.

As medidas de isolamento social também impulsionaram o uso da tecnologia, sendo representativo que 71% dos países passaram a realizar atendimentos via e-mails (53%) ou telefones celulares (49%), enquanto meios tecnológicos mais modernos como a videoconferência (35%), os sistemas digitais de autoajuda (12%) e os sistemas de mediação online (8%) permaneceram pouco difundidos no âmbito jurídico-assistencial.

No Brasil, igualmente, os serviços de assistência jurídica migraram em sua grande maioria do modelo de atendimento físico para o modelo virtual, valendo-se majoritariamente do atendimento via e-mails, aparelhos de telefone celular, call-centers e plataformas digitais de comunicação.

Considerado um dos principais cases de sucesso, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro lançou em outubro de 2020 um aplicativo institucional voltado a franquear o atendimento de usuários. O aplicativo já conta com mais de cem mil downloads nas lojas virtuais, 79 mil cadastramentos de usuários e cerca de 40 mil atendimentos, 77 mil agendamentos e 25 mil casos iniciados. Segundo noticiado, as demandas mais atendidas foram pensões alimentícias para filhos, oferta de alimentos e divórcio consensual. O aplicativo ainda possibilita o agendamento de atendimentos remotos e presenciais; o encaminhamento de documentações; consulta, remarcação e cancelamento de agendamentos; interação entre os usuários e a instituição; além de informação sobre processos [5].

A excelente iniciativa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que merece todo o reconhecimento, constitui uma saída palpável para a democratização do acesso à Justiça prestado pelos serviços de assistência jurídica nestes novos tempos, sendo bem provável que no período pós-pandêmico as instituições mantenham grande parte dos atendimentos no ambiente digital, adotando um sistema híbrido de acesso.

Contudo, uma série de problemas podem vir associados à proliferação de inúmeros aplicativos institucionais para a prestação do serviço de assistência jurídica. Neste passo, a acessibilidade, a operabilidade e a adaptação do usuário às diferentes interfaces e sistemas tecnológicos podem restar comprometidas, especialmente quando pensadas sob a lógica de um público ainda carente de adequada capacitação tecnológica.

Uma alternativa possível para maximizar os resultados da inclusão digital seria a criação de um canal próprio de atendimento institucional via WhatsApp — o aplicativo de comunicação virtual mais popular no país.

Vale lembrar que, desde agosto de 2018, o Whatsapp abriu sua API (acrônimo em inglês que significa interface de programação de aplicações) para que empresas e instituições públicas pudessem utilizá-lo como canal oficial de comunicação com a população.

Afigura-se possível, portanto, que cada Defensoria Pública integre tecnologicamente seu sistema interno de atendimento e gestão com o sistema do WhatsApp, ampliando o acesso e as chances de adaptação virtual de seu público alvo.

Assim, "do lado de fora", o cidadão visualizaria a interface do WhatsApp, canal que centralizaria suas comunicações e mensagens com maior operabilidade e facilidade; já "do lado de dentro", estagiários, servidores e Defensores Públicos lidariam com os mesmos sistemas internos com os quais estão acostumados, sem necessitar vincular um novo aparelho de telefonia celular para contato com o público exterior. Seria como vestir o sistema interno das Defensorias Públicas com as roupas externas do Whatsapp, facilitando, assim, a interlocução digital.

Esse mecanismo já é comumente utilizado por grandes corporações em seus callcenters, em que atendentes e operadores utilizam softwares próprios de gestão e atendimento, tecnologicamente integrados com o WhatsApp, que passa a figurar como a porta de entrada para a comunicação com os consumidores.

Nesses ambientes, não se afigura necessário que cada um dos milhares de atendentes opere por meio de aparelhos corporativos individuais, o que seria inviável, ineficiente e improdutivo também às empresas. Os softwares próprios de gestão operam independentemente e são imprescindíveis para esta finalidade, bastando estarem integrados ao sistema do aplicativo WhatsApp.

Ainda que seja necessário debater eventuais medidas de privacidade da aplicação [6] no âmbito das Defensorias Públicas, é indiscutível que o uso do WhatsApp atingiria um número maior de cidadãos, considerando estar o aplicativo presente em 99% dos celulares brasileiros [7][8].

Nesse prisma, as Defensorias Públicas poderiam utilizar o WhatsApp como canal oficial ou mesmo alternativo de atendimento virtual dos cidadãos, potencializando a acessibilidade, a operabilidade e a adaptação dos usuários já habituados ao aplicativo, facilitando o sistema de comunicação institucional e a prestação do serviço de assistência jurídica.

Certamente, a proposta apresentada não erradica a barreira crônica da exclusão digital no Brasil. Todavia, não deixa de ser uma medida simples, eficiente e propositiva de superar parcela dos problemas atrelados à vulnerabilidade digital, tais como a falta de espaço de armazenamento nos aparelhos celulares e a falta de internet rápida, considerando que grande parte dos pacotes de telefonia atualmente existentes oferecem pacotes ilimitados de dados para o aplicativo WhatsApp de forma gratuita à população.

É importante que se diga que o WhatsApp não será eterno. Em breve a ferramenta se tornará obsoleta e outra a substituirá, assim como foi com o ICQ, MSN, Orkut etc. O mundo da tecnologia tem dessas coisas. Enquanto isso não ocorre, entretanto, legítimo pensar que o aplicativo poderia constituir um importante aliado na democratização do acesso à justiça, favorecendo a inclusão digital dos mais vulneráveis.

 


[4] O estudo completo está disponível no site do Global Access to Justice Project: PATERSON, Alan. BARLOW, Anna. GARTH, Bryant. ALVES, Cleber. ESTEVES, Diogo. JOHNSON, Earl. SILVA, Franklyn Roger Alves. AZEVEDO, Júlio. ECONOMIDES, Kim. BIGGELAAR, Peter. Impactos do COVID-19 nos Sistemas de Justiça. Global Access to Justice Project, 2020. Disponível em: http://globalaccesstojustice.com/impacts-of-covid-19/ Acesso em: 10 de maio de 2021.

[5] Fonte: perfil do LinkedIn do Defensor Geral da Defensoria Pública Carioca, https://www.linkedin.com/posts/rodrigo-baptista-pacheco-307928b0_o-aplicativo-defensoria-rj-ultrapassou-activity-6772612222523990016-RH-h, acesso em 04 de maio de 2021, às 20h48min.

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  • é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), defensor público no Estado de São Paulo, coordenador do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da Defensoria Pública de São Paulo (GEDPC-DPSP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro de Estudos Avançados em Processo (Ceapro) e pesquisador no Global Access to Justice Project.

  • é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Gestão de Negócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (ESALQ-USP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, head of Legal da Buser e coordenador dos Livros "O Advogado do Amanhã" e "Direito, Processo e Tecnologia".

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