Paradoxo da Corte

Relevância do voto vencido para fins de prequestionamento

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

11 de maio de 2021, 8h02

Recordo-me das aulas de Direito Processual Civil do saudoso professor Antonio Carlos de Araújo Cintra, quando afirmava que o voto vencido era considerado "estéril", visto que de nada servia, seja para produzir algum efeito, seja para evidenciar o prequestionamento.

A rigor, para que se configure um dos principais requisitos de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial, qual seja o prequestionamento da questão ou das questões que constituem o objeto da impugnação, não é suficiente que tenham elas sido suscitadas pelo recorrente, no diálogo estabelecido no contraditório travado entre as partes, mas é essencial que a matéria tenha sido explicitamente enfrentada na decisão recorrida, não se exigindo, contudo, que haja expressa menção ao fundamento legal.

Dito de outra forma: para que a matéria possa ser considerada prequestionada, há que se extrair do acórdão recorrido pronunciamento sobre as teses jurídicas em torno dos dispositivos legais tidos como violados, a fim de que se possa, na instância especial, abrir discussão sobre determinada questão de direito, definindo-se, por conseguinte, a correta interpretação, respectivamente, da legislação constitucional ou federal. Considere-se, a propósito, o enunciado da súmula 211/STJ: "Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo".

Partindo-se dessa premissa, bem é de ver que, sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, sedimentou-se a orientação nos domínios dos tribunais superiores de que a matéria de direito decidida apenas no voto vencido não se prestava a preencher a exigência do prequestionamento para autorizar a admissibilidade do recurso. Em tal situação, visando a que a maioria vencedora enfrentasse a questão controvertida, tentava-se por meio da oposição de embargos de declaração o suprimento da respectiva omissão, na certeza de que, na maioria das vezes, eram eles rejeitados — por paradoxal que possa parecer —, inclusive pelo julgador que declarara o voto vencido.

Entre tantos precedentes, invoco, nesse sentido, o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 682.486/DF, julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal e relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski, textual:

"O presquestionamento requer que, na decisão impugnada, haja sido adotada explicitamente a tese sobre a matéria do recurso extraordinário.
Se, no acórdão recorrido, apenas o voto vencido, isoladamente, tratou do tema constitucional suscitado no recurso extraordinário, não se tem por configurado o prequestionamento".

Assim também, nos termos da jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, sob a vigência do velho Código de Processo Civil, não bastava que a questão, tida como fundamento do recurso especial, tivesse sido focada apenas no voto vencido, dada a inafastável necessidade de observância da súmula 320/STJ, segundo a qual: "A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento" (v., e. g., STJ, AgRg no REsp 761.245/SP, relator ministra Denise Arruda, 1ª Turma, DJe 29.04.2009; REsp 1.174.026/RS, relator ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, DJe 3/4/2012).

Cumpre-me observar que essa sistemática veio substancialmente alterada no vigente Código de Processo Civil. Dispõe, com efeito, o artigo 941, parágrafo 3º, do nosso atual diploma processual, que:

"Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acóro o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor (…).
§3º. O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de prequestionamento".

Diante da clara redação desta regra legal, o voto vencido, considerado "parte integrante" do julgado, passa destarte a produzir "todos" os efeitos em absoluta simetria com o voto subscrito pela maioria da turma julgadora (v., a respeito, Guilherme J. Sokal, "A nova ordem dos processos no tribunal: colegialidade e garantias no CPC/15", Migalhas, 8/5/2021).

E assim, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, o Superior Tribunal de Justiça, acerca dessa questão, tem recorrido ao princípio tempus regit actum para delimitar a incidência do disposto no parágrafo 3º do artigo 941, acima transcrito, como se infere, por exemplo, do julgamento da 4ª Turma no Agravo Interno no Recurso Especial 1.330.301/MG, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, que decidiu o seguinte:

"Apesar de o artigo 941, parágrafo 3°, do NCPC ter estabelecido que o voto vencido pode ser considerado parte integrante do acórdão para todos os fins, inclusive para o prequestionamento em relação à questão federal nele suscitada, tal dispositivo não pode ser utilizado no presente julgamento. Isso porque o especial foi interposto em 2009, ainda na égide do CPC/1973 e sob os ditames da Súmula 320 do STJ ('A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento…')".

Em idêntico sentido, recente precedente da 6ª Turma, no agravo interno no Agravo em Recurso Especial 759.307/PR, relatado pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro, aplicou o enunciado súmula 320/STJ ao assentar que: "Não é possível superar esse óbice sob a alegação de que a matéria foi discutida no voto vencido, uma vez que o recurso foi interposto contra acórdão publicado anteriormente à entrada em vigor do atual Código de Processo Civil" (ver ainda, em senso análogo, AgInt no AREsp 1.006.745/RJ, 3ª Turma, relator ministro Moura Ribeiro).

Não obstante, com o novo regime introduzido pelo Código de Processo Civil em vigor, outorga-se ao voto vencido a mesma posição desfrutada pelo acórdão subscrito pela maioria da turma julgadora, como, aliás, frisado no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1.501.406/SC, da relatoria do ministro Francisco Falcão, in verbis:

"Recorde-se que, à luz do disposto no artigo 941, § 3º, do CPC/2015, 'o voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de préquestionamento'. Ou seja, as descrões de fato expostas, no voto vencedor ou vencido, podem ser tomadas em conta para o julgamento do recurso especial; o enfrentamento da questão federal sob a perspectiva do voto-vencido prequestiona a matéria e viabiliza sua análise nas instâncias especiais" (ver, mutatis mutandis, AgRg nos EDcl no REsp 1.834.872/RS, relator ministro Ribeiro Dantas,Turma, DJe 16/12/2019; AgInt no REsp 1.330.301/MG, relator ministro Luis Felipe Saloo,Turma, DJe 1/8/2018).

É de concluir-se que pela relevância atribuída ao voto vencido, como elemento integrativo do acórdão para todos os fins de direito, deve ser ele necessariamente declarado, sob pena de a decisão colegiada ser considerada nula.

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