Opinião

Ainda é possível falar em culpa no Direito de Família?

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11 de maio de 2021, 6h35

O debate sobre a culpa no ordenamento jurídico brasileiro sofreu uma decadência ao longo do tempo. Na década de 70 ainda era relevante discutir nos autos da separação de quem era a culpa pelo fim do casamento, tanto é que para a propositura da ação o "autor precisava apontar o réu como culpado, indicando os motivos do pedido de separação" [1], que poderiam variar entre adultério, abandono do lar, conduta desonrosa, entre outros motivos que derivam única e exclusivamente do fim do afeto.

Nota-se que, ao trazer esse tipo de conteúdo para o processo, este se tornava um instrumento de degradação da vida íntima do casal e da privacidade, uma vez que para convencer o magistrado da culpa do outro cônjuge pelo fim da união, questões que foram vividas a dois precisam ser publicizadas.

E, nesse cenário, o debate da culpa era levado em consideração na Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) como elemento essencial para (in)deferimento dos alimentos ao ex-cônjuge, como é possível observar nos artigos 19 a 23 da Lei 6.515/1977. Tais artigos determinam que o cônjuge que fosse declarado culpado estaria impedido de pleitear alimentos do cônjuge inocente, entretanto, o inocente poderia pleitear do culpado, desde que respeitado o binômio necessidade e possibilidade.

Ocorre que, com o Código Civil de 2002, a discussão da culpa no fim do casamento passou a ser dispensada se um dos cônjuges separados judicialmente viesse a necessitar de alimentos para a subsistência, e não tivesse parentes em condição de prestá-los e nem aptidão ao trabalho, conforme se observar no artigo 1.694, parágrafo 2º, e no artigo 1.704, parágrafo único, da mesma codificação.

O debate acerca da culpa pelo fim do casamento se tornou ainda mais enfraquecido com a Emenda Constitucional 66/2010, que modificou a redação do artigo 226, §6º, da Constituição Federal de maneira a extinguir todos os requisitos anteriormente apresentados para a dissolução do casamento, o que levantou a dúvida acerca da manutenção, ou não, dos artigos 1.694, parágrafo 2º, e artigo 1.704 do Código Civil.

Para explicação dessa dúvida os doutrinadores se dividem em três posicionamentos, sendo que o primeiro deles afirma que diante da total impossibilidade de discutir culpa no casamento, após a Emenda Constitucional 66/2010, os artigos supramencionados estariam revogados. Esse é o entendimento de Rodrigo da Cunha Pereira, que defende que a questão alimentar deve ficar centrada apenas em seus pressupostos autênticos e essenciais, ou seja, o binômio necessidade e possibilidade [2].

Já para a segunda corrente, não é possível afirmar que os artigos 1.694, §2º, e artigo 1.704 do Código Civil foram revogados com a emenda, uma vez que ainda seria juridicamente possível discutir a culpa em ação autônoma de alimentos. Esse é o entendimento de José Fernando Simão que afirma que "A culpa será debatida no locus adequado em que surtirá efeitos: a ação autônoma de alimentos ou eventual ação de indenização promovida pelo cônjuge que sofreu danos morais ou estéticos" [3].

Para a terceira corrente é possível discutir a culpa tanto nas ações de divórcio quanto nas ações de alimento, podendo a obrigação alimentar ser definida em demanda própria ou nos autos do divórcio, que é defendida por Flavio Tartuce [4]. Para o autor, não há de se falar na revogação dos artigos supramencionados.

Com o máximo respeito a todos os autores, a corrente que parece ser a mais acertada, segundos os princípios da solidariedade e dignidade humana que permeiam o Direito de Família, é a que sustenta a irrelevância do debate da culpa na fixação dos alimentos. Isso porque os alimentos não devem ser fixados levando em consideração a culpa do cônjuge pelo fim do casamento, e, sim, a sua necessidade em recebê-los, de maneira a garantir a dignidade e subsistência do alimentado.

 


[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p 315.

[2] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Divórcio: teoria e prática. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010. p. 120

[3] SIMÃO, José Fernando Simão. A PEC do divórcio e a Culpa: Impossibilidade. IBDFAM. 09 julho 2010. Disponível em: < https://ibdfam.org.br/artigos/627/A+PEC+do+Div%C3%B3rcio+e+a+Culpa%3A+Impossibilidade > Acesso em: 05 maio 2021.

[4] TARTUCE, Flavio. Direito Civil: direito de família. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. Pag 334.

Autores

  • é advogada sócia do escritório Lyra Duque Advogados, pós-graduanda em família e sucessões pela EPD, membro e pesquisadora no Grupo de pesquisa "Planejamento patrimonial" da Faculdade Milton Campos.

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