Opinião

O acesso à Justiça para as mulheres e o protagonismo do CNJ

Autores

  • Camilo Zufelato

    é professor de graduação e de pós-graduação da FDRP-USP mestre em Master Universitario II Livello - Università degli Studi di Roma Tor Vergata e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco) e coordenador do Observatório Brasileiro de IRDRs da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

  • Daniele Mendes de Melo

    é mestranda da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) é juíza de Direito e coordenadora do Anexo de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Bauru/SP.

11 de maio de 2021, 12h06

O acesso das mulheres ao sistema de Justiça é uma via de mão dupla. Apenas se completa com uma resposta sensível (output) às demandas buscadas (input). A inter-relação dos dois componentes  de entrada e de saída  garantirá a boa qualidade do sistema de Justiça, de acordo com a interpretação dispensada aos tratados internacionais assinados pelo Brasil  [1]. Nesse passo, recentes normatizações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trazem contribuição decisiva para a ampliação numérica e qualitativa das medidas protetivas de urgência buscadas pelas mulheres em situação de violência.

A recente Lei nº 14.149, em vigência desde a última quinta-feira (6/5), implantou em todo o país o Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FNAV) de mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A partir de modelo previamente implementado por resolução conjunta do Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público nº 5/2020, a nova lei incorpora um questionário de 27 perguntas que mapeiam o risco ao qual a mulher está sujeita. Além de classificar a gravidade de risco, avalia as condições físicas e emocionais da mulher para permitir uma pronta intervenção do sistema de Justiça. Ao comparecer à delegacia ou ao Poder Judiciário, a mulher preencherá o formulário, que pode ser compartilhado com outros órgãos que compõem a rede de prevenção e enfrentamento à violência. Outro benefício da nova medida, portanto, é evitar a revitimização, com a repetição da violência sofrida pela mulher.

O protagonismo do Conselho Nacional de Justiça, que antes da edição da lei já havia disciplinado a adoção do formulário por tribunais de todo o país, com base em modelos internacionais, foi fundamental para essa conquista. Assim como essa, outras normatizações do CNJ também têm contribuído para abrir o caminho das mulheres a uma justiça mais inclusiva.

Com a finalidade de registrar as medidas protetivas de urgência concedidas pelos juízes, o CNJ desenvolveu um Banco Nacional de Medidas Protetivas de Urgência (BNMPU). Através da Resolução nº 342, de 9/9/20, com o acréscimo trazido pela Resolução nº 352, de 5/11/20, o CNJ colocou em prática a previsão do artigo 38-A, da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Esse banco de dados permitirá a produção de estatísticas das medidas de proteção concedidas às mulheres em situação de violência de todo o país. Possibilitará, ainda, amplo acesso do Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de segurança pública e de assistência social, favorecendo a fiscalização e a efetividade das medidas de segurança previstas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei Maria da Penha.

O CNJ também dispôs sobre a capacitação em gênero de magistradas e magistrados que atuam ou venham a atuar em varas com competência para aplicar a Lei nº 11.340/06. A Recomendação nº 79, de 8/11/20, com a nova redação dada pela Recomendação nº 82, de 16/11/20, está inserida em uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário.

A Resolução nº 342/20, a Recomendação nº 79/20 e a Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 5/2020 (agora implementada por lei) dialogam entre si para a execução de políticas judiciárias em benefício de toda a sociedade. Ao imprimir agilidade e amplo conhecimento da realidade das mulheres que buscam uma medida de proteção, amplia-se o próprio acesso à Justiça justamente para aquelas que se encontram em posição de maior vulnerabilidade em razão da violência. 

A despeito da questão de a violência de gênero ter ingressado na agenda-setting das redes de comunicação de massa e ter se tornado assunto frequente de projetos de lei de autoria de congressistas de diferentes matizes ideológicas, pesquisas mostram elevado número de feminicídios e uma baixa procura por atendimentos pelas mulheres que sofrem violência.

Em 2018, uma mulher foi assassinada a cada duas horas no Brasil. O marcador racial considerado na pesquisa também gera preocupação. Considerando a década de 2008 a 2018, embora a taxa de homicídios entre mulheres não negras tenha caído 11,7%, a taxa entre mulheres negras sofreu aumento de 12,4% [2]. O recrudescimento da pena do homicídio, a partir do acréscimo da qualificadora do feminicídio (assim considerado o delito praticado contra mulheres em razão da condição do sexo feminino), em 2015, parece não ter revertido esse quadro de forma significativa.

De outro lado, apesar dos avanços no enfrentamento à violência contra as mulheres trazidos pela Lei Maria da Penha, publicada em 2006, a permeabilidade da legislação protetiva no meio social ainda se mostra incipiente. A conduta refratária da mulher em procurar ajuda pôde ser observada na comparação das pesquisas bienais realizadas de 2013 a 2019 pelo Instituto DataSenado. À pergunta "qual foi sua atitude em relação à última agressão?", houve aumento das respostas "não fez nada": 15% em 2013; 21% em 2015; 27% em 2017; e 31% em 2019 [3].

Uma vez que das respostas das entrevistadas não é possível extrair o motivo da conduta omissiva, mantém-se oculto o próprio conhecimento, pelas mulheres, da existência de políticas públicas ou das medidas protetivas de urgência. Sobre o conhecimento dos serviços de proteção às mulheres prestados pela Delegacia de Defesa da Mulher, Defensoria Pública, Casa Abrigo e Casa da Mulher Brasileira, que poderiam contribuir diretamente para fazer chegar as informações às mulheres sobre medidas protetivas e abrigamentos nas situações de violência doméstica e familiar, ainda é grande a desinformação. Entre as entrevistadas, a Delegacia de Defesa da Mulher ainda é o órgão mais conhecido (78%), sendo seguido pela Defensoria (52%), Casa Abrigo (47%) e Casa da Mulher Brasileira (37%). Sobre outros serviços voltados à proteção da mulher, afora os nominados, apenas 4% declararam conhecer ou já ter ouvido falar. A desinformação prevaleceu, entre as entrevistas, relativamente aos serviços disponibilizados pela Casa Abrigo (53%) e pela Casa da Mulher Brasileira (62%). Quanto à Defensoria Pública, apenas cinco pontos percentuais superaram o conhecimento dos serviços do não conhecimento na amostra colhida (47%) [4].

O resultado das pesquisas citadas remete, portanto, à necessidade de investigação sobre o não acesso a políticas públicas e ao sistema de justiça. Tratam-se de instrumentais disponibilizados pelo Estado para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Conhecimento e acesso a esses órgãos públicos constituem, em última instância, acesso à cidadania. A redução da desigualdade de gênero, portanto, deve estar ancorada em uma agenda de cidadania social.

A violência doméstica e familiar constitui uma violação aos direitos humanos baseada no gênero. Isso significa que "a violência é dirigida contra uma mulher porque ela é mulher ou que afeta as mulheres desproporcionadamente" [5]. Conforme explica a autora Joan Scott [6], a mulher ocupa um lugar de subordinação em relação ao homem em decorrência de complexas interações humanas que ocorrem no meio social e político. Sob a perspectiva de gênero, as medidas delineadas pelo CNJ poderão ampliar as percepções dos julgadores para as desigualdades vivenciadas pelas mulheres que postulam a proteção do Estado. O uso dessa nova lente na recepção dos pedidos permitirá às juízas e juízes compreender que a violência de gênero é produto de uma construção de determinada época, lugar e cultura.

Os efeitos dessa desigualdade reprodutora da violência, no entanto, recairão sobre as mulheres em momentos, formas e intensidades diferentes. A Convenção de Belém do Pará, assinada pelo Brasil em 1995, reconhece no artigo 9º que algumas situações colocam as mulheres em condição de maior vulnerabilidade [7]. Marcadores sociais de raça, etnia, origem, idade, classe social, orientação sexual, deficiências etc. apresentam-se em contextos variados na vida das mulheres, às vezes de modo entrecruzado. Como, então, fornecer um instrumento de proteção eficiente diante de tantas formas e circunstâncias em que se apresenta a violência?

A lógica do modelo universal deve ser invertida. Ao invés da mulher adequar-se a um padrão generalizado de atendimento, este é que deverá ser adaptado às mulheres em situação de violência. Essa perspectiva interseccional de gênero, prevista nas convenções internacionais de proteção às mulheres, constitui-se em importante mecanismo de ampliação de acesso à Justiça. Desse modo, para uma medida cautelar cumprir sua função protetiva, deverá moldar-se aos contextos em que a violência se instalou e às características particulares da vítima.

A capacitação em direitos fundamentais, sob a perspectiva de gênero, recomendada às juízas e juízes que venham a atuar em questões afetas à Lei Maria da Penha, amplia o ângulo de abertura na recepção desses pleitos. Um movimento amplificador de demandas com um resultado sensível ao gênero é esperado dessa maior permeabilidade dos pedidos urgentes junto ao sistema de Justiça.

Mais do que nunca a compilação das medidas protetivas em um banco nacional é tarefa premente. Tal catalogação não prescinde, contudo, da desagregação de dados por classe e raça ou etnia, idade, deficiências, número de filhos, orientação sexual, origem regional, entre outros. A base de dados permitirá a compreensão do problema da desigualdade e da maior vulnerabilidade da mulher, local e regionalmente. Também propiciará o aperfeiçoamento do monitoramento das cautelares concedidas com vistas à sua efetividade.

Ao redesenhar a rota de acesso das mulheres ao sistema de justiça, o CNJ irá se deparar com dois obstáculos. O primeiro é a adesão dos tribunais, responsáveis por alimentar o banco de dados de medidas protetivas de modo padronizado. Somente a padronização pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de justiça e para o desenho e implementação de políticas públicas. O segundo é atingir a capilaridade na capacitação das juízas e juízes mediante um ato não impositivo (recomendação). Esse obstáculo desdobra-se em outro: a extensão da transversalidade da capacitação para outros julgadores que não atuam nas varas especializadas, mas lidam com gênero no fazer jurisdicional.

Dois desafios também se delineiam para o futuro. Um deles é a adoção dos protocolos para a tomada de decisão em questões de gênero. Questões objetivas utilizadas nos protocolos conduziriam juízas e juízes para as particularidades de cada caso sob uma abordagem interseccional de gênero. A subjetividade do julgador cederia espaço para saberes sedimentados, hábeis a alcançar as singulares experiências de vida de cada mulher. Esses passos convergiriam para o maior de todos os desafios do CNJ: a criação de um observatório nacional de gênero. Dados globais e padronizados permitiriam captar a violência e a desigualdade de gênero para uma comparação avaliativa temporal e compartimentada por regiões do país. Com diagnósticos, indicadores e informação, estudos e pesquisas ganhariam profundidade para dar suporte e incorporar políticas públicas de gênero. Estas espelhariam realidades locais e atenderiam a pluralidade de identidades sociais que delas dependem para o pleno acesso à cidadania e a uma vida livre de violência.

O acesso à Justiça das mulheres certamente será ampliado com os novos dormentes fixados pelo CNJ ao trilho do enfrentamento à violência. E a responsabilidade por acionar a chave conversora para o percurso ora delineado recai sobre os tribunais.

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[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Recomendação Geral n. 33 do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. [S.l.]: CEDAW, 2015a. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Pdf/Comesp/Convencoes/CedawRecomendacaoGeral33.pdf Acesso em 08/05/2021.

[2] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020. Brasília, DF: IPEA, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020 Acesso em 08/05/2021.

[3] INSTITUTO DE PESQUISA DATASENADO. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/violencia-contra-a-mulher-agressoes-cometidas-por-2018ex2019-aumentam-quase-3-vezes-em-8-anos-1 Acesso em 08/05/2021.

[4] Idem, ibidem.

[5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Recomendação Geral nº 19 do Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, [S.l]: 1992. Disponível em: https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2020/04/Recomendac%CC%A7a%CC%83o-19-CEDAW-1.2.pdf Acesso em 08/05/2021.

[6] SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 20, nº 2, 1995, p. 71-99. Disponível em https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 Acesso em 08/05/2021.

[7] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher. Belém: CIDH, 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm Acesso em 08/05/2021.

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