Opinião

O contrato entre União e Pfizer sob a ótica do Direito Internacional Privado

Autores

  • Joyce Dias

    é mestre em Direito Internacional pela Universidade de Cambridge (Shell Centenary Scholarship) advogada no Brasil em Portugal e na Holanda sócia-fundadora do escritório Joyce Dias Advocacia. Atuou como law clerk na Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) na Haia e no Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association em Londres.

  • Amanda de Moura Cañizo

    é acadêmica do sexto semestre de Direito no Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) bolsista de Iniciação Científica (Proic/2021) na linha de Direito Internacional e estagiária jurídica na Joyce Dias Advocacia.

10 de maio de 2021, 9h11

A necessidade e a urgência na compra de vacinas contra a Covid-19 pelo governo brasileiro permitiram a criação de um contrato histórico no contexto do Direito Administrativo pátrio e do Direito Internacional, seja no tocante ao método de solução de controvérsias e ao foro competente, à lei aplicável, ao idioma e à cláusula de confidencialidade, até às renúncias às imunidades de jurisdição e execução.

Esse contrato histórico, assinado em 15 de março deste ano, foi celebrado entre a União e a empresa norte-americana Pfizer, por intermédio de sua filial holandesa (Pfizer Export B.V.), para a compra de cem milhões de doses de vacina contra a Covid-19 [1]. A princípio, o contrato não poderia ser divulgado, mas dias após a assinatura, o governo brasileiro alegadamente violou a cláusula de confidencialidade e publicou seu inteiro teor no site do Ministério da Saúde [2]. Mesmo após a retirada do documento da página, alguns sites de notícias ainda o disponibilizam na íntegra [3].

Com a divulgação do contrato, é possível verificar que a União e a Pfizer optaram por arbitragem, com sede em Nova York, conduzida no idioma inglês, preservando-se a confidencialidade de todo o procedimento. As partes acordaram que a lei aplicável será a lei do Estado de Nova York, ressalvado que qualquer disputa relativa à arbitrariedade ou ao escopo e aplicação da cláusula de lei aplicável será regida pela Lei de Arbitragem Federal dos Estados Unidos.

Ainda merece destaque o fato de que a União, como compradora, renunciou expressa e irrevogavelmente qualquer imunidade contra citação, de jurisdição, contra julgamento proferido por uma corte ou tribunal, contra decisão executória e contra apreensão cautelar de quaisquer de seus ativos.

Essas cláusulas são intrínsecas ao Direito Internacional Privado e ao Direito do Comércio Internacional quando se discutem contratos internacionais. No caso em questão, não há dúvida que se trata de um contrato internacional, já que uma das partes é a empresa norte-americana Pfizer, por intermédio de sua filial com sede na Holanda, e outra parte é a União. Considerando ainda que a relação é entre um ente público e uma empresa privada estrangeira, o referido instrumento pode então ser caracterizado como um contrato administrativo internacional.

Nesse contexto, além das regras de Direito Internacional Privado, faz-se necessária a análise das regras do Direito Administrativo pátrio, especialmente a respeito dos limites do ente público, no caso, da União, na celebração de um contrato com uma empresa privada estrangeira.

O contrato em análise foi assinado com fundamento na Lei nº 14.124, de 10/3/2021, que autorizou a Administração Pública a celebrar contratos, com dispensa de licitação, para a aquisição de vacinas contra a Covid-19. Por conta da situação de emergência em saúde pública, o artigo 12 da referida lei determinou ainda que o contrato pode inclusive estabelecer cláusulas especiais, desde que represente condição indispensável para obter o bem, tais como: 1) eventual pagamento antecipado, inclusive com a possibilidade de perda do valor antecipado; 2) hipóteses de não imposição de penalidade à contratada; e 3) outras condições indispensáveis devidamente fundamentadas.

Não há nenhuma previsão específica sobre método de solução de disputa, foro competente ou lei aplicável. No entanto, o parágrafo primeiro do artigo 12 determina que será aplicável, no que couber, o disposto na Lei nº 8.666/1993 (recentemente revogada pela Lei nº 14.133, de 1º/4/2021, que instituiu a nova Lei de Licitações).

O artigo 92, parágrafo 1º, da nova Lei de Licitações determina que, ressalvadas algumas hipóteses que não se aplicam ao presente caso, os contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas jurídicas domiciliadas no exterior, deverão conter cláusula que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual.

A princípio, seria possível então argumentar que, pela aplicação supletiva da Lei de Licitações, o foro da sede da Administração, em tese, deveria ser competente. No entanto, em 2015, com a alteração da Lei de Arbitragem, restou incontroversa a possibilidade de a Administração Pública se utilizar da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis [4]. Assim, com base no disposto no artigo 1º, parágrafo 1º, da referida lei, é possível concluir pela legalidade na escolha da arbitragem como método de solução de disputa no contrato entre a União e a Pfizer.

No entanto, com relação à sede da arbitragem, não há nenhuma previsão na Lei de Arbitragem que determine em qual local a arbitragem deverá ser sediada, nem tampouco na Lei nº 14.124/2021 que dispensou a licitação. Ante a ausência de previsão expressa legal autorizando que a sede da arbitragem seja no exterior, pode-se concluir, por analogia, que a União poderia se submeter a arbitragem desde que o local de arbitragem fosse em sua sede.

Coadunando com esta interpretação, cite-se a Lei nº 8.987/1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, determinando expressamente que o contrato de concessão pode prever o uso de arbitragem, desde que realizada no Brasil [5].

No Direito Internacional Privado, há um consenso que as partes podem escolher a lei aplicável ao contrato internacional, consagrando, assim, o princípio da autonomia da vontade. No Brasil, alguns autores ainda debatem se esse princípio é expressamente aceito ou não pela ordem jurídica, tendo em vista a regra geral prevista no artigo 9º da LINDB, em que a lei do local da constituição da obrigação deve ser aplicada para contratos celebrados entre presentes e a lei da residência do proponente para contratos celebrados entre ausentes.

Essa discussão se torna ainda mais acirrada quando se questiona se o princípio da autonomia da vontade pode ser aplicado também aos contratos administrativos internacionais. Com a alteração da Lei de Arbitragem, em 2015, ficou expressamente determinado que a arbitragem que envolva a Administração Pública será sempre de direito, sem, no entanto, determinar que a lei brasileira será a aplicável. Indaga-se, assim, se a União estaria autorizada a escolher a lei de Nova York como aplicável ao contrato com a empresa Pfizer.

Nesse ponto, é importante diferenciar atos de império e atos de gestão. Não há dúvida quanto à eventual impossibilidade de submissão de um Estado a leis estrangeiras por atos de império. Já com relação aos atos de gestão, como, por exemplo, no caso de um contrato de compra e venda, entende-se que tal ato não teria o condão de violar a soberania e independência do Estado, sendo possível, em tese, a submissão à legislação estrangeira desde que tal possibilidade fosse expressamente prevista em lei. Ante a ausência de previsão expressa, é cabível argumentar então que o princípio da autonomia da vontade não poderia justificar a submissão da União à legislação de Nova York.

As partes se comprometeram ainda a preservar a confidencialidade de todo o procedimento arbitral, em clara violação ao disposto no parágrafo 3º do artigo 2º da Lei de Arbitragem que determina que a administração pública pode se submeter à arbitragem, desde que respeitado o princípio da publicidade. A Lei nº 14.124/2021 determinou expressamente no parágrafo 4º do artigo 12 que "os contratos de que trata este artigo poderão ter, caso exigido pelo contratado, cláusulas de confidencialidade". Pela leitura do dispositivo, no entanto, não fica claro se a referida cláusula de confidencialidade diz respeito tão somente à divulgação do contrato (como de fato foi acordado entre as partes e supostamente violada pelo Brasil) ou se poderia ser interpretada extensivamente para também se referir ao método de solução de controvérsias, em especial, ao procedimento arbitral escolhido pelas partes.

De qualquer forma, entende-se que a confidencialidade do procedimento arbitral e a adoção do idioma inglês, não permitindo assim a divulgação de documentos em língua portuguesa, violam o princípio da publicidade previsto no parágrafo 3º do artigo 2º da Lei de Arbitragem e consagrado no artigo 37 da Constituição Federal.

No que diz respeito à ampla, irrestrita e expressa renúncia à imunidade pela União, a questão é certamente complexa e sujeita a diferentes interpretações, inclusive por tribunais americanos e por tribunais brasileiros.

Considerando que as partes escolheram Nova York como a sede da arbitragem, eventuais medidas judiciais relacionadas ao procedimento arbitral serão submetidas perante os tribunais em Nova York. Esses tribunais poderiam, então, eventualmente reconhecer como válida a referida renúncia com base na teoria da imunidade de jurisdição relativa e tendo em vista que a União, "em nome próprio e da República Federativa do Brasil, expressa e irrevogavelmente submete[u]-se à jurisdição dos tribunais de Nova York, ou de qualquer outro tribunal competente, para fins de execução de qualquer decisão, despacho ou sentença arbitral" [6].

Neste sentido também segue a tendência internacional. A Convenção da ONU sobre Imunidade de Jurisdição do Estado e de suas propriedades, de 2004, ainda que não ratificada pelos Estados Unidos, nem pelo Brasil, prevê que o consentimento expresso do Estado tem o condão de afastar tanto a imunidade de jurisdição (artigo 7º) quanto a de execução (artigo 19) [7].

No entanto, do ponto de vista do Direito brasileiro, uma renúncia tão ampla e irrestrita de qualquer imunidade que o Brasil poderia alegar deve ser, no mínimo, questionada. Em verdade, não há precedente no país que tenha ao menos deferido a citação do Brasil em caso perante a tribunal estrangeiro, como se nota no julgamento da Carta Rogatória 9.697, de relatoria do ministro Carlos Velloso [8].

Ademais, em caso de disputa perante qualquer tribunal nos Estados Unidos, em que a cláusula de renúncia de imunidade seja considerada válida e haja eventual decisão condenatória contra o Brasil, a empresa Pfizer posteriormente tentaria a homologação da decisão estrangeira perante o Superior Tribunal de Justiça. Nesse caso, a discussão certamente giraria em torno da impossibilidade de homologação por violação ao princípio da ordem pública.

A ordem pública previne a aplicação de instituto incompreensível à luz do Direito pátrio. Isso posto, por mais que a jurisprudência brasileira venha, de fato, flexibilizando o benefício da imunidade de jurisdição, sobretudo em causas trabalhistas, a mesma tratativa não é observada em relação à imunidade de execução [9], de modo que é possível afirmar que tal renúncia dificilmente seria recepcionada pelos tribunais brasileiros.

Em conclusão, a priori, não há ilegalidade na escolha da União e da Pfizer pela arbitragem como método de solução de controvérsias. No entanto, a situação é certamente controversa no que diz respeito à sede da arbitragem em Nova York, à aplicação da lei de Nova York ao mérito da disputa, à escolha do idioma inglês, à determinação para que o procedimento seja confidencial e, principalmente, à ampla e irrestrita renúncia de qualquer imunidade que poderia ser alegada pela União.

O artigo 12, inciso III, da Lei nº 14.124/2021 expressamente autorizou a Administração Pública, por conta da situação de emergência em saúde pública, a estabelecer cláusulas especiais que sejam condições indispensáveis e desde que devidamente fundamentadas. Assim, resta saber se essas cláusulas que, em uma situação normal, poderiam ser consideradas ilegais, ou até mesmo inconstitucionais, poderiam agora, na situação de emergência em saúde pública que vivemos, serem fundamentadas pela Administração Pública como indispensáveis.

A lei que dispensou a licitação para compra de vacinas foi sancionada justamente para facilitar a compra de vacinas e permitir que o governo brasileiro assinasse contratos com cláusulas impostas por empresas estrangeiras e que em uma situação normal, jamais teriam sido (ou poderiam ter sido) assinadas pela União, como por exemplo o eventual pagamento antecipado, inclusive com a possibilidade de perda do valor antecipado.

Seria esse o caso então em que o direito fundamental à saúde deveria prevalecer sobre o princípio da supremacia do interesse público? Ou deve-se argumentar que a União, ao garantir o devido acesso à vacina em uma situação extrema de pandemia, agiu pautada pelo interesse da coletividade, fundamento do próprio princípio da supremacia do interesse público, justificando-se assim à submissão aos termos do contrato? Em caso afirmativo, as cláusulas sobre o método de solução de controvérsias, foro competente, lei aplicável e renúncia à imunidade poderiam ser fundamentadas como indispensáveis e consideradas válidas com base no artigo 12, inciso III, da Lei nº 14.124/2021, exclusivamente no contexto específico dos contratos para compra de vacinas contra a Covid-19.

 


[1] CANCIAN, Natália. Ministério da Saúde assina contratos para obter 138 milhões de doses de vacina da Pfizer e Janssenº Disponível em: <http://bitly.ws/d4Id>. Acesso em: abr. 2021.

[2] Brasil. Disponível em: <http://bitly.ws/d4Ih>. Acesso em: abr. 2021.

[3] BERGAMO, Mônica. Ministério da Saúde quebra cláusula de confidencialidade e divulga contrato com a Pfizer. Disponível em: <http://bitly.ws/d4In>. Acesso em: abr. 2021

[4] Artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, incluído pela Lei nº 13.129, de 2015.

[5] Artigo 23-A da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.

[6] Cláusula 9.4 do Contrato.

[7] United Nations Convention on Jurisdictional Immunities of States and Their Property. Disponível em: < https://treaties.unºorg/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=III-13&chapter=3&clang=_en>. Acesso em: mai. 2021.

[8] Caso similar, em que a República Federativa do Brasil foi citada em processo nos Estados Unidos a respeito de resgate de títulos da dívida pública brasileira. Indeferida a citação no STF, importante mencionar que o argumento do Procurador-Geral da República foi no sentido de resguardar a imunidade de jurisdição, porquanto a ação versava sobre ato de império. A despeito da referida decisão, o Brasil se submeteu ao judiciário norte-americano, que extinguiu a ação com base em previsões internas de imunidade de jurisdição. STF, DJ 24.04.2001, CR 9.697, Rel. Minº Carlos Velloso; Croesus EMTR Master Fund v. Federative Republic of Brazil, 212 F.Supp.2d 30 (2002).

[9] V. STJ, DJ 02.08.2010, AI 1.305.399/PA. Rel. Minº Aldir Passarinho Junior.

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    é advogada no Brasil, em Portugal e na Holanda, mestre em Direito Internacional pela Universidade de Cambridge (Shell Centenary Scholarship), sócia-fundadora do escritório Joyce Dias Advocacia e membro da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Atuou como associada no grupo de arbitragem internacional do escritório Freshfields Bruckhaus Deringer em Paris e Amsterdã e como law clerk na Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) na Haia e no Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association em Londres.

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    é acadêmica do sexto semestre de Direito no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), bolsista de Iniciação Científica (Proic/2021) na linha de Direito Internacional e estagiária jurídica na Joyce Dias Advocacia.

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