Direito Civil Atual

O Supremo Tribunal Federal e o julgamento do caso Aída Curi — parte 2

Autor

  • Elimar Szaniawski

    é advogado professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná professor do Programa de Pós-graduação em Direito Pós-doutorado Doutorado e Mestrado da UFPR e doutor em Direito pela mesma instituição.

10 de maio de 2021, 12h59

Nesta oportunidade retomamos a coluna dedicada à análise do julgamento do casa Aída Curi pelo Supremo Tribunal Federal. A primeira parte foi publicada, no espaço "Direito Civil Atual", em 26 de abril de 2021. 

ConJur
Da noção do direito de personalidade ao esquecimento
No presente capítulo, será apresentada uma breve noção do direito geral de personalidade ao esquecimento.

O direito ao esquecimento é um atributo da personalidade, caracterizado como um direito geral de personalidade, que consiste na possibilidade de alguém ter suprimido da mídia e de todos os veículos de informação, algum fato desabonador, praticado pelo indivíduo, em sua vida pretérita e que tenha ingressado e permanecido na memória pública. O exercício do direito ao esquecimento permite que seja impedida a divulgação, bem como, sejam retiradas de noticiários, de jornais, de revistas, da televisão e das redes sociais, notícias, comentários, fotos e outras modalidades de imagens ou gravações, sobre fatos ou condutas desabonadoras passadas e desagradáveis, que envolvam direta ou indiretamente o  indivíduo, salvaguardando, dessa maneira, sua dignidade e sua imagem atributo.

Embora o direito ao esquecimento tenha sido reconhecido no direito brasileiro como um atributo da personalidade por intermédio da promulgação do Enunciado nº 531, da VIª Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal [1], o direito ao esquecimento não é uma categoria nova no direito comparado.

Na Europa, o reconhecimento da existência de um direito ao esquecimento data de aproximadamente 50 anos, sendo pontual o caso Lebach, julgado pela Corte Constitucional Federal da Alemanha, em 1973 [2]. O caso Lebach trata de um latrocínio múltiplo ocorrido em 1969, praticado por três homens, sendo dois os agentes diretos e um cúmplice. No evento, quatro soldados que guardavam um depósito de armas e munições foram assassinados e um quinto militar, gravemente ferido, tendo o latrocínio impressionado fortemente a opinião pública alemã devido a crueldade das ações.

 Os autores que participaram diretamente da chacina foram condenados ao cumprimento de prisão perpétua e o cúmplice, por não ter participado diretamente da ação, foi condenado a seis anos de reclusão.

Devido à grande repercussão que o caso Lebach causou na opinião pública alemã, a emissora de televisão Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF), realizou um documentário sobre o famoso caso. A matéria jornalística produzida seria levada ao ar na noite da soltura do referido cúmplice, que havia cumprido parte de sua pena, sendo beneficiado pelo livramento condicional.

No documentário realizado pela ZDF, eram perfeitamente identificadas as imagens e os nomes dos criminosos, embora as cenas de ação fossem representadas por atores.

Diante da iminência da transmissão do referido programa, o réu, beneficiário do  livramento condicional, ao tomar conhecimento da exibição do documentário no dia de sua soltura, através do qual seriam relembrados pela sociedade  os fatos que o levaram à prisão, bem como, sua intimidade, ajuizou a competente Reclamação Constitucional, (Verfaβungsbeschwerde), requerendo à Corte Constitucional alemã, (BundesVerfaβungsgericht), a proibição de a mídia divulgar um filme que encenasse os fatos ocorridos, pois sua divulgação, após tantos anos, dificultaria sua ressocialização. Alegou, ainda, que tendo cumprido parte da pena, estaria ele na iminência a ser beneficiado pelo livramento condicional e que a exibição do filme lhe traria sérios prejuízos pessoais, além de constituir violação aos seus direitos fundamentais, segundo dispõe a alínea 1, do artigo 1º, combinado com o disposto na alínea 1, do artigo 2º, ambos da Lei Fundamental, a Constituição da Alemanha [3]. Em 5 de junho de 1973, Tribunal Constitucional Federal deferiu a medida postulada pelo reclamante e, com fundamento na alínea 1, do artigo 2º, da Lei Fundamental, assegurou ao requerente o direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, determinando a proibição da divulgação e a exibição do filme [4].

O presente feito, embora não tenha expressamente se referido a um direito especial ao esquecimento, deflagrou, na Alemanha, o desenvolvimento da teoria do direito de personalidade ao esquecimento, que consiste na proteção do indivíduo, por tempo indeterminado, contra a perseguição e o revolvimento de atos ou fatos pretéritos, criminosos ou socialmente reprováveis, por ele praticados.

O direito ao esquecimento surge quando dois direitos fundamentais e de idêntico valor entram em conflito, a saber, o direito à liberdade de imprensa e de expressão, o direito à privacidade e o direito à imagem-atributo do indivíduo. O direito ao esquecimento é exercido no sentido de a pessoa ver esquecidos pela sociedade, os atos e fatos pretéritos criminosos ou reprováveis, por ela praticados. Em princípio, os direitos de ambos os polos postos em causa, possuem o mesmo valor. Desse modo, cada caso concreto poderá ter um julgamento diverso, segundo o resultado da ponderação dos interesses. O magistrado deverá ponderar o caso concreto mediante a aplicação do critério da proporcionalidade, devendo verificar qual dos interesses postos em causa que estão em colisão, deva prevalecer em relação ao outro.

Alguns critérios básicos deverão ser obedecidos na ponderação, a saber: a) ser autor de crime ou de fato social desabonador grave; b) a contemporaneidade do fato; c) o efetivo interesse público à informação; d) a historicidade do evento e e) a caracterização da pessoa que quer ser esquecida como pessoa pública ou privada. A extemporaneidade do evento que a mídia divulga ou pretende divulgar retira, em princípio, a caracterização do interesse do público à informação, principalmente, quando o evento foi de mera notícia policial, sem vir a se constituir em um episódio histórico. A possibilidade de o fato, outrora ocorrido, vir a ser redivulgado pela mídia, muito tempo após sua ocorrência, além de ofender a dignidade e a privacidade da pessoa, poderá provocar danos a sua imagem-atributo ao reavivar aspectos de sua vida pretérita, dos quais quer se esquecer e permanecer incógnita no meio social, recomeçando uma vida nova e de não ter mais sua pessoa estigmatizada, associada aqueles fatos desabonadores do passado.

Referências bibliográficas

Constituição da República Federativa do Brasil, In https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/566968/CF88_EC105_livro.pdf.

De Cupis, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Lisboa, Livraria e Editora Morais, 1961.

Pontes de Miranda, F. C. Tratado de Direito Privado, t. II, VII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1971.

Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário nº 1010606, In http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786. Acesso em 17.02.2021.

VIª Jornada de Direito Civil, promovida pelo CEJF, realizada em 2013, em Brasilia.

Tribunal Federal Constitucional. BVerfGE 35, 202, Lebach. In http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv035202.html. Acessados em 21.01.2016.

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial. nº 1.334.097 – RJ (2012/0144910-7). Rel.: Min. Luis Felipe Salomão. Publ. DJe em 10.09.2013. In www.conjur.com.br. Acessado em 23.10.2018.

Szaniawski, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. S. Paulo RT, 2005.

** Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).


[1] VIª Jornada de Direito Civil, promovida pelo CEJF, foi realizado em 2013, em Brasília.

[2] BVerfGE 35, 202 – Lebach. In http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv035202.html. Idem: Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. BVerfGE 35, 202 – Lebach, ps. 484 e seg. In http://www.kas.de/wf/doc/kas_7738-544-1-30.pdf. Acessados em 21.01.2016.

[3] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949:
Artigo 1 [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação jurídica dos direitos fundamentais] (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. […].
Artigo 2 [Direitos de liberdade] (1) Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.

[4] BVerfG. Lebach, ps. 488 e seg. In http://www.kas.de/wf/doc/kas_7738-544-1-30.pdf. Acessados em 21.01.2016. A Corte Constitucional Federal da Alemanha apresenta, no Caso Lebach, a seguinte argumentação:
 "O rádio e a televisão são, assim como a imprensa, meios de comunicação de massa imprescindíveis que têm influência decisiva, tanto para a ligação entre o povo e os órgãos públicos e seu controle, quanto para a integração da comunidade em todos os setores da vida social. Disponibilizam ao cidadão a informação ampla e necessária sobre os acontecimentos e sobre desenvolvimentos no Estado e na vida social. Possibilitam a discussão pública e as mantêm, na medida em que informam sobre as diversas opiniões, dando ao indivíduo e aos diversos grupos sociais a oportunidade de atuar como formadores de opinião e representando eles mesmos um fator decisivo no processo permanente da formação de opinião e vontade públicas (cf. BVerfGE 12, 113 [125]; 12, 205 [260]). Apesar da definição parcimoniosa de seu teor (noticiário), a liberdade de radiodifusão não se distingue essencialmente da liberdade de imprensa; vale da mesma forma para programas puramente informativos e para programas de outros tipos. Informação e opinião podem ser transmitidas tanto em um filme televisivo ou em programa musical, como por meio de notícias ou comentários políticos; cada canal de televisão produz mediante a escolha e a forma do programa a ser transmitido, um efeito formador de opinião determinado (cf. BVerfGE 12, 205 [260]; 31, 314 [326]). Tampouco a liberdade de radiodifusão permite de antemão uma distinção dos programas segundo o interesse defendido ou a qualidade da apresentação; uma restrição à produções "sérias", que sirvam a um interesse digno de reconhecimento público ou privado, resultaria ao final, em uma avaliação ou direcionamento por parte de órgãos estatais, o que justamente contrariaria a essência desse direito fundamental (cf. BVerfGE 25, 296 [307]; 34, 269, 282 et seq.). Consequentemente, uma estação de rádio ou um canal de televisão pode se valer, em princípio, da proteção do artigo 5 I 2 GG, (*), indiferentemente de se tratar de programas políticos, debates críticos sobre questões que tocam no interesse da coletividade ou peças radiofônicas, programas de variedades ou de entretenimento. A eficácia da garantia constitucional, portanto, não depende da respectiva prova de um interesse "justo" ou "legítimo" do programa examinado, (cf. Adolf Arndt, op. cit.), (**). Consequentemente, a liberdade de radiodifusão não abrange apenas a seleção do conteúdo apresentado, mas também a decisão sobre o tipo e o modo de apresentação, inclusive a definição de qual das diferentes formas de programa é escolhida para tanto.
Fazem parte das leis gerais, consoante o artigo 5 II GG, também as normas dos §§ 22, 23, que fundamentam as decisões impugnadas, da Lei de Direitos Autorais de Obras de Artes Plásticas e Fotografia de 9 de janeiro de 1907 (RGBl., p.7). (…). (…). 2. Em casos de conflito como o presente, vale, por isso, de um lado, o princípio geral de que a aplicação dos §§ 22, 23 KUG em face de programas de televisão não pode limitar a liberdade de radiodifusão excessivamente. De outro lado, existe aqui, em contraposição às demais leis gerais na acepção do artigo 5 II GG, a peculiaridade de que a limitação da liberdade de radiodifusão serve, por sua vez, à proteção de um alto valor constitucional; o interesse da pessoa em questão contra a divulgação ou apresentação de sua imagem, a ser considerado no contexto do § 23 KUG, é reforçado diretamente pela garantia constitucional da proteção à personalidade [do artigo 2 I c. c. artigo 1 I GG]. A solução do conflito deve partir do pressuposto de que, segundo a vontade da Constituição, ambos os valores constitucionais configuram componentes essenciais da ordem democrática livre da Grundgesetz, (Constituição), de forma que nenhum deles pode pretender a prevalência absoluta. O conceito de pessoa humana (Menschenbild) da Grundgesetz e a configuração a ele correspondente da comunidade estatal, exigem tanto o reconhecimento da independência da personalidade individual, como a garantia de um clima de liberdade que não é imaginável atualmente sem comunicação livre. Ambos os valores constitucionais devem ser, por isso, em caso de conflito, se possível, harmonizados; se isso não for atingido, deve ser decidido, considerando-se a configuração típica e as circunstâncias especiais do caso particular, qual dos dois interesses deve ser preterido. Ambos os valores constitucionais devem ser vistos, em sua relação com a dignidade humana, como o centro do sistema axiológico da Constituição. Certamente, podem decorrer da liberdade de radiodifusão efeitos limitadores para as pretensões jurídicas derivadas do direito [fundamental] da personalidade; porém, o dano causado à "personalidade" por uma apresentação pública não pode ser desproporcional ao significado da divulgação para a comunicação livre (cf. Adolf Arndt, op. cit.). Além disso, desse valor de referência decorre que a ponderação necessária por um lado deve considerar a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade por um programa de tipo questionável e, por outro lado, está o interesse concreto a cuja satisfação o programa serve e é adequado a servir, para avaliar e examinar se e como esse interesse pode ser satisfeito [de preferência] sem um prejuízo – ou sem um prejuízo tão grande – da proteção à personalidade. […].
Resumindo, tem-se que um noticiário sobre um crime com os nomes [verdadeiros], fotos ou representação dos acusados, principalmente na forma de documentário, significará em regra uma intervenção grave na sua esfera [privada] da personalidade. Pode restar pendente a questão de saber se ao documentário em pauta, que pretende reconstruir um acontecimento real de forma verossímil, poderia ser atribuído o caráter DIREITO CONSTITUCIONAL MATERIAL I 493 de uma obra de arte segundo o artigo 5 III GG. Também na aplicação desta norma constitucional deveria ser considerado que a liberdade artística, embora os limites do artigo 5 III GG não valham para ela, não é superior à proteção da personalidade garantida pelos artigo 1 e 2 II GG (cf. BVerfGE 30, 173 [193 et seq ] – Mephisto." In Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. BVerfGE 35, 202 – Lebach, ps. 488 e seg.

(*) GG = Grund Gesezt. Significa Lei Fundamental ou Constituição.

(**) Adolf Arndt. Jurista e político alemão, autor de diversas obras de Direito Constitucional.

Autores

  • é advogado, professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, professor do Programa de Pós-graduação em Direito, Pós-doutorado, Doutorado e Mestrado da UFPR e doutor em Direito pela mesma instituição.

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