Defesa da Concorrência

A visão da floresta: o Cade e a indústria de meios de pagamento

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10 de maio de 2021, 8h01

O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) e a indústria de meios de pagamento (que engloba os serviços de adquirência, popularmente conhecido como "maquininhas de cartão") têm uma longa história de interação, em geral desconhecida do público leigo.

ConJur
As adquirentes surgiram inicialmente no Brasil como braços exclusivos das bandeiras de cartões de crédito Visa e Master. Cada adquirente tinha sua própria máquina e não havia interoperabilidade: o comerciante era obrigado a ter uma máquina de cada bandeira, semelhante aos múltiplos celulares que as pessoas carregavam para não ter de pagar tarifas de interconexão entre operadoras. Além de custosa e ineficiente, tal estrutura impossibilitava a entrada de concorrentes. O mercado era controlado por um duopólio impenetrável.

Em 2009, após estudo conjunto da SDE/Seae/Bacen apontando os entraves para a concorrência no setor, a então SDE iniciou investigações contra a Redecard e a Visanet por indícios de tentativa de fechamento de mercado por meio de relações de exclusividade, imposição de condições comerciais abusivas e criação de dificuldades ao funcionamento de concorrentes [1]. Ambas celebraram acordos com o Cade para encerramento das investigações, a Visanet em 2009, a Redecard apenas em 2014, e o mercado foi aberto para novos players.

O esforço regulatório do SBDC e do Bacen rendeu frutos. Grandes bancos brasileiros entraram no mercado de captura de transações. Tal movimento representou, naquele momento, um avanço concorrencial: uma única máquina seria capaz de capturar transações de diversas bandeiras, gerando pressão competitiva no mercado de adquirência.

Seis anos após as primeiras investigações, no entanto, o Cade voltaria a instaurar inquéritos no setor, dessa vez contra os conglomerados de bancos (Itaú, Bradesco e Banco do Brasil), adquirentes (Rede e Cielo) e suas respectivas bandeiras (Hipercard e Elo) por condutas semelhantes às promovidas por Mastercard e Visanet: criação de dificuldades ao funcionamento, discriminação e recusa de contratar com concorrentes [2]. Os bancos também discriminavam na ponta financeira, criando travas bancárias artificiais para impedir que adquirentes concorrentes fornecessem antecipação de crédito. Esses inquéritos foram suspensos por meio de novos acordos com o Cade, nos anos de 2017 e 2018.

Para além de condutas potencialmente lesivas, os conglomerados continuaram a se expandir, usando estratégias de tombamento ou de aquisições para dominar mercados adjacentes, como o de arranjos de pagamentos específicos para a alimentação de trabalhadores, os vales-refeições. O conglomerado Itaú/Rede/Hipercard comprou participação e firmou acordo de exclusividade com a Ticket [3], o conglomerado Bradesco/BB/Cielo/Elo usou seu poder de portfólio para, em poucos anos, tomar quase a metade do mercado com sua marca Alelo, e o conglomerado Santander/Getnet comprou a Visa Vale, hoje Ben.

Apesar desse contexto hostil, o firme posicionamento do Cade permitiu que algumas empresas não ligadas a bancos furassem a bolha. A "guerra das maquininhas" começou inicialmente pela franja ainda pouco explorada do mercado: lojas online, pequenos varejistas e até mesmo vendedores ambulantes. Stone, Pagseguro, Mercado Pago, Sumup etc. conseguiram firmar um pé no setor e, quase uma década depois, passaram a deter, conjuntamente, cerca de um quarto do mercado. Mas mesmo essa participação relativamente pequena produziu resultados. Como quase todo comerciante pôde atestar, os altos preços de outrora, materializados na forma de taxas de desconto sobre o valor da operação (MDR em inglês), começaram a cair fortemente, fenômeno que provocou uma reação desesperada de tentativa de venda casada por parte dos grandes conglomerados [4], conduta novamente freada pelo Cade.

Essas transformações regulatórias, que levaram à maior interoperabilidade das redes de captura e inibiram condutas anticompetitivas, levaram ao que vem sendo denominado de "comoditização da atividade de adquirência". Por se tratar de um serviço relativamente homogêneo e sem restrições de capacidade (praticamente qualquer concorrente tem capacidade de processar, se não todas, pelo menos parte significativa das transações), a maior competição comprimiu as margens no setor.

A sobrevivência das adquirentes passou a depender, então, da capacidade de as empresas participantes oferecerem um portfólio de serviços aos clientes. Em verdade, a maioria das empresas que ganharam alguma participação de mercado nos últimos anos também faz parte de algum conglomerado, normalmente ligado à nova economia digital. Por exemplo: a Pagseguro pertence ao conglomerado de comunicação Uol; a Mercado Pago, ao conglomerado do Mercado Livre, que tem por trás a Ebay; a Sumup é em parte controlada pela bandeira American Express.

Dito isso, são as adquirentes verticalizadas aos grandes conglomerados financeiros que ainda usufruem de poder de mercado nesse ambiente, tanto por vantagens associadas à oferta como por vantagens associadas à demanda.

Do lado da oferta, o fato de pertencer a conglomerados financeiros lhes permite acessar funding mais barato para antecipação de recebíveis e a dispor de um maior conjunto de informações daqueles clientes que também são clientes dos bancos. Pelo lado da demanda, a disponibilização de um portfólio de produtos vem se tornando um fator cada vez mais determinante nas escolhas feitas pelos clientes. Sob esse aspecto, as adquirentes verticalizadas a conglomerados financeiros contam com enorme vantagem, pois seus clientes podem contratar, junto aos serviços de adquirência, uma cesta de serviços e produtos bancários, como financiamento de capital de giro, conta-salário, seguros, vale-refeição etc. De acordo com o presidente da Cielo, Paulo Caffarelli, em entrevista ao Valor Econômico, "adquirência por si só não tem mais competitividade. Tem que ter um braço de banking e um lado ‘tech’. Cada vez mais, trabalhar num ecossistema de pagamentos. Nosso produto é commoditizado". Portanto, no contexto dos conglomerados, a adquirência não é mais viável como um serviço stand alone, ou seja, a capacidade de competir, de rivalizar, pressupõe a capacidade de ofertar conjuntamente outros serviços.

Tal fato tem levado a duas evoluções recentes do setor, uma decorrente do dinamismo do mercado, outra da proatividade do regulador. O dinamismo no mercado tem permitido o surgimento de outras cestas de produtos capazes de rivalizar com a cesta dominante, composta por serviços de adquirência e serviços bancários. Um exemplo é a possibilidade de maior integração entre softwares de gestão empresarial e sistemas de pagamento, estratégia adotada pela Stone ao comprar recentemente a Linx. Esse tipo de integração permite ganhos de eficiência decorrentes da redução de custos de transação e de assimetria de informação, esta última com potenciais reflexos positivos no barateamento do crédito, eterna penúria nacional.

O regulador, por sua vez, tem buscado ampliar a rivalidade estimulando a disseminação de informações e o acesso a dados antes detidos por poucos agentes dominantes. Nesse aspecto, merecem destaque não apenas os esforços do SBDC [5] como também aqueles empreendidos pelo Banco Central nos últimos anos para promover a concorrência no setor financeiro como um todo [6]. Mais recentemente, esses esforços vêm se materializando na iniciativa de open banking, com medidas que buscam induzir o compartilhamento cada vez maior de informações, desde que autorizadas por seus proprietários — no caso em tela, o estabelecimento comercial.  A aposta é que a disseminação das informações permitirá a oferta de melhores produtos e a maior concorrência entre instituições financeiras.

As medidas vêm sendo implementadas de forma escalonada, começando com a abertura dos dados entre as instituições financeiras, passando pelo acesso do público a seu próprio histórico bancário, que poderá eventualmente ser compartilhado em uma plataforma única, e convergindo, então, para um ambiente concorrencial em que as vantagens competitivas não serão baseadas em escala ou acesso a capital, mas na compreensão das demandas dos clientes [7]. A recente introdução do PIX é mais um avanço nessa frente.

Naturalmente, haverá resistências. Em recente matéria, a The Economist mostrou como, nos EUA, grandes bancos e o duopólio das bandeiras ainda lutam contra mudanças para preservar inabalado seu poder de mercado [8]. Conhecendo o histórico do setor no Brasil, sabemos que aqui não será diferente. Mas nossos órgãos de defesa da concorrência e de regulação bancária têm se mostrado atentos, firmes e capazes de enxergar a floresta, não apenas as árvores.

 


[1] PA nº 08012.004089/2009-01 e PA nº 08012.005328/2009-31.

[2] IA nº 08700.000018/2015-11, IA nº 08700.001861/2016-03 e IA nº 08700.001860/2016-51

[3] AC 08700.006345/2018‐29

[4] PA 08700.002066/2019-77

[5] Que incluem, ainda, a participação ativa da SEAE na busca por abertura de dados do Bradesco para o Guiabolso no PA 08700.003425/2020-47.

[6] Por exemplo, o BC regulamentou em 2018, a figura do subcredenciador, que facilita o acesso de pequenos comerciantes online ao sistema eletrônico de pagamentos.

[7] Segundo apresentação do diretor de Organização do Sistema Financeiro e Resolução do Banco Central, João Manoel Pinho de Mello.

[8] Fintech comes to America, at last.

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