Opinião

A questão do alcance de penas na nova Lei de Licitações

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10 de maio de 2021, 18h32

Assunto dos mais falados atualmente no universo administrativista brasileiro, o ingresso da nova Lei de Licitações no ordenamento jurídico tem sido comparado ao que foi o Código Civil de 2002 para os civilistas ou o Código de Processo Civil de 2015 para os processualistas.

Guardadas as devidas proporções, a renovação do estatuto licitatório nacional após quase 28 anos de vigência da Lei nº 8.666, de 21/6/1993, acarreta profundo impacto nas atividades da Administração Pública e dos que com ela se relacionam, demandando dos operadores empenho para decifrar o novo diploma em sua integralidade.

É bem verdade que, em grande parte, as soluções adotadas são herança do antigo regime, mas não há como negar a existência de consideráveis novidades entre os 194 artigos que compõem o recente normativo, tais como: extinção de algumas modalidades licitatórias ("convite" e "tomada de preços") e criação de outra ("diálogo competitivo"); inversão de fases como regra geral (julgamento antes da habilitação); adoção de novos critérios de julgamento ("maior desconto" e "maior retorno econômico"); regulamentação de procedimentos auxiliares (como é o caso do "credenciamento" e da "manifestação de interesse"); possibilidade de orçamento sigiloso; admissibilidade de adesão a posteriori no sistema de registro de preços ("carona"); criação do Portal Nacional de Contratações Públicas para divulgação obrigatória dos certames e contratos; entre diversas outras inovações.

Um dos temas que, por sua relevância, merecem destaque é o das sanções administrativas (artigos 155 a 163 do novo diploma). O assunto sob enfoque nesta oportunidade encontra-se disciplinado especificamente no artigo 156, cujo teor assemelha-se ao do artigo 87 da Lei nº 8.666/1993, porém, com nuance bastante interessante: diferente da redação adotada na antiga norma, que estabelece, no caso de inexecução contratual, possibilidade de a Administração aplicar sanções ao contratado, a nova lei dispõe sobre quais penalidades serão impostas ao responsável.

Essa mudança se deve ao fato de que, na conformidade do novo regime, além do contratado, também o licitante poderá ser responsabilizado administrativamente, ampliando-se, com isso, o universo dos que se sujeitam às sanções administrativas, seja por práticas posteriores à assinatura do ajuste, seja ainda na fase da licitação, numa elogiável iniciativa que confere maior rigor ao procedimento já no momento da disputa.

As prescrições contidas nos §§2º a 5º do artigo 156 também representam certo aprimoramento em relação à disciplina da Lei nº 8.666/1993, eis que buscam indicar qual a sanção cabível para cada uma das 12 infrações agora expressamente previstas (artigo 155, incisos I a XII).

A ausência de tal correlação configura falha grave no texto da Lei nº 8.666/1993, posto que, embora estabeleça sanções, o faz sem observância a preceito basilar do Direito Penal Constitucional, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF); mutatis mutandis, a norma só poderia fixar pena, ainda que administrativa, caso previsse especificamente a conduta que lhe é ensejadora, desacerto que o novo estatuto tencionou reparar, embora ainda remanesça considerável subjetividade na avaliação das condutas e consequente subsunção à norma legal em abstrato.

Referido cuidado na adequada correlação entre causa e consequência não se restringe ao campo teórico, mas traz relevantes implicações de ordem prática, pois tende a evitar que uma mesmíssima conduta possa ensejar penas absolutamente distintas, sobretudo quando aplicadas no âmbito de diferentes administrações.

Essa falta de delimitação possibilitava, por exemplo, que um atraso na entrega do bem licitado ensejasse, numa dada Administração, advertência ou multa, enquanto noutra, impedimento, e, numa terceira, quiçá, declaração de inidoneidade. Tal desproporção na dosimetria da pena revelava ser a norma por demais aberta, acabando por relegar aos regulamentos infralegais demarcação que cabia ao legislador estabelecer, ocorrência que, com o novo diploma, espera-se ver diminuir.

Outra boa intenção que merece destaque foi a tentativa de solucionar antiga controvérsia doutrinária acerca do alcance das penas de impedimento e declaração de inidoneidade: agora, de forma expressa, a lei estabelece que a primeira está adstrita ao âmbito da "Administração Pública direta e indireta do ente federativo que tiver aplicado a sanção", ao passo que a segunda alcança a "Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos".

Resta clara a intenção do legislador de, no caso de impedimento, restringir os efeitos da sanção ao universo do ente federativo do órgão sancionador. Desse modo, por exemplo, referida pena aplicada pela Secretaria de Estado da Saúde impossibilita que a empresa sancionada participe de licitação ou seja contratada por quaisquer outras secretarias, autarquias e fundações daquele específico ente federativo.

O texto legal, entretanto, restringe a sanção à "Administração Pública direta e indireta". Eis aqui aspecto merecedor de análise. Embora o novo diploma tenha sido pródigo em definições — seu artigo 6º conta com nada menos que 60 incisos —, restringe-se a conceituar "Administração" e "Administração Pública", repetindo o teor da Lei nº 8.666/1993 em artigo de mesmo número, nada mencionando, todavia, acerca de "Administração Pública direta e indireta".

É sabido que, ao se levar em conta quem exerce a atividade administrativa, a expressão "Administração direta" é largamente utilizada para se referir ao próprio ente da federação que executa um serviço público de forma centralizada (União, estados, Distrito Federal ou municípios), enquanto "Administração indireta" quando referido serviço é prestado de forma descentralizada, por intermédio de pessoas jurídicas ao ente vinculadas (basicamente, autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista).

Não obstante essa conhecida subdivisão, o conceito de "Administração direta" pode ser considerado aberto, sendo, para uns, o conjunto de órgãos de função administrativa de todos os poderes, enquanto, para outros, somente do Poder Executivo. Nesse segundo sentido é o teor do artigo 4º, I, do Decreto-Lei nº 200/1967:

"Artigo 4º — A Administração Federal compreende:
I – A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios".

A questão que se coloca é que, em seu artigo 1º, o novo estatuto licitatório dispõe:

"Artigo 1º — Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:
I – Os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa; (…)"
(grifos do autor).

Partindo da opção do próprio legislador, que apartou Legislativo e Judiciário no inciso I, de se presumir que foi adotado entendimento segundo o qual a Administração Pública "direta" estaria restrita aos órgãos do Poder Executivo, tal como delineado no citado Decreto-Lei nº 200/1967. Afinal, se assim não fosse, não haveria razão para mencionar, expressamente e em inciso próprio, os outros dois poderes, levando à conclusão de que, para o legislador, não estão eles abarcados na expressão "Administrações Públicas diretas" [1] contida na cabeça do artigo 1º, daí porque entendeu necessário consigná-los no inciso I.

Por essa mesma razão, Tribunais de Contas e Ministério Público, por exemplo, também não estariam abrangidos pelo caput, e, por se tratarem de órgãos de direta extração constitucional, não se inserindo na estrutura de qualquer dos poderes, igualmente não poderiam ser considerados albergados no inciso I, que se restringe aos Poderes Legislativo e Judiciário, restando, portanto, indesejável omissão em relação a essas instituições que, à evidência, também licitam [2].

Assim, a teor do artigo 1º, caput, e inciso I, chegar-se-ia à impraticável conclusão de que os efeitos da sanção de impedimento de licitar e contratar, prevista no artigo 156, III, não se estendem a órgãos não pertencentes ao Poder Executivo, ainda que do mesmo ente federativo. Desse modo, na situação hipotética antes mencionada, a pena de impedimento aplicada pela Secretaria de Estado da Saúde não obstaria que a empresa sancionada participasse de licitação ou fosse contratada por órgãos do Poder Judiciário, Poder Legislativo, Tribunal de Contas ou Ministério Público, ainda que do mesmo Estado.

Tal restrição causa ainda mais estranheza no que concerne à declaração de inidoneidade. Não obstante a cristalina intenção do legislador de estender seus efeitos a todos os órgãos, de todos os entes federativos, conferindo-lhe, portanto, abrangência geral e nacional, o §5º do artigo 156 também utiliza a expressão "no âmbito da Administração Pública direta e indireta", o que, pelas mesmas razões, significa que, também neste caso, a redação adotada não estaria a estender os efeitos da pena para órgãos que não compõem o Executivo, tornando o dispositivo bastante inconsistente, afinal, não se pode ser inidôneo perante um órgão ou poder e não sê-lo perante outros.

É, portanto, bastante discutível se a nova redação logrou êxito em aprimorar o texto anterior. De qualquer modo, a despeito do que acabou constando na norma e criando essa ao menos aparente reserva — que, aliás, não existe na Lei nº 8.666/1993 [3] —, tudo leva a crer que, ante a inconcebível restrição de efeitos aludida, caberá aos intérpretes conferir sentido adequado à prescrição legal sob análise, já que tão inadmissível quanto excluir Tribunais de Contas e Ministério Público do âmbito de abrangência da lei seria restringir os efeitos das sanções administrativas de impedimento e declaração de inidoneidade à esfera do Poder Executivo.

 


[1] Observa-se certa imprecisão na utilização das expressões "Administração" e "Administração Pública" pelo legislador, que, em diferentes passagens, deixa de observar as definições que ele mesmo adota no artigo 6º, III e IV, segundo as quais, por exemplo, não haveria espaço para "Administrações Públicas", no plural.

[2] A confirmar tal omissão, o artigo 156, § 6º, II, ao indicar as autoridades competentes para aplicação da declaração de inidoneidade, diferentemente do artigo 1º, menciona, ao lado dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública (silente o dispositivo, todavia, no que toca aos Tribunais de Contas). 

[3] A Lei nº 8.666/1993, em seu artigo 87, incisos III e IV, distingue a abrangência dos efeitos das penas de impedimento e de declaração de inidoneidade tão somente no âmbito da "Administração" e da "Administração Pública", respectivamente, sem utilizar a expressão "Administração Pública direta e indireta"; em seu artigo 117, por seu turno, expressamente estabelece que os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Tribunal de Contas regem-se pelas suas normas, no que couber, nas três esferas administrativas, silenciando, todavia, acerca do Ministério Público.

Autores

  • é assessor técnico-procurador e chefe de gabinete do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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