Opinião

O consequencialismo na declaração de inconstitucionalidade na área tributária

Autor

  • Tiago Leitão

    é advogado no escritório Ogusuku e Bley Advogados especialista em Direito Tributário pela PUC-SP professor de Direito Tributário e vice-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-Sorocaba.

9 de maio de 2021, 6h02

Para deliminar o objeto deste artigo, é importante deixarmos claro que trataremos do consequencialismo jurídico em matéria tributária sob a ótica da modulação de efeitos.

No ano de 2018, a publicação da Lei 13.655 acrescentou diversos dispositivos à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) para trazer "segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público". Entre elas, neste artigo trataremos especificamente da norma prescrita no artigo 20, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o chamado "consequencialismo jurídico".

De acordo com o enunciado prescritivo do artigo 20 da LINDB [1], as decisões judiciais devem ser proferidas considerando os efeitos da decisão. O magistrado, portanto, ao decidir, avaliará, além do conteúdo jurídico, os reflexos da decisão.

A introdução do consequencialismo jurídico no Direito brasileiro trouxe modificações significativas na construção do convencimento dos magistrados, de modo que as decisões judiciais passaram a considerar fatores externos aos limites do processo em razão do impacto que elas podem causar na demais relações análogas.

O consequencialismo jurídico, portanto, é realidade no Direito brasileiro. No entanto, a sua introdução não retirou a obrigação de que as decisões judiciais sejam fundamentadas no direito posto. Afinal, a fundamentação das decisões judiciais é obrigatória, sob pena de infringir os artigos 93, IX da Constituição Federal e 489, §1º, e incisos do Código de Processo Civil.

Assim, as normas previstas no ordenamento jurídico não podem ser desprezadas em detrimento das consequências que eventualmente venham a ser experimentadas em decorrência das decisões judiciais. Como bem assinala Teresa Arruda Alvim [2]: "Nenhuma decisão judicial pode ter por base única: o perigo de esvaziamento dos cofres públicos, a iminência da quadra do erário, prováveis dificuldades de caixa etc…".

Ultimamente profissionais da área tributária têm acompanhado importantes decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. Teses que outrora figuraram como "riscos fiscais" na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), foram rejeitadas pela Suprema Corte para validar a tributação até então questionada pelos contribuintes. Enquanto outras (teses) foram decididas favoravelmente aos contribuintes e tiveram seus efeitos modulados diante dos riscos transcendentes das decisões [3].

Nesse ponto, o consequencialismo jurídico tem se tornado fundamento importante para aplicação da modulação de efeitos prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/1999. O dispositivo prevê que a mitigação dos efeitos das decisões poderá ser adotada para preservar a segurança jurídica ou excepcional interesse social.

O emprego dos termos "segurança jurídica" e "excepcional interesse social" deu ampla margem a interpretação pelos aplicadores do Direito em decorrência da necessidade de valoração desses elementos. E, diante disso, a modulação dos efeitos em matéria tributária está sempre presente no plenário do Supremo Tribunal Federal [4].

Não é novidade que o Estado (latu sensu) tem investido em argumentos econômicos para influenciar o Supremo Tribunal Federal a modular os efeitos de decisões judiciais. Desde a declaração de inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), muitas notícias, artigos e entrevistas apontaram as preocupações do governo federal com o impacto financeiro que a chamada "tese do século" pode causar nos cofres públicos, caso não venha a ser modulado os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Mas será que o efeito econômico é fundamento suficiente para alterar ou mitigar os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade em matéria tributária?

A nosso sentir a resposta é negativa, isso porque, invariavelmente, as decisões de inconstitucionalidade em matéria tributária irão impactar nos cofres públicos, de maneira a fragilizar esse fundamento para modulação de efeitos, além de minimizar o papel da Constituição Federal no ordenamento jurídico brasileiro.

A ministra Carmen Lúcia, no julgamento do RE nº 363.852 [5], afirmou que os impactos econômicos não podem gerar o emprego da excepcionalíssima modulação de efeitos para preservar os cofres públicos, até porque o reconhecimento da violação do rígido texto da Constituição Federal deve encerrar caráter pedagógico para inibir que novas legislações sejam editadas em afronta a Carta Maior.

A mitigação dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade abala a segurança nas relações entre Estado (lato sensu) e contribuintes. Rafael Pandolfo ao tratar dos critérios utilizados pelo Supremo Tribunal Federal na modulação de efeitos em matéria tributária acertadamente aponta o perigo da mitigação dos efeitos na restituição dos valores recolhidos indevidamente pelos contribuintes [6].

Modular os efeitos das decisões de inconstitucionalidade em matéria tributária objetivando tão somente assegurar o não desembolso dos cofres públicos, significa estimular que leis sejam editadas em afronta a Constituição Federal visando sempre o superávit primário.

Se de um lado os contribuintes estão sujeitos a sofrer cobranças ou punições diante de ações reprovadas pelo ordenamento jurídico posto, de igual modo o Estado (lato sensu) deverá arcar com as consequências da edição de leis inconstitucionais, devolvendo aos contribuintes os valores arrecadados durantes os anos de plena eficácia da norma inconstitucional.

O Poder Judiciário tem importante papel no sistema de freios e contrapesos constitucional para evitar que direitos fundamentais, como a propriedade, sejam violados por leis inconstitucionalmente editadas. Ou, caso o sejam, o acesso ao Poder Judiciário é a segurança do cidadão de que a situação anterior será reestabelecida diante da correção dos direitos violados pela obrigação incompatível com a Constituição [7].

Assim, mesmo o consequencialismo sendo realidade no Direito brasileiro, sua aplicação equilibrada e escorada em outros fundamentos que não exclusivamente de natureza econômica poderá trazer ao ambiente de negócios e às relações entre Fisco e contribuinte maior segurança e confiança, evidenciando "que o direito serve à sociedade, e não o contrário" [8].

 


[1] "Artigo 20  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas."

[2] ALVIM, Teresa Arruda. Consequencialismo nas decisões: não se pode ignorar os impactos no mundo dos fatos. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-24/consequencialismo-decisoes-judiciais#:~:text=Consequencialismo%20jur%C3%ADdico%3A%20o%20lugar%20da,1009%2C%20p. Acesso em: 29/04/2021.

[3] Vide ADI 5469 e RE 1287019 em que restou declarada a inconstitucionalidade da cobrança da diferença de alíquotas de ICMS.

[4] Dentre 31 casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, apenas em 6 casos não houve aplicação de argumento consequencialista  Vide obra de DIAS, Daniela Gueiros. Consequencialismo Judicial no Direto Tributário Brasileiro. IDBT.

[5] "Primeiro, a Constituição, como lembro o ministro Marco Aurélio, aliás, de maneira muito firme tem repetido aqui que essa é uma Constituição rígida que, uma vez afrontada, tendo sido afrontada, e, a não ser em situação excepcionalíssimas, em que a execução do que nós decidimos gere mais problemas sociais, principalmente, não econômicos ou financeiros, mas sociais, que realmente poderiam ensejar uma prática dessa natureza em caráter excepcionalíssimos, nós temos de manter até o que é pedagógico para os órgãos do Estado." Voto ministra Cármen Lúcia no RE 363.852.

[6] "O custo direto (restituição) e o indireto (aumento da carga sobre o aparelho judiciário) não podem servir como fundamento para afastar a satisfação do direito reconhecido pela próprio STF. […] A restituição, por outro lado, estimula a confiança dos cidadãos no Estado; se por um lado, têm ciência de que o Estado pode cometer erros, por outro, terão a segurança de que esses erros, quando ocorrerem, serão mitigados" (PANDOLFO, Rafael. Jurisdição constitucional tributária: reflexos nos processos administrativo e judicial. São Paulo: Noeses, 2012. p. 241.

[7] Op. Cit. PANDOLFO, Rafael.

[8] Op. Cit. ALVIM, Teresa Arruda.

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    é advogado no escritório Ogusuku e Bley Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, professor de Direito Tributário e vice-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-Sorocaba.

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