Opinião

Cannabis medicinal e industrial: comentários ao PL 399/15

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9 de maio de 2021, 7h12

Ainda sujeito a emendas, o substitutivo ao PL 399/15 contempla o plantio de cannabis com finalidades medicinais e industriais. O plantio medicinal só poderá ser feito por pessoas jurídicas, a partir de cotas de cultivo, em "casas de vegetação", ou seja, em estufas, projetadas de modo a impedir o acesso de pessoas não autorizadas, por meio de sistema de videomonitoramento, alarme, cerca elétrica, muro de dois metros, tela de alambrado de aço, entre outras exigências, visando a impedir a disseminação da planta no meio ambiente, permanecendo vetado para as pessoas físicas.

Diferentemente, a Argentina dispõe de registro de pessoas físicas para o cultivo controlado no âmbito de programa nacional da cannabis. Trata-se de procedimento administrativo simplificado, na qualidade de paciente ou de representante legal, em que se obtém uma licença de plantio para si, para terceiro (cultivador) ou no âmbito de associação civil, igualmente licenciada. De se destacar a dispensa de certificação de sementes para pacientes, que devem assinar um termo junto de seus médicos. O regulamento argentino também prevê o limite de até nove plantas florescentes, em ambiente fechado.

De acordo com o PL 399/15, o cultivo em ambiente aberto somente será permitido para o cânhamo de uso industrial, que também exigirá responsável técnico, para atestar o teor de delta-9-Tetra-hidrocanabinol (THC), com acesso de entrada controlado, por meio de cercamento. As exigências também valem para o armazenamento de sementes.

Por cânhamo industrial, compreende-se a variedade da planta do gênero cannabis com teor de THC limitado até 0,3%, para fins não medicinais. Parece-nos um pouco confusa a redação do artigo 23 relativo ao cânhamo industrial, que prevê a comercialização de produtos de uso veterinário sem fins medicinais, com formulações iguais ou inferiores a 0,3% de THC. Haveria, portanto, uma categoria de "uso veterinário sem fins medicinais". De acordo com os comentários oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1962 à Convenção Única de Entorpecentes de 1961, por uso medicinal compreende-se tanto a medicina veterinária, quanto a medicina tradicional. A título comparativo, no Uruguai existe regulamentação específica do cânhamo industrial, quando destinado a finalidades medicinais, veterinárias ou cosméticas. Nesse país vizinho, as plantas para fins industriais estão limitadas ao teor de 1% de THC. A nosso ver, tal regulamentação faz mais sentido que a proposta brasileira, já que, ainda que o percentual de THC não ultrapasse os 0,3%, outros canabinoides eventualmente presentes no cânhamo (como o famoso canabidiol ou CBD) também possuem propriedades terapêuticas, merecendo, portanto, uma regulamentação que inclua o uso industrial e medicinal do cânhamo.

O texto do substitutivo faz diferenciação, para fins de fiscalização, estabelecendo que acima de 1% de THC serão consideradas plantas de cannabis medicinal psicoativas, enquanto que abaixo de 1% serão consideradas plantas de cannabis medicinal não psicoativas, com base em seu peso seco.

O projeto de lei (PL) também sujeita todos medicamentos e produtos de cannabis medicinal de uso humano ou veterinário ao controle especial, sem distinção. Nada obstante, há importante diferenciação do tipo de receituário: formulações não psicoativas, com níveis de THC iguais ou inferiores a 0,3%; e, formulações psicoativas, com níveis superiores.

De se notar que o recente PL 369/2021 (apensado ao PL 399/15) dispõe sobre a aplicação de cannabis sativa e seus derivados na medicina veterinária, com margem de regulamentação pelo Poder Executivo. Segundo este outro PL, deve-se seguir as regras existentes para uso humano, enquanto o Poder Executivo não regulamentar as condições específicas. Atualmente, para humanos, a RDC 327 de 2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabelece como requisito de prescrição que todas opções terapêuticas tenham sido esgotadas, condicionando a prescrição de produtos de cannabis com mais de 0,2% de THC somente para cuidados paliativos.

De outro modo, o PL 399/15 é claro ao dispor que não haverá restrição quanto aos critérios terapêuticos para prescrição de medicamentos ou produtos de cannabis medicinal de uso humano ou veterinário, desde que seja feita por profissional legalmente habilitado. É dizer: assegura-se a liberdade de tratamento com cannabis como primeira opção terapêutica, bastando anuência do paciente, ou de seu responsável legal, e do proprietário do animal.

Ainda, segundo o substitutivo do PL 399/15, as "farmácias vivas" do SUS poderão dispensar produtos, conquanto que sejam realizados testes de validação a respeito dos teores dos principais canabinoides contidos na fórmula, minimamente CBD e THC, o que também vale para as associações de pacientes sem fins lucrativos.

Assegura-se que as associações de pacientes poderão fornecer produtos magistrais ou oficinais fitoterápicos aos seus associados, com atendimento das regras previstas de controle de cultivo, armazenamento, descarte e transporte. Em anexo ao projeto de lei estão dispostas regras específicas de produção para as associações a exemplo: do manual de boas práticas, do plano de gerenciamento de resíduos, do programa de treinamento específico de funcionários e do projeto arquitetônico. A adequação às regras deve ocorrer no prazo de 24 meses, a partir da publicação da lei para as associações já existentes. As novas associações que pretendam fornecer o fitoterápico, já deverão estar adequadas antes de iniciar tal fornecimento.

Vale lembrar que exigências excessivamente restritivas podem representar, no caso concreto, uma violação tanto da autonomia dos pacientes, quanto da autonomia da liberdade constitucional associativa. Existem consagradas práticas populares de saúde com a planta medicinal em questão. Pode-se prever a licença de cultivo associativo, conquanto que seja proporcional, no âmbito de uma política nacional de apoio ao monitoramento de óleos e extratos com cannabis.

O Estado deve criar uma política nacional, com previsão de dotação orçamentária para "farmácias vivas", fundações estatais de saúde, laboratórios públicos, bem como convênios de saúde e parcerias de inovação com associações. O desafio é trazer a pesquisa clínica junto da assistência médico-farmacêutica, com capacitação de profissionais da saúde em plantas medicinais.

Ainda de acordo com ao PL 399, as farmácias magistrais também poderão manipular e dispensar produtos magistrais e oficinais fitoterápicos, "desde que obtenham autorização específica junto ao órgão sanitário federal ou ao órgão agrícola federal", o que não deve ser entendido como registro de medicamento ou autorização sanitária de produto com formulação específica na Anvisa, sob pena de inviabilizar, na prática, a terapia canábica por meio de preparações magistrais. Produtos oficinais podem exigir padrões descritos em monografias constantes do formulário de fitoterápicos da farmacopéia brasileira, já as preparações magistrais podem ter formulações variadas. O requisito geral é da realização de testes "que validem os teores dos principais canabinoides presentes na sua fórmula". Ademais, segue valendo o parâmetro do artigo 8 da Lei 5.991/73, que condiciona a dispensação a "padrões de qualidade oficialmente reconhecidos".

Uma medicina personalizada exige uma liberdade de formulação do(a) médico(a) e, de conseguinte, também de manipulação do(a) profissional farmacêutico(a), com detalhamento da composição e posologia. Paralelamente, pode-se debater a terapia canábica como modalidade de terapia integrativa e complementar, bem como votada uma lei de terapias naturais (PLS 174/2017).

Destaque-se que o artigo 26 do PL 399/15 proíbe a prescrição, dispensação, entrega, distribuição e comercialização de chás medicinais ou produtos sob a forma de droga vegetal da planta para pessoas físicas. De se atentar para a prerrogativa profissional da liberdade de prescrição de médico(a)s, que saberão especificar a forma mais adequada do uso para o tratamento de cada paciente, sendo certo que, em alguns casos, a prescrição é justamente de cannabis in natura para vaporizar, por exemplo. Nesses casos de se sustentar, de um lado, o direito fundamental de não sentir dor crônica e, de outro, a liberdade fundamental de profissão do(a)s médico(a)s. O PL 399/15 teve a preocupação de inserir vedações expressas aos fumígenos tanto de cânhamo industrial, quanto de cannabis medicinal, a nosso ver, sem nenhuma razão médica científica, mas, sim, por puro preconceito.

É sabido que a atual autorregulamentação profissional de médico(a)s do uso compassivo do canabidiol está, ainda, restrita para crianças e adolescentes com epilepsias refratárias aos tratamentos convencionais pela Resolução nº 2.113 de 2014 do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Atualmente, o Anexo 1 da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 26 de 2014 veda a cannabis sp na composição de produtos tradicionais fitoterápicos. Da mesma forma, a RDC 327 de 2019 veda a manipulação de fórmulas magistrais com fitofármacos de cannabis, o que foi reconhecido como abuso de poder em face de farmácias de manipulação pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Salutarmente, o PL 399/15 utiliza a definição "produto magistral fitoterápico derivado de cannabis medicinal", prevendo que os medicamentos e produtos de cannabis medicinal de uso humano ou veterinário poderão ser comercializados "em qualquer forma farmacêutica", assegurando sua prescrição como primeira opção terapêutica.

Por mais, o PL 399/15 perde a oportunidade de retirar os produtos derivados de cannabis de baixo teor de THC de listas de substâncias controladas, como já fizeram Peru, Equador e a própria União Europeia.

A proposta legislativa trata da liberdade de pesquisa, com remissão à Lei de Inovação, definindo pesquisa como "atividade realizada em laboratório em regime de contenção", o que nos parece restritivo para iniciativas de pesquisa a partir de laudos observacionais. O projeto de lei poderia prever o fomento à pesquisa de medicamentos e de tecnologias agrícolas, como proposto pelo parecer da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (SUG nº 6 de 2016), fomento esse que poderia ser estendido à pesquisa etnofarmacológica, inclusive de outras plantas medicinais que possam conter fitocanabinoides.

Finalmente, há necessidade de se pensar em maneiras de compensação histórica, como fez recentemente a legislação de Nova York, a exemplo de quota de participação no mercado canábico para egressos do sistema prisional; em contribuição de intervenção no domínio econômico com instituição de fundo especial para reparação das vítimas da violência urbana e rural ou, alternativamente, em um fundo de incentivo fiscal do setor regulado de cannabis, e em anistia de crimes com cannabis, como previsto no PL 7187/2014, excetuadas certas hipóteses, como os crimes cometidos com violência ou arma de fogo.

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