Embargos culturais

"O Encontro Marcado", de Fernando Sabino

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

9 de maio de 2021, 8h01

"Carro-de-praça", "radiopatrulha", "desquite" e "refresco", são expressões em desuso. Fixadas em um romance, indicam uma boa pesquisa histórica. Encontradas em livro de época, tem-se registro peculiar de um tempo que passou. Não se toma mais um "carro-de-praça", não se espera a "radiopatrulha", não se enfrenta um "desquite" e também não se bebe um "refresco". Contemporâneos vamos de Uber, esperamos a viatura, nos divorciamos, tomamos um suco. Livro de época é juízo de valor que se aplica integralmente ao celebrado "O Encontro Marcado", do escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004).

Spacca
Sabino nasceu em Belo Horizonte. "O Encontro Marcado" foi escrito no Rio de Janeiro, entre março de 1954 e julho de 1956. Pode ser classificado como um romance de formação. É uma narrativa que retoma os períodos formativos de um escritor. Nesse sentido, continua uma tradição literária, a mesma que encontramos em "O Retrato de um Artista Quando Jovem", de James Joyce, em "A Educação de Henry Adams", de Henry Adams, em "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe. "Como e porque sou romancista", de José de Alencar, ainda que muito mais explícito, se enquadraria nessa linha. São livros memoráveis.

Em "O Encontro Marcado", há muito material autobiográfico, que o autor temperou com elementos ficcionais. O leitor é capturado por interessantes referências de verossimilhança. Acredita no autor, na narrativa, ainda que recorrentemente ponha em dúvida se autor e narrador realmente se confundem. Na medida em que o tempo passa, e na medida em que as novas gerações desconhecem os personagens reais da narrativa, no entanto, tem-se a impressão que mais realista o livro fica. É uma obra atemporal.

Há semelhanças entre os personagens centrais (Eduardo, Hugo e Mauro) e nomes também centrais na literatura mineira do século 20. Recomendo a leitura do interessantíssimo "O desatino da rapaziada", de Humberto Werneck, que nos propicia delicioso relato sobre jornalistas e escritores mineiros. A narrativa certamente envolve fatos vividos por Sabino e por seus amigos mais próximos, Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos. A referência ao estudante de medicina, filho de médico, a venda de um esqueleto (Yorick) utilizado para estudo de anatomia é certamente fragmento ocorrido com Hélio Pellegrino, que se notabilizou como psicanalista e literato. Eduardo, o personagem central, era exímio nadador, exatamente como Fernando Sabino, que nadou no Minas Tênis Clube, e que foi campeão sul-americano no nado de costas, em 1939.

Percebe-se ao longo da narrativa uma Belo Horizonte ainda pacata, pequena. Há também muita ação no Rio de Janeiro, em tempos tão diferentes de hoje, como se lê a propósito das andanças do personagem principal no Catete, onde havia muitas pensões, lotadas de jornalistas e pequenos funcionários. O leitor é presenteado com interessantes relatos urbanos.

"O Encontro Marcado" é dividido em duas partes: "A procura" e "O encontro". A infância de Eduardo é relatada com algum pormenor. Era um menino difícil, teimoso, desobediente. Era uma preocupação constante para o pai e para a mãe. Há vários personagens interessantes no enredo, a exemplo da empregada, da costureira, do turco do armazém, da diretora da escola, das irmãs gêmeas, da melhor aluna da classe, de um suicida. São figuras estereotipadas, mas ao mesmo tempo muito reais.

Ainda menino, o rebelde Eduardo foi para o Rio, sozinho. Ganhou um concurso de contos, recebendo o prêmio. O pai, sempre paciente e compreensivo, foi busca-lo. Eduardo estudou o curso médio com os padres, com que se desentendia constantemente, por razões inclusive teológicas. Discutia o tempo todo.

Apaixonou-se pela filha de um ministro. Uma série de situações o levou a um casamento precoce (na verdade, Sabino casou-se com a filha de um governador de Minas Gerais). Contava pouco mais de 20 anos. Acabara de sair do exército. Viveu um tempo em Juiz de Fora, onde prestou o serviço militar obrigatório. Era o tempo do "tiro de guerra". Foi atormentado por anos por causa do suicídio de uma prostituta no Rio de Janeiro, que ocorreu no Hotel Elite, no qual Sabino estava hospedado.

Após o casamento, a vida seguia, com muita bebedeira. O casal enfrentou desgastes, que levaram a um desquite. À época não havia o divórcio. Eduardo revela que não havia escolhido a esposa, fora por ela escolhido. Reconheceu que não poderia responsabilizar ninguém por seu destino. A ele, e somente a ele, é a quem cabia traçar ou modificar a própria história. Com a separação Eduardo tentou retomar seu rumo. Percebe-se como um viúvo, isto é, recorda-se que, enquanto casado, ainda era solteiro. Cavou um lugar na burocracia, distanciando-se da literatura. A morte do pai o sensibilizou pouco, pelo menos aparentemente.

Nas páginas finais desse belo romance os amigos acertam contas com o passado. É um encontro marcado, expressão e circunstância que é nome, fonte de tensão e chave interpretativa do título desse belíssimo romance, bem como da visão realista e pragmática que o autor tem da vida: um palco permanente de desajustes e tensões.

Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos encontraram-se em 1986, por ocasião dos trinta anos de lançamento de "O Encontro Marcado". Hélio Pellegrino faleceu em 1988, Paulo Mendes Campos, em 1991, Otto Lara Resende, em 1992, Fernando Sabino, em 2004. Com a morte desses quatro grandes escritores mineiros, fechou-se um ciclo de ouro da história de nossa literatura.

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