Opinião

O dia em que paguei para minha filha ser brasileira

Autor

  • Bruno Santos Cunha

    é procurador do município do Recife e sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados ex-professor da UFSC mestre em Direito pela USP master of Laws pela University of Michigan Law School doutorando em Direito pela UFPE professor de Direito Constitucional e Administrativo.

8 de maio de 2021, 17h25

O ano de 2016 foi sensacional. Longe de dúvidas, o melhor ano da minha vida. Afinal, naquele ano realizei dois sonhos: fui estudar aquilo que mais gosto em uma das melhores universidades do mundo na área e, para completar, vi nascer o maior amor da minha vida  minha filha! Com esse enredo inicial, nada poderia dar errado. Mas, francamente, deu. Como o próprio título deste texto indica, o Estado brasileiro exigiu que eu pagasse para que minha filha fosse considerada brasileira. Ainda que seja difícil imaginar, no contexto brasileiro, a aquisição de nacionalidade mediante contraprestação em pecúnia, foi isso o que ocorreu.

Minha filha nasceu enquanto eu cursava o mestrado na University of Michigan, na cidade de Ann Arbor, nos Estados Unidos. A partir de seu nascimento em solo americano, a 14ª Emenda à Constituição americana a albergava enquanto cidadã americana apta ao gozo de todos os privilégios e imunidades enquanto tal. É que, na expressa dicção da referida emenda, "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado em que residam". Resolvida de forma simples a questão americana, tratei de buscar aquilo que, para mim, era o principal: meu desejo de ter uma filha brasileira, tal qual o pai e a mãe.

A "questão" brasileira também me parecia simples. É que nossa Constituição federal, em seu artigo 12, I, "c", indica que são brasileiros natos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente. Assim, minha filha seria brasileira nata, apta a exercer, no futuro, os cargos de presidente da República, ministra do STF, oficial das Forças Armadas, entre outros. Bastava, no entanto, que eu a registrasse em repartição brasileira competente. Em vistas disso, fui averiguar a legislação que regulava a matéria.

A Lei Federal n° 6.015/73 (Lei de Registros Públicos ou LRP), em seu artigo 32, caput e §1º, aponta que os assentos de nascimento no exterior (regulados pela lei do local) deverão ser legalizados/certificados pelos cônsules brasileiros e, ato contínuo, "transladados nos cartórios de 1º Ofício do domicílio do registrado ou no 1º Ofício do Distrito Federal, em falta de domicílio conhecido, quando tiverem de produzir efeito no país". Em outras palavras, era necessário que o Consulado-Geral do Brasil em Chicago (responsável pelos serviços consulares aos brasileiros residentes no estado de Michigan, como eu) emitisse a certidão de registro de nascimento e, chegando ao Brasil, que eu solicitasse sua transcrição/ traslado no Cartório de Registro Civil do 1º Ofício de minha residência no Brasil. Dito e feito.

Fui ao consulado em Chicago e, a partir do State of Michigan Department of Community Health Certificate of Live Birth, foi emitida a certidão consular de registro de nascimento de minha filha. Em específico, o documento consular brasileiro mencionava, de forma acertada, que o registro havia sido efetuado à luz no artigo 32 da Lei de Registros Públicos e do artigo 12, I, "c", de nossa Constituição Federal. Ao final do documento  e como não poderia deixar de ser , o vice-cônsul indicava a gratuidade do serviço consular de registro de nascimento.

De fato, a LRP (artigo 30), a Lei Federal n° 8.935/94 (artigo 45) e a Lei Federal n° 9.265/96 (artigo 1º, VI) estipulam a integral gratuidade do registro civil de nascimento para qualquer brasileiro, aí incluída a primeira certidão respectiva. No entanto, apesar de não ter realizado qualquer gasto perante o Consulado-Geral do Brasil em Chicago, minha filha ainda não era considerada brasileira, eis que pendente a transcrição/traslado de sua certidão consular no Brasil. Jurídica e genericamente falando, o registro de nascimento de minha filha existia e era válido; no entanto, de acordo com a lei (artigo 32, §1º, da LRP), não tinha eficácia no Brasil (plano da produção de efeitos). Minha epopeia pela brasilidade de minha filha, pois, ainda estava no início.

De volta ao Brasil, procurei o Cartório do 1º Ofício de Registro Civil do Recife para a transcrição da certidão consular de registro de nascimento de minha filha. Para minha surpresa, a efetiva aquisição da nacionalidade brasileira para uma brasileira nata nascida no exterior tinha um preço: aproximadamente R$ 100. É que, no estado de Pernambuco, a Lei Estadual n° 11.404/1996, que consolida as normas relativas às taxas, custas e aos emolumentos nos serviços notariais e de registro, fixava o valor que seria devido ao registrador por esse ato [1].

Estruturalmente, os brasileiros natos nascidos no exterior têm, em seu registro de nascimento, a ocorrência de um ato administrativo composto para que o registro seja plenamente existente, válido e eficaz no Brasil. Referido ato composto, por redundância, é composto dos seguintes atos (todos devendo ser plenamente gratuitos, na forma da legislação acima citada): "ATO 1  Registro Consular (que, no caso, foi realizado no Consulado-Geral do Brasil em Chicago); ATO 2  Traslado/ transcrição do Registro Consular no 1º Ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais de seu domicílio ou do Distrito Federal". Por óbvio  e seguindo a legislação acima referenciada , restava impossível qualquer cobrança para os dois atos acima expostos.

A proteção da prole  e de seu patamar de cidadania mínimo  é expressa na legislação quando se vislumbra que as leis acima estipulam a integral gratuidade do registro civil de nascimento para qualquer brasileiro (e aqui não importa se tal gratuidade invoca uma isenção tributária, uma regra de não incidência, uma regra de imunidade de taxa ou uma simples gratuidade regulatória/administrativa). O que importa, pois, é a definição, em norma geral de caráter nacional, da impossibilidade de cobrança pelo registro civil de nascimento de qualquer brasileiro (seja sobre o registro consular, seja para a transcrição/ traslado no registro civil no Brasil).

Nesse quadro, a lei estadual que estipula emolumentos não pode instituir uma taxa (tributo) para um ato/serviço para os quais as normas gerais federais (Lei de Registros Públicos e demais leis) preveem a impossibilidade total de qualquer cobrança (e aqui, repita-se, não importando a conclusão que se chegue quanto à natureza de tal impossibilidade de cobrança: isenção tributária, regra de não incidência, regra de imunidade de taxa ou uma simples gratuidade regulatória/administrativa). Assim, a única forma possível de interpretar as leis estaduais estipuladoras de valores sobre atos de transcrição/traslado de registro civil de nascimento é no sentido de que tais leis disciplinam o custo (valor) dos atos/serviços apenas para fins de compensação, pelo Estado, aos registradores civis das pessoas naturais que praticaram os atos gratuitamente aos cidadãos (na forma da Lei Federal n° 10.169/2000, em seu artigo 8º) [2].

Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regula a matéria do traslado de certidões de registro civil de pessoas naturais emitidas no exterior em sua Resolução n° 155/2012. No entanto, nada é dito na referida resolução sobre eventuais custos aos registrantes. Isso, é óbvio, pelo simples fato de que tais atos devem ser gratuitos, na forma da lei. Assim, aproveitando a já existente regulação da matéria pelo CNJ e sua atribuição para apreciar reclamações contra serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público, o Conselho seria o local perfeito para dirimir a questão da cobrança pela integral nacionalidade brasileira de minha filha.

Indignado com a cobrança indevida pelo cartório no Recife, provoquei o CNJ, em representação à minha filha, por intermédio de pedido de providências [3]. Em breve síntese — e após toda explicação jurídica minuciosa , a tese apresentada ao Conselho era extremamente básica, quiçá rudimentar: "Os brasileiros natos nascidos no Brasil têm plena gratuidade para que o ato de seu registro civil de nascimento exista, seja válido e produza efeitos em território nacional; por outro lado, os brasileiros natos nascidos no exterior não gozam da plena gratuidade legalmente estipulada para que o ato de seu registro civil de nascimento exista, seja válido e produza efeitos em território nacional". Um estudante de Direito do primeiro período não teria dificuldade em identificar a excentricidade jurídica da situação.

É que, além de afronta direta à legislação que prevê a gratuidade, a cobrança de qualquer valor para que a brasilidade de minha filha produzisse efeitos no território nacional acabaria por estabelecer uma distinção inconstitucional odiosa entre brasileiros natos nascidos no Brasil e brasileiros natos nascidos no exterior, em afronta também expressa ao artigo 5º, caput, da CF/88, que prevê que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Minha filha, no entanto, era menos igual do que os demais brasileiros, tendo que pagar por sua brasilidade.

O Conselho Nacional de Justiça, no entanto, ignorou minha tese. Além de enveredar por uma seara tributária que em nada se relacionava à questão, o CNJ decidiu, ao final, que "diversamente do alegado, o registro em repartição consular já garante a nacionalidade brasileira à menor. Trata-se de ato que atinge sua perfeição, validez e eficácia para o mundo jurídico na própria repartição. Desse modo, no instante em que foi registrada no exterior, [a menor] passou a gozar do status de brasileira nata. Somente esse ato é alcançado pelo artigo 45 da Lei n° 8.935/1994. A transcrição/ traslado é ato com finalidade diferente. Não se presta a garantir a condição de brasileiro nato a quem é destinatário do referido procedimento, mas sim a conceder àquele que já é cidadão brasileiro as condições para exercer a cidadania no território nacional e para praticar atos da vida civil, tais como comprovação e/ ou alteração de estado civil, aquisição de imóveis e inventários. Portanto, ao segundo ato não se aplica o disposto no artigo 45 da Lei n° 8.935/1994".

Salta aos olhos, com as devidas vênias, a teratológica afirmação do Conselho, segundo o qual minha filha já seria brasileira nata com o registro consular, sendo necessário o pagamento do traslado/transcrição apenas (!!!) para que ela pudesse exercer, em território nacional, os atos da vida civil. À falta de pagamento, minha filha seria uma brasileira de segundo escalão, capitis diminutio, eis que impossibilitada de ter identificação civil, adquirir propriedade imóvel, casar ou legar seus bens no Brasil. Em outras palavras, o CNJ chancelava a existência de um verdadeiro eunuco jurídico, uma casta menor, um dalit brasileiro, um "cidadão" de segunda categoria e com menos direitos que os demais.

Além disso, o Conselho, com sua criativa interpretação, estabelecia uma estapafúrdia situação à minha filha: ela era integralmente brasileira para agir como tal fora do Brasil; aqui dentro, no entanto, precisava pagar para ter direitos mínimos, eis que seu registro de nascimento não produzia efeitos em território nacional.

A tese adotada pelo CNJ para chegar a essa despropositada quadra jurídica repousava na alegação de que não lhe caberia determinar o não cumprimento da Lei Estadual n° 11.404/1996, que dispunha sobre o valor dos atos registrais e era oriunda do legítimo exercício da competência legislativa dos estados. No entanto, é certo que não se tratava de negativa de cumprimento da lei estadual, sobretudo pelo fato de que a referida lei apenas precificava os serviços registrais para fins de compensação pelo Estado, na forma do artigo 8º da Lei Federal nº 10.169/2000, e nunca para fins de cobrança dos usuários de um serviço de registro legalmente gratuito.

Ao confundir as situações e se negar a atuar mesmo após recurso, o Conselho Nacional de Justiça concluiu não haver irregularidades na cobrança por um serviço legalmente disposto como gratuito. Entendeu, também, que existem brasileiros natos que, ocasionalmente, são mais natos do que outros, mas isso era um problema meu e de minha filha.

Por fim, o que se vê é que, na prática, a cobrança manifestamente indevida pelo ato de registro civil de pessoas naturais nascidas no exterior (brasileiros natos nascidos no exterior) representa notável ilegalidade e dá azo a uma inconstitucional e odiosa distinção entre brasileiros natos nascidos no Brasil e brasileiros natos nascidos no exterior. Em vistas disso  e sabedor que nenhum órgão ou instituição se importava com tal bizarrice , o que me restou como solução foi comprar, por R$ 100, a brasilidade ampla de minha filha: esse, enfim, foi o dia em que paguei para minha filha ser brasileira.

 


[1] Veja-se, no ponto, que diversos Estados da federação realizam a mesma cobrança a partir de leis reguladoras de custas e emolumentos registrais, a exemplo de São Paulo (Lei n° 11.331/2002), Minas Gerais (Lei n° 15.424/2004) e Rio de Janeiro (Lei n° 3.350/1999).

[2] Lei Federal n° 10.169/2000  artigo 8º. Os Estados e o Distrito Federal, no âmbito de sua competência, respeitado o prazo estabelecido no artigo 9o desta Lei, estabelecerão forma de compensação aos registradores civis das pessoas naturais pelos atos gratuitos, por eles praticados, conforme estabelecido em lei federal.

[3] CNJ  Pedido de Providências n° 0006466-44.2017.2.00.0000.

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