Interesse Público

Segregação de funções nas licitações e contratos

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6 de maio de 2021, 8h01

A nova lei de licitações e contratos — Lei nº 14.133/21 — trouxe várias inovações que, certamente, serão objeto de debates por muito tempo antes da plena aplicabilidade do novo regime, sem concorrência com os regramentos anteriores. Um dos princípios que têm chamado a atenção dos estudiosos no rol constante do artigo 5º é o princípio da "segregação de funções". Em razão dos propósitos deste artigo, entenderei o termo "princípio" como norma dotada de alto grau de generalidade, com função primordial de direcionar a interpretação das demais regras de um sistema, abstendo-me de maiores aprofundamentos a respeito.

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O Conselho Federal de Contabilidade, em norma técnica, conceitua a expressão "segregação de funções":

"Segregação de funções: Atribuir a pessoas diferentes as responsabilidades de autorizar e registrar transações, bem como manter a custódia dos ativos. A segregação de funções destina-se a reduzir as oportunidades que permitam a qualquer pessoa estar em posição de perpetrar e de ocultar erros ou fraudes no curso normal das suas funções" [1].

Na definição do Glossário de Controle Externo do TCU, trata-se de um princípio básico do controle interno, essencial para a sua efetividade: "Consiste na separação de atribuições ou responsabilidades entre diferentes pessoas, especialmente as funções ou atividades-chave de autorização, execução, atesto/aprovação, registro e revisão ou auditoria" [2].

Em apertada síntese, segregar funções implica evitar que um agente detenha atribuições de fiscalização e controle sobre seus próprios atos. Trata-se de medida preventiva que visa a evitar não somente fraudes, mas sobretudo riscos de conflitos de interesses, desconsideração de falhas e continuidade de erros.

No plano normativo, a regra constante do artigo 7º, §1º, da Lei 14.133/21 é importante para a compreensão do sentido da segregação. De acordo com o dispositivo, é vedado à autoridade máxima do órgão ou entidade a designação do mesmo agente público para "atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação".

Segregar, entretanto, não significa incomunicabilidade com os demais agentes. Pensar a contratação pública como um ciclo remete à importância de sinergia transparente entre os atores dos diversos papéis para que os objetivos da contratação (e da eventual licitação) sejam realmente atingidos. Essa é uma das funções da governança: permitir, racionalmente, que os agentes exerçam efetivamente seus diferentes papéis individuais, com pleno conhecimento do ciclo total. É necessário disciplinar normativamente — por meio de regulamento editado pelo órgão ou entidade — as competências dos diversos agentes, de acordo com cada estrutura administrativa. Na identificação, as competências cuja concentração seja incompatível devem ser identificadas para que sejam atribuídas a agentes diferentes, racionalizando a interpretação do princípio. De acordo com o TCU, é necessário:

"(…) Identificar as decisões consideradas críticas e respectivas alçadas e segregação de funções; definir um limite de tempo razoável para que o mesmo indivíduo exerça uma função ou papel associado a decisões críticas de negócio; formalizar os instrumentos que suportam a atuação das instâncias e que direcionam a tomada de decisão; revisar periodicamente os processos de decisão da organização, de modo a identificar novas decisões que devam ser consideradas como críticas" [3].

Dessa forma, não se trata simplesmente de verificar todas as competências incluídas na fase preparatória da contratação pública (artigo 18 da Lei 14.133/21) e atribuí-las a agentes distintos. É necessário verificar quais dessas competências não podem ser exercidas por um mesmo agente em razão dos riscos de ocultação de erros, conflito de interesses e ocorrência de fraudes — em não existindo tal risco, em razão das características das competências e da sequência de etapas do procedimento, nada obsta a possibilidade de que o mesmo agente atue em distintas atribuições.

Uma breve olhada na jurisprudência do TCU permite verificar exemplos concretos de situações que atentam contra a necessidade de segregação de funções: o agente fiscalizador não pode ser, ao mesmo tempo executor, em um mesmo contrato administrativo (Acórdão 140/2007-Plenário); agente que atesta liquidação de serviços não pode ser o mesmo a autorizar o pagamento (Acórdão 185/2012-Plenário); fiscalização e e supervisão do contrato devem ser realizadas por agentes administrativos distintos (Acórdão 2296/2014-Plenário); verificação de legalidade não deve ser realizada por instância diretamente subordinada à área responsável pela contratação (Acórdão 1682/2013-Plenário); é vedado o exercício, por uma mesma pessoa, das atribuições de pregoeiro e de fiscal do contrato celebrado (Acórdão 1375/2015-Plenário); solicitação de compra não deve ser efetuada por comissão de licitação (Acórdão 4227/2017-Primeira Câmara); um mesmo servidor não pode ser integrante da comissão de licitação e responsável pelo setor de compras (Acórdão 686/2011-Plenário); servidor não pode participar da fase interna do pregão eletrônico (como integrante da equipe de planejamento) e da condução da licitação, como pregoeiro ou membro da equipe de apoio (Acórdão 1278/2020-Primeira Câmara); pregoeiro não deve ser responsável pela elaboração do edital (Acórdão 3381/2013-Plenário).

Finalmente, convém repetir: é necessário um estudo adequado das diversas competências e o conhecimento da realidade de cada órgão ou entidade para identificar as atividades que não podem ser desempenhadas por um mesmo agente. Essa identificação é especialmente importante para as pequenas estruturas administrativas, que contam com número reduzido de servidores. Ainda assim, segregar não significa isolar — é preciso conhecimento e comunicação entre os diversos setores para considerar a contratação pública como um ciclo voltado ao atendimento de necessidades públicas.

 


[1] CFC. Conselho Federal de Contabilidade. NBC TA 315 (R1), de 5/9/2016. Disponível em: http://www1.cfc.org.br/sisweb/SRE/docs/NBCTA315(R1).pdf. Acesso em: 4/4/2021.

[2] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Vocabulário de controle externo do Tribunal de Contas da União / Tribunal de Contas da União. — 3ª edição revista e ampliada — Brasília : TCU, 2019.

[3] Brasil. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a organizações públicas e outros entes jurisdicionados ao TCU / Tribunal de Contas da União. Edição 3 – Brasília: TCU, 2020.

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