Opinião

O princípio da culpabilidade e o mercado de capitais

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5 de maio de 2021, 19h20

Encontramos no Código de Hamurabi (1728-1686 a.C) que, se um construtor construísse uma casa sem fortificá-la e a mesma, desabando, matasse o morador, o construtor seria morto; mas se também morresse o filho do morador, também o filho do construtor deveria ser morto. Lá, a responsabilidade penal estava associada tão somente a um fato objetivo, e não em quem houvesse determinado tal fato. Era, pois, uma responsabilidade penal objetiva difusa.

Saltando milênios e analisando o Direito Penal atual, percebemos que houve, de fato, um longo e robusto processo (inconcluso) que transformou radicalmente as bases da responsabilidade penal contemporânea. Expressões desse fato estão presentes nas mais variadas formas e nos mais variados textos legais, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 5, 1, 3) e até mesmo na nossa Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLV).

Toda a evolução do conceito de culpabilidade caminhou no sentido de se estabelecer uma proibição de que a pena ultrapassasse a pessoa do delinquente, ou que as regras penais não só se relacionassem com essas proibições, como circunscrevesse a imputação objetiva dos seus resultados (artigo 13, CP).

Ocorre que, conforme se observa na Lei 4.728/65, artigo 73, § 2º:

"Artigo 73, § 2º  A violação de qualquer dos dispositivos constituirá crime de ação pública, punido com pena de 1 a 3 anos de detenção, recaindo a responsabilidade, quando se tratar de pessoa jurídica, em todos os seus diretores" (grifos dos autores).

O princípio da culpabilidade tem em sua formulação a característica de opor-se a qualquer espécie de responsabilização objetiva, como a acima descrita no trecho da lei que disciplina o mercado de capitais. Nota-se a tentativa do legislador, não familiarizado com a tendência humanista da Constituição Federal atual, da imposição de responsabilização objetiva aos diretores da pessoa jurídica em questão, desrespeitando, assim, a exigência de que a pena seja infligida senão quando a conduta do sujeito, ainda que casualmente associada, lhe seja subjetivamente atribuível.

A responsabilidade penal é sempre pessoal e nunca presumível. Não há — e nem pode haver — responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva em matéria penal.

Partindo de uma aplicação análoga, em paráfrase ao entendimento da Suprema Corte, no tocante ao HC 105953/SP, de relatoria ex-ministro Celso de Mello, entende-se que:

"A mera invocação da condição de diretor (…), sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule, concretamente, à prática criminosa, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório" (grifo dos autores).

Traz-se em voga, a fim de elucidar o assunto trazido pelo presente artigo, o caso — pouco conhecido — do Union Industrial Bank, de Flint, Michigan (EUA), pouco antes do crash da Bolsa de Valores de Nova York. Em sua maioria, o corpo diretor da instituição financeira esteve manipulando os livros contábeis a fim de expor o capital dos correntistas à especulação no mercado de ações.

Contudo, pelo "bom trabalho" dos fraudadores, o presidente do banco, Grant Brown, não possuía conhecimento da fraude que ocorria na sua própria empresa e, quando a crise de 1929 chegou aos Estados Unidos, o banco se descobriu insolvente e os diretores foram sentenciados à prisão.

Se, mediante analogia, aplicarmos a responsabilização penal objetiva, explicitamente presente no segundo parágrafo do artigo 73 da Lei 4.728/65, o presidente do Union Industrial Bank, de forma semelhante aos demais diretores, deveria ser privado da liberdade, mesmo que não tivesse conhecimento da conduta fraudulenta.

Tal pretensão hoje se demonstra arbitrária. Uma condição irreconciliável com as tendências cidadãs da nossa Constituição. Não há como negar ou ignorar o descompasso dessa afirmativa para com as tendências liberais assumidas pela dogmática penal brasileira.

Até mesmo se compararmos o texto da Lei 4.728/65 com a Constituição vigente à época, poder-se-ia testemunhar a flagrante inconstitucionalidade frente ao já presente princípio da culpabilidade. Nesta linha diz a CF/46:

"Artigo 141, §30   Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente".

A responsabilização penal objetiva fere de morte tudo o que se entende por Direito Penal moderno. Franz Von Liszt afirmava que o Direito Penal é a última barreira da política criminal. Essa ideia surgiu quando lhe questionaram sobre as discussões de seu tempo, em torno do novo paradigma de política criminal de cunho sociológico. Era discutida a substituição do Direito Penal por uma mentalidade que submetesse todo ser humano perigoso à comunidade a um processo de "inocuização" pelo tempo que fosse necessário. E foi aí, nesse contexto conturbado, que Liszt disse a frase imortal: ''O Direito Penal é a Carta Magna do delinquente''.

Já para Claus Roxin, os fins do Direito Penal devem estar orientados para o alcance dos fins político-criminais. E, uma vez que o Direito Penal reside na tutela subsidiária dos bens jurídicos, somente há delito quando há conduta apta a produzir algum resultado que de alguma forma viole ou ameace violar algum bem jurídico penalmente relevante.

Ainda que a norma aqui analisada não receba o seu devido status de inconstitucionalidade, a conduta do diretor seria inepta para produzir resultado, persistindo a atipicidade da conduta. Esse é um reflexo da má técnica legislativa que desde sempre se manteve alheia aos pressupostos de validade do sistema penal. Um verdadeiro risco às liberdades individuais e ao bom funcionamento do mercado de capitais como um todo.

 

Referências bibliográficas
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro;

ARAÚJO, Fábio Roque. Culpabilidade, Livre-Arbítrio e Neurodeterminismo;

CONDE, Munõz. Teoria Geral do Delito.

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    é criminalista, coordenador nacional do Clube Metajurídico, presidente do núcleo jurídico do Neoiluminismo, autor no Canal de Ciências Criminais, membro do International Center for Criminal Studies e palestrante.

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    é acadêmico de Direito e acadêmico de Ciências Econômicas, especialista em investimentos e colunista do Grupo Top&Down e Neoiluminismo.

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