Opinião

O ANPP e a Justiça Militar: um encontro possível?

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5 de maio de 2021, 6h35

A despeito do posicionamento pessoal contrário ao instituto do acordo de não persecução penal (ANPP), não se pode simplesmente ignorar a sua existência. É claro que se pode bradar contra o avanço progressivo de uma lógica econômica no Direito, que, com o ANPP, ganha mais um capítulo. Além disso, não se pode desprezar o fato de que o Estado-acusação, ao contrário do que se sucede com a defesa criminal, não pode se valer do agir estratégico  e essa vedação decorre da constitucionalização das garantias ao Ministério Público —, o que vai de encontro com a lógica que rege o ANPP. Porém, a crítica pautada nesses dois argumentos se mostra infrutífera, pois se trata de um instituto inserido na Justiça penal negocial e que, até o presente momento, não teve a sua incompatibilidade constitucional declarada pelo Supremo Tribunal Federal. Com uma possível inspiração na dicotomia weberiana estabelecida entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, passa-se a problematizar algumas questões relativas ao novel instituto.

A aceitação do acordo de não persecução penal, sem sombra de dúvida, envolve uma radical mudança da mentalidade jurídica, tal como apontado por Alexandre Morais da Rosa:

"A atividade negocial instaurada em face da abertura do acordo de não-persecução penal parte da noção de que o vendedor e comprador querem maximizar a utilidade do negócio jurídico a ser realizado, minimizando as perdas. Não se trata de negociação 'soma zero', em que o ganho do comprador é igual à perda do vendedor, exigindo-se, assim, novas ferramentas de leitura, especialmente dos campos da economia, administração, psicologia e sociologia, envoltas sob o foco da 'teoria da tomada da decisão' (…) A formação do mercado da pena e, assim, da compra e venda, com preços negociados, será o ambiente do acordo de não persecução" [1].

Ainda nesse momento introdutório, não se pode desprezar que outro instituto próprio da Justiça penal negocial/consensual, a colaboração criminal, se mostrou recentemente uma ferramenta abusiva empregada em rumoroso e midiático caso penal, a operação "lava jato". Tudo isso somente vem a indicar que, mesmo para os fervorosos defensores desse mercado penal, a prudência há de ser um valor sempre presente pelos atores jurídicos.

Todavia, como dito inicialmente, o ANPP se mostra uma realidade no cotidiano forense e é justamente por essa razão que se deve problematizar o instituto e sempre tendo como norte os direitos e garantias fundamentais.

O primeiro ponto a ser destacado, nesta análise, consiste no exame sobre o cabimento, ou não, do acordo de não persecução penal nos crimes militares. Antes mesmo de se querer invocar qualquer conceito jurídico indeterminado ou mesmo de natureza metafísica, é imprescindível volver os olhares para a ordem jurídica, mais especificamente na aferição de alguma proibição legal nesse sentido. A Lei nº 13.964/19  o chamado pacote "anticrime" [2]  em momento algum impede a celebração da avença processual diante de crimes militares.

Ora, esse dado não pode ser simplesmente ignorado, já que o princípio da legalidade não pode ser afastado da responsabilização penal militares ou mesmo dos civis quando a lei castrense se fizer presente. Caso o legislador ordinário tivesse o intento de impedir o ANPP para os crimes militares, teria seguido a trilha que culminou com o artigo 90-A, Lei nº 9.099/95. Até a referida alteração legislativa que acrescentou o mencionado dispositivo na Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, o Supremo Tribunal Federal não impediu a incidência dos institutos despenalizadores previstos na legislação que concretizou o disposto no artigo 98, inciso I, Constituição da República.

O desrespeito ao princípio da legalidade embasou uma forte resistência à aplicação da Lei nº 9.099/95 no âmbito da Justiça Militar, o que, inclusive, ensejou a elaboração do Enunciado nº 9 da súmula de jurisprudência dominante do Superior Tribunal Militar, bem anterior à sanção da Lei nº 9.839/99 que acrescentou o artigo 90-A, Lei nº 9.099/95:

"A Lei nº 9.099, de 26.09.95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, não se aplica à Justiça Militar da União".

O destacado enunciado sumulado constitui um claro exemplo de uma atuação própria dos tribunais brasileiros que sequer se mostram capazes de observar o primado da lei, conquista da modernidade, que visa à proteção do ser humano do arbítrio promovido pelos caprichos daquele que exerce parcela do poder. A atuação do Superior Tribunal Militar (STM) narrada não pode ser descrita como um caso isolado, podendo ser destacada a crítica que Lenio Streck apresenta ao Enunciado nº 500 da súmula de jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça:

"Então, o que houve? O que ocorreu é que, no caso da SNV [súmula não vinculante], o STJ substituiu-se ao legislador. Colocou na lei os juízos éticos, políticos e morais que não eram os do legislador. Violou não somente os limites semânticos da lei (por isso, é ilegal), como também violou os princípios da presunção da inocência e da separação dos poderes" [3].

Ainda que se reconheça a disciplina, a hierarquia e o pundonor militares como signos imprescindíveis para a vida na caserna e, que, por essa razão, devem ser levados em consideração por essa Justiça especializada, não se mostra possível transpor o princípio da legalidade. Essa defesa intransigente da legalidade é que permite dissentir do que já veio a ser defendido por parcela da doutrina especializada na Lei nº 9.099/95:

"Em verdade, é necessário admitir que o Direito Penal Militar, por si mesmo, tem as suas especiais características, não podendo interpretá-lo sem um cuidado maior, justamente por conta da qualidade das pessoas envolvidas na sua aplicação e da relação que deve existir entre os militares. Em outras palavras, os princípios da disciplina e da hierarquia são a base da vida militar e devem orientar a aplicação das normas entre militares" [4].

Muito embora não tenha força cogente e até mesmo já não se mostre um atual entendimento, não se pode ignorar o fato de que o Conselho Superior do Ministério Público Militar (CSMPM) se posicionou favoravelmente à celebração do acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Militar [5].

Ai de ti, ator jurídico que admite o ANPP para o cidadão comum e sem qualquer razão jurídica idônea impede que esse direito seja usufruído por um militar ou mesmo por um civil acusado de crime militar! Não há que se falar em impeditivo legal e, portanto, pode ser celebrado o negócio processual e homologado pelo juízo militar, desde que presentes os requisitos estabelecidos no Código de Processo Penal, que se aplica ao processo penal militar, vide o disposto no artigo 3º, Código de Processo Penal Militar (CPPM).

Não basta se insurgir contra qualquer tentativa ilegal para impedir a feitura do ANPP diante dos crimes militares, é preciso aprofundar essa questão, o que implica apontar para a necessidade de confissão como requisito e para a possibilidade de o ANPP lastrear a imposição da sanção administrativa de exclusão da carreira.

Para a celebração do ANPP, a título de requisito, é exigida uma confissão formal e circunstanciada, o que já permite a elaboração de questionamento com lastro no direito a não se autoincriminar. A única forma de resguardar a compatibilidade dessa exigência com o texto constitucional  aplicação de interpretação conforme à Constituição  é assegurar que essa confissão não possui qualquer valor distinto daquele exigido para a celebração do ANPP. E essa preocupação tem relação imediata com a divisão dos militares entre oficiais e praças, pois se depara com distinta solução para a sanção administrativa cabível em caso de responsabilização. Se oficial, a perda do posto e da patente necessita de prévia manifestação judicial, vide o disposto no artigo 142, §3º, incisos VI e VII, e artigo 42, §1º, ambos da Constituição da República. Não há previsão similar para as praças, o que permite possível perda da graduação por força de decisão administrativa. Logo, uma confissão em ANPP poderia servir como razão de ser da exclusão de uma praça.

Além disso, à defesa criminal, ainda mais nos casos de que se trata de uma praça a celebrar o ANPP, caberá lutar pela fixação de cláusula de confidencialidade. O acordo deverá obedecer, portanto, a lógica do sigilo. Em um momento inicial, é possível que essa solução venha a causar certa perplexidade, quer seja pelo fato de a publicidade ser a marca dos atos processuais, quer seja pelo fato de ser da essência do regime democrático o exercício do poder de forma visível. Contudo, a Constituição da República prescreve a possibilidade de restrição da publicidade e o próprio artigo 28-A, §2º, CPP, caminha nesse sentido.

Enfim, a questão do acordo de não persecução penal para os crimes militares demonstra os desafios impostos para a defesa criminal. Convicções pessoais não poderão servir como óbices para soluções aceitas por quem busca se safar da forma mais rápida possível da persecução penal. A lógica mercantil também se encontra presente no sistema de justiça criminal, não existindo impedimentos legais para que alcance os crimes militares. À defesa restará o cuidado com as repercussões dessa avença, o que justifica a imposição do sigilo do ANPP nesse caso, sendo certo que a publicidade restrita é prevista constitucionalmente. Somente com esse mosaico de cuidados é que se mostrará possível a solução negociada na Justiça Militar.

 


[1] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020. p. 519.

[2] Aqui não se pode desprezar para a crítica de Marcos Paulo Dutra Santos quanto a essa nomenclatura: "O Projeto de Lei nº 10.372/2018, oriundo da Câmara dos Deputados, que, no Senado Federal, recebeu numeração 6.341/2019, desaguou na Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, prontamente adjetivada pacote 'anticrime', nomenclatura, aliás, infeliz, porque contempla, subliminarmente, a antítese, ou seja, a existência de propostas legislativas pró-crime, quadra inimaginável. Chega a pecar, inclusive, pela empáfia, sugerindo que as críticas porventura formuladas ao pacote 'anticrime' seriam, em verdade, favoráveis à criminalidade. Por tais razões, evitaremos a expressão, referindo-se à lei ou à reforma de 2019." (SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 1)

[3] STRECK, Lenio. Súmula não vinculante 500 do STJ é inconstitucional e ilegal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-nov-08/lenio-streck-sumula-nao-vinculante-500-supremo-inconstitucional-ilegal.

[4] CHINI, Alexandre; FLEXA, Alexandre; COUTO, Ana Paula; ROCHA, Felipe Borring E COUTO, Marco. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 506.

[5] A Resolução nº 101, Conselho Superior do Ministério Público Militar, em seu artigo 18, disciplinava o acordo de não-persecução penal nos crimes militares foi revogada, em 29 de outubro de 2020, pela Resolução nº 115, Conselho Superior do Ministério Público Militar.

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