Garantias do Consumo

Liberdade de expressão e consumo: quais os limites do mercado?

Autor

  • Fernanda Nunes Barbosa

    é advogada doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) professora da Graduação em Direito e do Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter diretora adjunta de Comunicação do Brasilcon e editora da série "Pautas em Direito"/Editora Arquipélago.

5 de maio de 2021, 8h02

A ONG Artigo 19 publicou recentemente o Relatório Global de Expressão 2020, reunindo informações de vários países, entre eles o Brasil, sobre o grau de liberdade que vigora nas respectivas sociedades. Foram 25 indicadores utilizados na análise de 161 países, criando uma pontuação global sobre a liberdade de expressão para cada país, que vai de zero a cem e que pode ser expressa em cinco categorias: em crise (1-9); altamente restrito (20-39); restrito (40-59); pouco restrito (60-79); aberto (80-100) [1].

Conforme aponta o relatório, em 2019 o mundo ingressou na pior crise da liberdade de expressão em décadas, com a ascensão de líderes populistas hostis ao jornalismo, à ciência e ao envolvimento em organismos multilaterais de direitos humanos [2], o que repercute na qualidade de vida da população global, notadamente dos países afetados. O Brasil, aliás, foi o país no qual se observou a maior queda de pontuação do mundo em um, cinco e dez anos. Atualmente, o país ocupa a 94ª posição no ranking de 161 países, com 46 pontos e na categoria de país com liberdade de expressão "restrita" [3].

A liberdade de expressão é muito mais que um direito individual. Ela é um direito social, coletivo, estrutural. Embora possa ser reclamada pelos indivíduos, ela é precondição para um processo eminentemente social, o da deliberação democrática. Quando o Estado mobiliza a máquina pública para promover desinformação, polarização, reduzir a transparência e deixar que os diferentes interesses sociais se autorregulem independentemente de suas forças e dos valores que representem na sociedade, ele não promove liberdade, mas a sufoca [4].

Promover a liberdade de expressão é também papel do Estado, que não pode mais ser visto contemporaneamente como um inimigo da liberdade, conforme sustenta um ultrapassado discurso liberal [5]. O Estado é quem detém o poder de fazer valer esse direito para todos, o que, em última análise, concretizará outro importante valor liberal, o da igualdade, agora material e não apenas formal. A liberdade não pode ser um valor relativo nesse sentido, mas absoluto, garantido para todos.

Como bem apontam Holmes e Sunstein, hoje, quando o Estado norte-americano limita, por exemplo, o direito da indústria do cigarro de fazer propaganda comercial de seus produtos, ele está também protegendo, de certa forma, a liberdade dos jovens, uma vez que o indivíduo dependente não pode simplesmente "optar" por fumar [6]. Ainda que a justificativa nos Estados Unidos seja a de que esse tipo de expressão comercial favorece uma conduta irresponsável entre os jovens, e que "o Estado não pode favorecer a liberdade individual assumindo uma postura de laissez-faire", o resultado é a promoção da liberdade desse grupo social, já que favorece o equilíbrio de discursos pró-dependência (o discurso do mercado) com discursos pró-saúde. Ademais, é importante destacar que tanto liberdade quanto igualdade são direitos que têm um custo (social e orçamentário), que deve ser suportado pelo Estado (ou seja, por toda a sociedade). De fato, "na medida em que a garantia dos direitos depende da vigilância judicial, os direitos custam no mínimo o montante necessário para recrutar, treinar, fornecer, pagar e (como não?) monitorar os órgãos judiciais que guardam nossos direitos básicos" [7].

Mas à pergunta sobre o que a liberdade de expressão tem de fato a ver com o direito do consumidor a resposta pode se dar de diferentes formas. Não trataremos aqui das divergências teóricas que opõem aqueles que defendem que o discurso mercadológico está compreendido no tema (e, portanto, na proteção em maior ou menor grau) da liberdade de expressão e aqueles que sustentam que a publicidade comercial é tema mais afeito à livre iniciativa ou diretamente à ordem econômica. Para além desse importante e extremamente válido debate, o problema aqui será, ainda que resumidamente e a partir de hipóteses concretas, apontar algumas falhas de Estado e alguns limites que devem ser impostos para o discurso mercadológico [8].  

Primeiramente, pode-se suscitar o peso negativo que tem para um direito o esvaziamento de poder do(s) órgão(s) de governo que fazem valer esse direito [9]. Se um grupo político pretender diminuir os direitos do consumidor, um dos caminhos sem dúvida será diminuir a autoridade do sistema estruturado para defendê-lo. Abafa-se, com isso, a voz do consumidor e, por consequência, seu discurso passa a não ser mais ouvido. Será necessário um tremendo gasto de energia para que a sociedade escute as demandas do grupo que perde esse espaço de fala e de ação. Sem contar a desmobilização que pode gerar, especialmente se somar-se a esse esvaziamento uma crise sanitária de grande repercussão. Isso tem sido verificado, em certa medida, nas questões que envolvem a proteção do consumidor no Brasil.

Além disso, verifica-se que a energia despendida pelos agentes públicos que deveriam velar pelos direitos do grupo vulnerado nem sempre é canalizada para suas reais demandas. Desde 2012, dois projetos de suma importância para o consumidor (o PLS 281, atual PLC 3514, e o PLS 283, atual PLC 3515) estão caminhando sem uma definição, ainda, no âmbito político. Assim, restam em relativo desamparo os consumidores e consumidoras que sofrem com a não regulamentação do comércio eletrônico [10] no Brasil, bem como os milhões de superendividados que, mais do que nunca, aguardam por uma definição legislativa que os traga de volta ao mercado, sem os abusos ainda hoje cometidos pelos fornecedores de crédito. Para que se possa falar da proteção de qualquer grupo de vulneráveis de uma maneira válida e fiel é preciso, de um lado, analisar o arcabouço protetivo que tais pessoas recebem dos textos normativos aplicáveis em determinada ordem jurídica. De outro, da concretude que a eles é dada pelos poderes constituídos, observadas as devidas competências de cada um.  

Em segundo lugar, a ausência de regulação é outra forma de calar a voz dos consumidores. Ao assumir-se a possibilidade de que o Estado não possa limitar a expressão comercial, ou que o possa apenas em excepcionalíssimas hipóteses e somente em nível federal, mais uma vez cala-se a voz do consumidor para se ouvir apenas a do mercado. Sem dúvida, "seríamos menos livres se a liberdade de expressão fosse tratada como uma pretensão peremptória e imune a toda regulamentação, mesmo quando outros interesses ou direitos importantes são prejudicados" [11], como o direito de crianças e adolescentes a um ambiente saudável, ou o de mulheres a serem respeitadas como seres humanos que são, por exemplo.

Reforça-se, no breve espaço deste texto, que a Política Nacional das Relações de Consumo, expressa em nosso CDC (Artigo 4º), tem por objetivo "o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…) II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (…)". É nesse sentido que se enaltece a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (ainda não publicada) na ADI 5.631, relator ministro Edson Fachin, que julgou constitucional a Lei nº 13.582/16, com redação dada pela Lei nº 14.045/2018, do estado da Bahia, que proíbe a comunicação mercadológica dirigida a crianças nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica. Na referida ação, atuaram como amici curiae defendendo a constitucionalidade dal lei o Brasilcon, o Instituto Alana, o Idec e a Associação de Controle do Tabagismo, Promoção da Saúde e dos Direitos Humanos.

O artigo 1º, caput, da legislação baiana assim prescreve: "Fica proibida, no Estado da Bahia, a comunicação mercadológica dirigida às crianças nos estabelecimentos de educação básica". No voto do ministro Edson Fachin, que afastou a alegação de inconstitucionalidades formais, decorrentes da usurpação da competência privativa da União, e materiais, ante a ofensa à liberdade de expressão comercial, restou assentado que o pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão. Nesse sentido, diz, "é grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais tal como recomendadas pela OMS". Com efeito, se por um lado alegou-se a usurpação da competência da União com base nos artigos 22, XXIX, e 220, §§3º e 4º, da CF/88 (propaganda comercial), por outro justificou-se a competência estadual concorrente no artigo 24, XII e XV, da CF/88, relativamente à proteção da saúde e da infância, uma vez que a Constituição não admite que a inação da União possa ser invocada para impedir a adoção de medidas que busquem cumprir as obrigações que decorrem diretamente dos instrumentos internacionais de proteção à saúde e à infância.

Relativamente à alegada inconstitucionalidade material, afirmou o ministro que as restrições à liberdade de expressão comercial podem ser aplicadas especialmente no ambiente escolar, considerando que "a escola prepara as crianças para participarem da vida pública, mas a escola não é, em si mesma, a esfera pública na qual estamos todos inseridos". Ou seja, sustenta o ministro que esse espaço precisa ser cultivado, cativado, pelas melhores ideias e pelos melhores exemplos, e a promoção do melhor interesse da criança se concretiza, aqui, no reconhecimento da condição peculiar dessa pessoa que se prepara para ingressar na vida pública. "Dizer que não é absoluta a liberdade comercial nesses espaços significa apenas que não é o livre mercado de ideias que seleciona os melhores exemplos, mas os educadores".

Em outro caso de julgamento recente no Brasil — agora no âmbito administrativo da Fundação Procon-SP —, o limite ao discurso mercadológico vem do reconhecimento da abusividade presente numa forma indireta de publicidade, realizada por meio das mídias sociais. O fato de não se dirigir à aquisição de produto ou serviço de modo imediato não descaracteriza a comunicação como mercadológica, razão pela qual se mostra desarrazoado sustentar amparo no direito fundamental à liberdade de expressão para afastar a aplicação de multa imposta pelo órgão de defesa do consumidor. No caso concreto, um restaurante fazia graça com o feminicídio de Eliza Samúdio nas redes sociais com uma postagem que dizia, numa tábua de cortar temperos pendurada em uma parede, a frase "o cão é o melhor amigo do homem — goleiro Bruno". Em sua defesa, o estabelecimento sustentou que "vivemos em um país livre", amparando a referida "piada" no direito à liberdade de expressão. No site do Procon, o restaurante consta como "estabelecimento autuado", com a aplicação de multa no valor de R$ 1.134,85.

Esse caso bem demonstra como os movimentos feministas e os movimentos consumeristas travam batalhas diárias e conjuntas por reconhecimento e respeito, que constituem a base de uma sociedade solidária. Ademais, o efeito inibidor da liberdade de expressão pode se apresentar justamente em hipóteses como essa, nas quais se compromete a credibilidade da mulher quando se a reduz a mero objeto. Aqui o feminicídio cometido contra Eliza Samúdio é naturalizado em forma de "piada", de modo a negar a brutalidade de sua morte e da violência praticada contra as mulheres. O caso desnuda o patriarcalismo e a desigualdade de gênero ainda presentes e não suficientemente combatidos na sociedade brasileira e expõem a lógica mercadológica do "vale tudo" para chamar a atenção e vender o produto. É como se as mulheres não tivessem mais nada com o que contribuir para as discussões públicas. Aliás, conforme já apontava o saudoso jurista italiano Stefano Rodotà, a experiência política mostra que, quando se tornam difíceis os tempos para a solidariedade, tornam-se também para a democracia [12].

 


[1] Revista Artigo 19: defendendo a liberdade de expressão/Artigo 19. São Paulo: Artigo 19, 2021, p. 11.

[2] Revista Artigo 19: defendendo a liberdade de expressão, cit., p. 15

[3] Revista Artigo 19: defendendo a liberdade de expressão, cit., p. 26

[4] FISS aponta, por exemplo, que os ricos podem tão amplamente dominar os espaços publicitários na mídia e em outros espaços públicos que só se possa ouvir a sua mensagem. "Consequentemente, a voz dos menos prósperos pode ser soterrada". Fiss, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 48. 

[5] FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública, cit., p. 50

[6] HOLMES, Stephen; Sunstein, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos? Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019, p. 115.

[7] HOLMES, Stephen; Sunstein, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos?, cit., p. 32.

[8] Em obra coletiva de grande relevância para o debate dos limites da liberdade de expressão comercial, Adalberto Pasqualotto salienta a relevância de incluir o tema da publicidade no âmbito da Constituição econômica, vinculando-a com a matéria da livre iniciativa, e não diretamente no quadro dos direitos fundamentais, por meio da liberdade de expressão, pois naquele âmbito a publicidade estaria mais propensa a limitações. Conforme o autor, "integrar a publicidade à liberdade de expressão é dar mais importância ao meio do que à mensagem. O fato de ser veiculada pelos meios de comunicação social não a torna lídima expressão da liberdade". Pasqualotto, Adalberto de Souza (Org.). Publicidade de Tabaco: frente e verso da liberdade de expressão comercial. São Paulo: Atlas, 2015. Prefácio, p. xii.   

[9] Holmes, Stephen; Sunstein, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos?, cit., p. 42.

[10] Considerando que na época da edição do CDC o comércio eletrônico não era uma realidade no Brasil, o Código precisa ser atualizado para a inclusão de um capítulo que trate especificamente do tema, a despeito de normativas de menor hierarquia já existirem desde 2013 (assim, Decreto 7.962, de 15/3/2013, "regulamenta a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico").

[11] Holmes, Stephen; Sunstein, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos?, cit., p. 87.

[12] Rodotà, Stefano. Solidarietà: un'utopia necessaria. Bari: Laterza, 2014, p. 10.

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    é advogada, doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora da Graduação em Direito e do Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter, diretora adjunta de Comunicação do Brasilcon e editora da série "Pautas em Direito"/Editora Arquipélago.

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