Direito Civil Atual

Obra homenageia Eduardo Espínola por influenciar o Direito Civil contemporâneo

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3 de maio de 2021, 15h32

Não se constrói um futuro profícuo sem considerar as experiências e as tradições do passado, razão pela qual, no campo acadêmico e científico, o resgate dos clássicos jurídicos e a sua rememoração são fundamentais para um aprendizado sólido e qualificado. No Brasil, o Direito Civil contemporâneo é fruto de elucubrações doutrinárias, produção jurisprudencial e legislativa que foram se desenvolvendo no decorrer dos séculos passados. Atingiu-se ao atual estágio mediante um conjunto de esforços de antepassados juristas, que se debruçaram sobre as construções existentes, mormente em outros países, e, com coragem e fervor, legaram os pilares da estrutura jurídica que se contempla hodiernamente. Em 29 de setembro de 2018, no auditório da egrégia Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, realizou-se o seminário intitulado "Os 143 anos de Eduardo Espínola e a sua relevância para o Direito", com o objetivo precípuo de cumprir a meta de conduzir e estimular a comunidade jurídica, englobando não somente os discentes, mas também os profissionais, a conhecerem e/ou relembrarem este ilustre doutrinador baiano.

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Importante registrar que a divulgação do mencionado evento suscitara algumas indagações sobre as razões que sedimentaram a organização de um encontro destinado a versar sobre um autor nascido no final do século 19, mais precisamente em 6 de novembro de 1875, e falecido em 1º de maio de 1968 [1]. Ademais, as obras de Eduardo Espínola não continuaram, lamentavelmente, sendo objeto de atualizações e algumas tornaram-se desconhecidas por uma parcela da juventude acadêmica que não compreende a sua relevância. No entanto, trata-se de jurista cujos escritos são fundamentais para a apreensão dos institutos civis hodiernos, eis que, como acentua Ítalo Calvino, "os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa", bem como "atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)" [2]. Não se almeja realizar uma trajetória histórica sobre o eminente doutrinador, que já foi objeto de incursão em outras oportunidades [3], mas, sim, trazer, à tona, sucintamente, os fundamentos que acarretaram o status de leitura fundamental aos seus escritos [4].

São apontadas três características para que certa obra qualifique-se como tradicional por contribuir para a cultura e tornar-se de exame basilar: 1) serve "para entender quem somos e aonde chegamos" [5], ou seja, "é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia" [6]; 2) quanto mais examinada e conhecida, denota aspectos que "se revelam novos, inesperados, inéditos", ou seja, provoca "incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe" [7]; 3) que nunca terminara "de dizer aquilo que tinha para dizer", assim, "toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira" [8]. A produção de Eduardo Espínola amolda-se sobremaneira nesses aspectos e sem quaisquer ilações ou titubeios compõe o clássico acervo jurídico brasileiro, suscitando que seja disseminada dada a sua posição visionária [9].

Eduardo Espínola influenciou juristas brasileiros de escol, foi professor de outro ilustre baiano, o inolvidável mestre Orlando Gomes [10], e, dada a importância da sua produção, teve o seu nome atribuído ao acervo bibliotecário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A marca do influxo da sua intelectualidade é atestada pelas menções efetivadas por relevantes civilistas que o sucederam nos séculos seguintes, como se pode aquilatar nas abalizadas gerações doutrinárias dos séculos 20 e 21. A presença marcante do pensamento do doutrinador pode ser detectada em obras de outros autores célebres brasileiros que também envidaram esforços para a construção do Direito Civil que se encontra em vigência. Corrobora-se, assim, o argumento de que Eduardo Espínola contribuiu para a formação de juristas que, a posteriori, vieram a ocupar o cenário nacional [11]. Nesse sentido, Dermeval Saviani afirma que "o clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial" [12].

A projeção das ideias do jurista em epígrafe pode ser vista na obra coletiva intitulada "Eduardo Espínola e o Direito Civil Contemporâneo: a relevância histórica do jurista baiano para a compreensão de importantes institutos atuais", cujo lançamento deu-se no último dia 30, em seminário virtual que o homenageou. O livro congrega artigos produzidos sobre diversas searas cíveis da atualidade com esteio no pensamento doutrinário e na notável concepção do autor. O conceito de negócio jurídico e de contrato são objeto de análise, respectivamente, por Eduardo Tomasevicius Filho e Eugênio de Souza Kruschewsky, em cotejo com as elucubrações do mestre [13]. A evolução da responsabilidade civil é explicitada por Marco Fábio Morsello em conformidade com as lições do jurista, demonstrando a sua concepção avançada sobre o tema. O conceito de família, na visão do doutrinador, é objeto de explanação por Leandro Reinaldo da Cunha, revelando atualidades que já figuravam na concepção do homenageado desde o início do século 20 [14].O Direito Autoral, pari passu com os ensinamentos de Espínola, é interessante tema explorado por Antônio Carlos Morato, Silmara Juny Chinellato e Rodrigo Moraes. A proteção dos consumidores em face dos diversos acidentes que os vitimizavam desde épocas passadas é tema de artigo que integra o livro em tela. Fernando Rodrigues Martins e Guilherme Magalhães Martins realizam a abordagem do pensamento do jurista e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

O ensino jurídico deve estar pautado nas produções atuais, mas sem desprestigiar as tradicionais, pois, sem o teor destas, não se teria alcançado o estágio jurídico hodiernamente vivenciado. No entanto, tem-se notado com certa frequência em alguns centros jurídicos uma cultura pós-moderna da superficialidade, do imediatismo e da perfunctória vida acadêmica, pautada no acesso à produções simplórias ou até mesmo aos meros registros das palavras docentes. Há uma propagação do ideal da rapidez, da fluidez nos estudos, pois, como afirmava Anísio Teixeira, "somos condicionados pela propaganda para desejar o supérfluo, para atender necessidades inventadas, antes de haver atendido às nossas reais necessidades" [15]. O apego ao que é mais facilitado, resumido e rápido tem desvalorizado o acesso aos clássicos e, segundo o educador, "a não existência de cooperação ou interação entre ciência e filosofia levou a chamada 'ciência da educação' a não 'ter' filosofia"; o que corresponde "realmente a aceitar a filosofia do status quo e a trabalhar no sentido da tradição escolar" [16]. Reviver o pensamento de Eduardo Espínola é revalorizar os pilares do Direito Civil brasileiro e impregnar a vida acadêmica de sentido histórico e prático, atribuindo, aos casos concretos de hoje, soluções mescladas de cultura e evolução.

O saber universitário não prescinde das experiências vivenciadas pelos antepassados e registradas para o conhecimento da posteridade [17]. Alerta Simon Schwartzman que a "aldeia global" das sociedades modernas "só existe no que se refere ao consumo de informações relativamente simples e devidamente empacotadas para difusão pelos grandes meios de informação" [18]. No entanto, é crucial que, nas instituições de ensino superior brasileiras, o corpo docente estimule os acadêmicos a cultivarem os clássicos jurídicos, examinando-os e identificando a presença dos respectivos contributos para o Direito Civil Contemporâneo. Fundamental será o resgate de uma educação de qualidade assentada na práxis e na identificação de soluções para as contendas diárias por intermédio de doutrina pós-moderna e jurisprudência qualificadas. Contudo, não se produz doutrina qualificada sem incursões na cultura jurídica brasileira, pesquisa séria e não meramente perfunctória, e, ipso facto, sem recurso aos clássicos, entre os quais figura Eduardo Espínola.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).

 


[1] RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal (1930- 1963). Vol. 04. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 281-282.

[2] CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 10.

[3] SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O Baiano Eduardo Espínola e sua Importância para o Direito.São Paulo, Revista Consultor Jurídico (ConJur). Coluna Direito Civil Atual. 28 de setembro de 2018. https://www.conjur.com.br/2018-set-24/direito-civil-atual-baiano-eduardo-espinola-importancia-direito. Acesso em: 20 jun. 2019.

[4] Cf.: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Por que ler os clássicos (de direito)? Conjur, Embargos Culturais, 26 de abril de 2020.

[5] CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 16.

[6] CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 14.

[7] Ibidem, p. 12.

[8] Ibidem, idem.

[9] Examinar: ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1908, 1º v.

[10] Cf.: GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1958,

[11] Consultar, dentre outros: LIMA, Alvino Ferreira. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938. ANTUNES VARELA, João de Matos. Noções Fundamentais de Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 1945. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Borsoi, 1972. COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. Estudos de Direito Civil brasileiro e português. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980. REALE, Miguel. O Projeto de Código Civil.Imprenta: São Paulo, Saraiva, 1999. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed., atual. São Paulo: Saraiva, 2010.

[12] SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2008, p. 14.

[13] Conferir: ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema do Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1908, 1º v. Nos anos de 1918, 1922, 1928 e 1929, foram editados volumes da obra do autor intitulada Breves Anotações ao Código Civil Brasileiro pela Editora Conquista. Examinar também: ESPÍNOLA, Eduardo. Manual do Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1938. ESPÍNOLA, Eduardo. Fatos jurídicos. 4 volumes. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1951. ESPÍNOLA, Eduardo. Garantia e Extinção das Obrigações — Obrigações Solidárias e Indivisíveis. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1951.ESPÍNOLA, Eduardo. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 1953.

[14] Cf.: ESPÍNOLA, Eduardo. A Família no Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1951.

[15] TEIXEIRA, Anísio.Educação e a crise brasileira. Rio de Janeiro:Editora UFRJ, 1956, p. 238. Cf.: STOER, Stephen. Educação e globalização: entre regulação e emancipação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 33-45, out. 2002.

[16] TEIXEIRA, Anísio. Educação no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 187. Sobre a importância do conhecimento filosófico, verificar também: ESPÍNOLA, Eduardo. Tradução da obra Filosofia do Direito Privado, de Pietro Cogliolo. Baía, 1898.

[17] SCHWARTZ, Laurent. Para Salvar a Universidade. Editora T. A. Queiroz, 1984, p. 78.

[18] Cf.: SCHWARTZMAN, Simon. A Política do Conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar. 1980, p. 89.

Autores

  • Brave

    é promotora de Justiça do Consumidor do MP-BA, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Direito pela mesma instituição.

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