Opinião

Má redação no novo Código de Trânsito evita inconstitucionalidade

Autores

  • Camila de Assis Santana Silva

    é advogada criminalista do escritório Kehdi & Vieira Advogados especialista em Direito Penal Econômico e Corporativo pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP) pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) associada ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e membro da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

  • Rachel Lerner Amato

    é advogada criminalista sócia do escritório Kehdi & Vieira Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

3 de maio de 2021, 6h34

Não é novidade que a ingestão de álcool pode provocar a diminuição dos reflexos e da capacidade de raciocínio, sonolência e desatenção. Por conta disso e dos consequentes riscos aos quais condutor, passageiros e transeuntes estão expostos, há muito a prática de beber e dirigir é motivo de preocupação, com os esperados reflexos em nossa legislação.

Recentemente, a Lei nº 14.071/20, em vigor desde o último dia 12, trouxe algumas alterações no tratamento do tema em âmbito penal. De acordo com o novo artigo 312-B do Código de Trânsito Brasileiro, ao motorista que, de forma culposa (isto é, sem intenção), praticar homicídio ou causar lesão corporal grave ou gravíssima ao dirigir embriagado ou sob efeitos de substância psicoativa, não mais se aplica o disposto no inciso I do artigo 44 do Código Penal.

O dispositivo inserido no CTB foi mal redigido, pois o referido artigo 44 elenca, em seus incisos, os requisitos para a substituição das penas privativas de liberdade (isto é, de prisão) por restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade).

O inciso I, em particular, aponta que a substituição é possível, independentemente do montante de pena aplicada, se o crime é culposo. Assim, a previsão de que esse inciso não mais se aplica aos crimes culposos citados é inócua: tais delitos sempre preenchiam tal requisito, de modo que aos motoristas que os praticavam só era negada a substituição por penas restritivas de direitos na ausência de algum dos outros requisitos inscritos nos demais incisos do artigo 44 do Código Penal (que exigem que o acusado não seja reincidente em crime doloso e que sua culpabilidade, seus antecedentes, sua conduta social e sua personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias do delito, indiquem que a substituição de penas será suficiente).

Com a exclusão da necessidade de se preencher o requisito do inciso I do artigo 44 para quem pratica homicídio culposo ou lesão corporal culposa grave ou gravíssima ao dirigir embriagado ou sob efeito de outra substância, a situação é exatamente a mesma — para a conversão da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, será necessário verificar apenas a presença dos demais requisitos do artigo 44 do Código Penal.

Ainda que assim não fosse, e o texto do novo artigo tivesse sido elaborado de forma a atender aos motivos indicados para a alteração legislativa — que apontavam para uma intenção de recrudescer a sanção penal nesses casos, vedando-se a possibilidade de aplicação de pena de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas em substituição à pena de prisão —, haveríamos de indagar sobre o tempo de "sobrevida" de uma previsão dessa natureza. Em outras palavras, a constitucionalidade dessa vedação deveria vir a ser colocada em xeque pelos exatos argumentos que levaram ao questionamento da mesmíssima proibição nos casos de crimes hediondos e equiparados — a exemplo do crime de tráfico de drogas.

Naquela oportunidade, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a automática vedação da substituição porque violava o princípio da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, CF), que garante que as sanções sejam aplicadas de acordo com as particularidades de cada caso concreto (HC 97256, j.set/10, e ARE 663261, j. jan/13).

Ao se posicionarem pela inconstitucionalidade da vedação de substituição das penas, os ministros da nossa Suprema Corte sublinharam a existência de três momentos — individuados e complementares — no processo de individualização da pena: aquele em que o legislador, ao criminalizar uma conduta, fixa os patamares mínimos e máximos da pena, observando uma proporcionalidade com o bem jurídico tutelado; aquele em que o juiz verifica qual a pena mais adequada no caso singular, sopesando as circunstâncias concretas do crime e as características pessoais do réu; e aquele em que o juiz novamente analisa aspectos do crime e do acusado para determinar a forma de execução da pena aplicada.

O STF firmou, assim, que, ao tipificar uma conduta, o Legislativo não pode usurpar do juiz sentenciante — estabelecendo vedações específicas — a prerrogativa de impor a sanção que lhe pareça mais adequada, após o exercício de ponderação das circunstâncias objetivas e subjetivas de cada caso — operação que busca conciliar a aplicação da lei e a "Justiça material".

A corte também ponderou que as sanções alternativas cumprem perfeitamente os fins de retribuição-prevenção-ressocialização que são atribuídos às penas, em pé de igualdade com as penas privativas de liberdade, de maneira que caberia tão somente ao juiz sentenciante — e ninguém melhor do que ele, já que em contato direto com o caso concreto e com o acusado — decidir qual o tipo de reprimenda seria suficiente em cada feito.

Por tais razões, assentou-se com efeito vinculante em relação ao Judiciário a possibilidade de se impor penas alternativas à prisão mesmo em condenações pela prática de crimes hediondos — nas quais a lei tida como inconstitucional as vedava —, a ser analisada caso a caso.

O referido entendimento prevalece até hoje e cairia como uma luva se o texto do novo artigo 312-B do Código de Trânsito Brasileiro atendesse a seus propósitos: tratar-se-ia justamente da mesmíssima proibição, estabelecida a priori pelo Legislativo, de forma a impedir a aplicação da pena pelos magistrados em vista das circunstâncias individuais de cada caso, isto é, de forma a impedir a individualização da pena.

Para arrematar, a vedação também seria questionável sob o prisma da proporcionalidade: se para os crimes hediondos — tratados da mais severa forma pela lei — se permite a substituição da pena de prisão por penas alternativas, seria um contrassenso vedá-la nos casos de crimes de trânsito — aos quais a própria legislação atribui menor gravidade.

Por uma ou outra razão, a proibição de substituição de penas nesses casos seria inconstitucional. Fomos salvos pela (in)feliz redação legal.

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    é advogada criminalista, membro do escritório Kehdi e Vieira Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e Corporativo pelo Instituto de Direito Público de São Paulo — IDP-SP (2019).

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    é advogada criminalista do escritório Kehdi e Vieira Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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