Opinião

A contribuição esquecida de Karl Marx para a Ciência Jurídica

Autor

  • Willis Santiago Guerra Filho

    é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-SP doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld Alemanha doutor pós-doutor em filosofia pelo IFCS-UFRJ.

2 de maio de 2021, 16h22

Na data em que se comemora o aniversário de nascimento de Karl Marx, em memória de Oscar Correas e Roberto Bergalli, a quem perdemos, juntamente com tantos e tantas, em especial no campo das artes e da cultura, neste trevoso início de maio de 2020, retomei este texto, cuja versão original foi publicada em alemão no livro em homenagem ao fraternal amigo Wolf Paul, quando de sua aposentadoria na faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt a.M., com quem aprendi o que há de mais substancial no presente texto e de quem acabo de ter a notícia do falecimento, no dia 11 de abril de 2021.

Historicamente, como é sabido – ou deveria ser –, houve um momento em que a teoria jurídica formalista, aferrada a um positivismo normativista, para não dizer mesmo legalista, viu-se forçada a ceder à “revolta dos fatos”, abdicando de se manter ocupada apenas com a construção de uma sistemática conceitual abstrata, voltada para a manutenção da harmonia e coerência da ordem jurídica. Surgiram, então, em vários países realismos jurídicos, escolas de cunho sociológico, preocupadas com a inserção do Direito e de seu conhecimento na realidade social. Muito antes, porém, já houvera Marx inaugurado uma abordagem desse tipo do Direito, em escritos da primeira fase de seu pensamento, quando os estudos de economia política ainda não se colocavam no centro de suas preocupações. Não se pode, contudo, deixar de reconhecer uma diferença essencial entre a abordagem marxista das diversas versões de realismo e sociologismo jurídicos, em que pese a coincidência de todas no tratamento das questões do Direito como questões sociais. Essa diferença pode ser bem compreendida considerando que a primeira se esteiaria numa concepção da sociedade baseada no que se pode chamar de “modelo de conflito”, ao passo que as demais seriam fiéis ao modelo oposto, “modelo integrante ou de equilíbrio”, havendo, no primeiro caso, um comprometimento com a modificação da realidade social, como resultado do esforço de conhecê-la, enquanto no segundo modelo o engajamento se faz no sentido de manutenção da ordem social que se estuda.

Nesse sentido, pretendo sustentar que a contribuição de Marx para a epistemologia jurídica há de ser necessariamente apropriada por quem pretenda fazer um estudo científico do Direito, o que significa o mesmo que se referir a quem tem por intenção fazer um estudo (científico) do Direito com um sentido emancipatório, pois o ideal científico implica necessariamente exposição e crítica do conhecimento dado, bem como promoção do gênero humano a um estado mais liberto das circunstâncias adversas que o afligem.

Vou ocupar-me em seguida da reconstrução de uma teoria da ciência jurídica de corte estritamente marxiano, ou seja, levando em conta elementos fornecidos exclusivamente por Marx em um período de seu pensamento, logo no início, antes de ele dedicar a maior parte de seus esforços teóricos à economia política.

Para tanto, vou me valer dos resultados de pesquisa empreendida pelo filósofo do direito e brasilianista alemão, professor da Universidade de Frankfurt am Main, meu fraterno amigo Wolf Paul. Essa pesquisa, apesar de feita já há mais de quarenta anos, ainda é pouco conhecida no Brasil. A conclusão a que se chega vai convergir com teses sustentando a relevância, na atualidade, do aspecto epistemológico-jurídico do pensamento marxiano, difundidas por epígonos de movimento críticos do direito, como as de outros queridos amigos, como Oscar Correas e Roberto Bergalli, falecidos nestes últimos dias, de pandemia, o último, inclusive vitimado pela Covid-19.

A contribuição de Marx para a teoria epistemológica do Direito dá-se a partir da crítica a que submete o modelo de ciência proposto, pioneiramente, na chamada Escola Histórica do Direito, cujo representante máximo era um ex-professor seu na Faculdade de Direito da Universidade de Berlim, F. K. von Savigny. É claro que, como já se pode antever, ao explorarmos essa perspectiva, logo nos depararemos com uma questão bastante tormentosa: a teoria da ciência jurídica de Marx traria uma contribuição para a expansão do paradigma científico jurídico, o modelo dogmático de estudo do Direito, ou, na verdade, o que Marx propõe não chega a configurar uma ciência jurídica alternativa, uma ruptura do paradigma dominante. Bem, antes de decidirmos sobre a compatibilidade entre a teoria jurídica marxiana e aquela tradicional, examinemos o procedimento adotado por Marx ao tratar da dogmática jurídica com o caso, por ele analisado, do roubo de lenhas.

Trata-se de assunto que viria a ser regulado por uma das leis produzidas pelo então ministro para a Legislação da Prússia, ninguém menos que von Savigny, que se notabilizou por sua defesa do Direito costumeiro contra “a vocação de nosso tempo para a legislação”. A ideia de Marx era, a partir da análise de um problema concreto — a colheita de pedaços de madeira caídos nas florestas à beira do Reno —, examinar o tratamento legislativo a ser dado ao assunto em projeto de lei, que passava a considerar como roubo de lenha esse fato, prevendo pena de multa ou trabalhos forçados, prestados ao dono da floresta, por quem praticasse tal ato.

Em primeiro lugar, não se dá como aceita de antemão a compatibilidade de semelhante lei com a ordem jurídica pelo simples fato de emanar de um poder autorizado para produzir tal norma. E se hoje isso nos parece trivial, à época não era, tendo sido feito por Marx graças à postura crítica, negadora do que é dado, própria do método dialético por ele adotado. Com o distanciamento da perspectiva formalista, dogmática — pela qual, não importa que conteúdo esteja vertido na forma da lei, esta terá validade jurídica —, Marx nega-se a ver como fatos idênticos, ou mesmo assemelhados, o roubo de lenha através do corte de árvores e a simples colheita de galhos caídos no chão para fazer fogo, absolutamente necessário à sobrevivência de um camponês na Alemanha. Marx vê aí um atentado insuportável ao “princípio da adequação e verdade”, ao qual se deve submeter também o Direito, por mais que utilize ficções, analogias e outros artifícios para cumprir a função que lhe é própria. Com isso Marx reporta-se a um topos argumentativo, que foi colocado no centro das discussões com o chamado renascimento do jusnaturalismo, no segundo pós-guerra, e, depois, na década de 1970, com a teoria crítica do direito: aquele de natureza das coisas.

O Direito tem aí um limite à manipulação de conceitos, visando subsumir fatos concretos das hipóteses legais abstratas. Não é da natureza jurídica das coisas equiparar roubo de lenha a colheita de galhos, e a lei não pode pretender alterar essa natureza das coisas, mas sim conformar-se a ela, sob pena de se tornar uma lei mentirosa, falsa, pois leva ao que Montesquieu chamou de “corruption du droit par la loi”. Chega-se, assim, a produzir um ilícito legal (gesetzliches Unrecht).

Um segundo ponto assinalado por Marx, analisando o caso do ponto de vista estritamente jurídico, é o de que se transpõe uma medida sancionadora, a pena — e uma pena de trabalhos forçados, que se aplica sobre a pessoa do imputado, e não sobre o seu patrimô­nio —, do campo do Direito Público para aquele das relações jurí­dicas privadas. A própria multa, que se colocou como alternativa, vai para o particular, supostamente ofendido em seu direito de propriedade, e não para os cofres públicos. Verifica-se, assim, o que ele chama de jurisdição patrimonial, para defender não os interesses públicos, como deve ser, mas sim aqueles privados, de natureza patrimonial. Isso é a negação, pelo Estado, de si próprio; um suicídio, como diz Marx, pois rompe com princípios fundamentais do Estado de Direito, como a isonomia e a generalidade das leis.

Um terceiro ponto levantado por Marx é o de que havia um costume estabelecido de recolher esses galhos livremente, logo, um direito consuetudinário a fazê-lo, que foi simplesmente ignorado — e justamente por quem defendia uma concepção, como a da Escola Histórica, que toma o costume como fonte primária do Direito, a qual à legislação e à doutrina caberia apenas explicitar. Aqui, Marx se depara com uma contradição flagrante entre teoria e prática, fundada nos interesses de classe do teórico — no caso, um aristocrata, Von Savigny. Daí é que ele, podemos supor, posteriormente, vai apontar para a necessidade imperiosa de se realizar uma crítica da ideologia, que mostra contradições entre a prática de alguém e sua própria concepção de mundo.

A próxima etapa do procedimento marxiano de análise crítica do Direito é então aquela em que desvenda, por trás do princípio legal das consequências jurídicas de um fato, um interesse querendo impor-se a outro, um interesse patrimonial preponderando sobre interesses vitais do ser humano, do próprio gênero humano, cuja emancipação, segundo um topos argumentativo extraído da filosofia hegeliana — e já prenunciado por Kant —, é a própria tendência da Weltbürgerlichen Gesellschaft, da sociedade civil universal.

Marx, nesse contexto, faz referência seguidamente a um outro topos, que ocupa lugar central na moderna teoria da argumentação, tal como é desenvolvida por Robert Alexy e outros, a partir do que propõe um dos mais recentes modelos de ciência jurídica: trata-se do topos da proporcionalidade. É desproporcional o sacrifício a que, no caso concreto examinado, se submete o interesse fundamental da classe desfavorecida em garantir sua subsistência, em nome do atendimento ao interesse particular do proprietário da floresta em manter o seu patrimônio.

Eis que, resumindo, o projeto de lei que criminaliza a colheita de galhos nas florestas prussianas ofende princípios jurídicos fundamentais do Estado de Direito, tal como a igualdade perante as leis e a generalidade destas, bem como princípios de racionalidade e de humanidade, donde se poder afirmar que, uma vez aprovada essa lei, ela estaria ferindo, assim, mais do que princípios de direito, verdadeiros axiomas, em que se funda uma ordem jurídica.

Após lançar tantos elementos para a renovação epistemológica do direito, os quais, se não romperam o paradigma dessa ciência em evolução desde a Roma Antiga, muito o ampliaram, pois foram depois retomados pelas mais diversas linhas de pensamento na ciência jurídica, desde a “Jurisprudência dos Interesses”, prenunciada já no pensamento tardio de Jhering, até a recente “Jurisprudência das Valorações ou dos Valores”, a tópica de Viehweg ou o “Modelo Tridimensional” de Dreier, empregado pelo já referido Alexy. Marx, por eu turno, tendo concebido, na prática de uma interpretação crítica, fazendo um estudo de caso, um procedimento capaz de “desdogmatizar” o sistema jurídico, tornando-o aberto, e não mais fechado, imune a críticas, algo absolutamente necessário ao pensamento científico, infelizmente, não prossegue seus estudos de direito, pois se teria deparado com uma tarefa prévia, que lhe custará o restante de sua profícua vida de pesquisador e revolucionário: a pesquisa do setor da vida humana em sociedade em que se dá o conflito daqueles interesses de que as leis são a expressão, realizando-os ou obstaculizando-os, por ser um conflito gerado pela impossibilidade de atender às necessidades das pessoas em geral na fruição de certos bens. Marx, então, dedica-se à pesquisa da base sob a qual se sustentam as representações ideais, como o Direito, a base material, econômica, onde se produz e reproduz a vida em sociedade. A partir daí, no contexto de uma pesquisa que não era jurídica, mas que dizia respeito também ao jurídico, vão surgir colocações marxianas sobre o Direito que servirão de fundamento a alegações de uma postura cientificista, mecanicista e positivista de sua parte, por tentar explicar os fenômenos jurídicos a partir do fenômeno econômico, tal como ele o descrevia. Essa crítica vem amparada, em grande parte, em desenvolvimentos posteriores da doutrina marxista, devidos a outros teóricos, especialmente àqueles que estavam comprometidos com um Estado que pretendia realizar a doutrina política marxista, os quais terminaram ideologizando completamente a teoria do direito marxista, tornando-a tão ou mais dogmática do que aquela dita “burguesa”. Crítica da ideologia é a nossa garantia epistemológica maior, como nos ensinou o próprio Marx, vacina a ser desenvolvida contra um vírus que infelizmente pode contagiar os que se engajam no seu desenvolvimento: o vírus do dogmatismo do conhecimento e seu correlato político, o autoritarismo.

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    é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-SP, doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, doutor pós-doutor em filosofia pelo IFC-UFRJ.

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