Opinião

Caso do menino Bernardino é marco histórico na evolução da Justiça Juvenil

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2 de maio de 2021, 6h03

O presente estudo objetiva analisar a evolução histórica da proteção ao jovem no Brasil, com enfoque na Justiça Juvenil, diante do caso do menino Bernardino, um marco no processo de garantias a crianças e adolescentes envolvidos com a criminalidade. Assim, foi realizada uma revisão da bibliografia especializada no tema, a fim de embasar o estudo de caso, e aplicada a metodologia qualitativa para tecer considerações acerca da construção histórica e situação atual do "sistema penal juvenil".

Na Era Medieval, segundo Philippe Ariès (1981), o sentimento de infância praticamente não existia, sendo que somente nos séculos 16/17 a criança começou a ser minimamente valorizada. Contudo, no Brasil, país mantenedor dos valores da sociedade patriarcal e tradicional, esse sentimento teve um processo mais tardio.

Aliado a isso, uma nova conotação foi atribuída ao conceito de "menor" no século 20, com a criança sendo remetida a situações de abandono, pobreza e marginalidade. Essa ideia ganha força no aqui em razão do contexto vivido desde a Colônia até a crise do Império, tempo em que crianças abandonadas, tratadas pelos termos "expostas" e "enjeitadas", eram recolhidas pelas Rodas dos Expostos, compartimento cilíndrico criado pelas Irmandades das Santas Casas de Misericórdia para dar o mínimo de assistência aos recém-nascidos ali deixados.

O supracitado histórico de desatenção e abandono teve como marco revolucionário inicial com vistas à evolução da proteção às crianças e ao adolescente o trágico caso do menino Bernardino, garoto negro e pobre, de 12 anos, que foi colocado em uma prisão com 20 adultos, sendo violentado e jogado na rua. Tal história envolve um menino que ganhava a vida como engraxate nas ruas do Rio de Janeiro e certo dia se deparou com um cliente que se recusou a pagar pelo serviço. Em razão da imaturidade característica da pouca idade, o menino se irritou e jogou tinta no homem, situação que, à época, foi suficiente para levá-lo ao cárcere, onde permaneceu durante quatro semanas e foi gravemente violentado por 20 companheiros de cela. Em estado lastimável, foi posteriormente levado à Santa Casa e lá foi encontrado pelos jornalistas do Jornal do Brasil, que se comoveram com a história e publicaram matéria polêmica. A partir disso, iniciou-se forte discussão político-social que chegou às altas rodas do Congresso e também do Palácio do Catete, a então sede do governo federal.

Nesse contexto, em 12 de outubro de 1927, o último presidente da "República do Café com Leite", Washington Luiz, deu a canetada responsável pela lei que ficaria conhecida como Código de Menores, a primeira, no Brasil, que realmente voltou os olhos à realidade vivida pelas crianças e pelos adolescentes no país. A par disso, o dia da assinatura não foi em vão, a escolha do Dia da Criança (12 de outubro) para assinar a legislação específica para infância e adolescência no país, registra a iniciativa, ainda que tardia, de proteção.

Perante essas considerações, não há dúvidas de que o caso do menino Bernardino marca a passagem da fase da mera imputação criminal à fase tutelar, estabelecendo os 18 anos como o limite etário penal brasileiro, idade em que os indivíduos poderiam ser criminalmente responsabilizados e encarcerados. Aos menores de idade seriam, então, atribuídas as medidas socioeducativas.

Todavia, diante da enxurrada de denúncias relacionadas a violência nas Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor (Febems), iniciou-se na década de 70 um sentimento maior de necessidade de direitos garantidos para crianças e adolescentes. Com a relevância das discussões públicas em torno da temática, entre junho de 1975 e abril de 1976, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) "destinada a investigar o problema da criança e do menor carentes do Brasil" (Brasil, 1976, página 3). Esse processo, que girou em torno do dispositivo disciplinar da menoridade, contribuiu para que, em outubro de 1979, um novo Código de Menores fosse aprovado, o qual oficializou, no artigo 2º, a vulnerabilidade econômica e social pelo termo "situação irregular".

A partir do momento em que o poder público assume essa responsabilidade de lidar com a "questão do menor" (PAULA, 2015, página 29), a resposta do Estado tem sido historicamente a institucionalização desses jovens, os transformando em objetos da tutela estatal, no intuito de tirá-los das ruas, porquanto sua maioria faz parte dos segmentos mais pobres da sociedade. A doutrina da situação irregular, a qual embasou a criação do Código de Menores, associa a criminalidade juvenil à pobreza e suas consequências, tais como a falta de cuidados parentais, abandono material e moral, evasão escolar, entre outros. Nessa perspectiva, ao Estado seria facultada a destituição do pátrio-poder sobre os filhos da população pobre, para fins de internação desses jovens visando a substituição dos cuidados parentais por uma equipe especializada (PAULA, 2015, p. 33).

Ocorre que nesses institutos de internação, em geral, o fim disciplinar e educacional proposto não era atingido, de forma que o cotidiano dos jovens institucionalizados era de muita violência, práticas frequentes de estupro, castigos corporais, entre outros. Assim, embora tenha sido elaborada uma resposta específica aos crimes praticados por crianças e adolescentes, na prática não existia diferença das unidades prisionais para adultos, tornando-se apenas mais um espaço de marginalização e encaminhamento dessas pessoas ao crime em um período determinante de seu desenvolvimento.

A partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, se tentou alterar, ao menos teórica e discursivamente, essa realidade, inicialmente a partir da redefinição das crianças e adolescentes como sujeitos de direito, e não mais apenas objetos da tutela estatal, sem qualquer capacidade de discernimento (PAULA, 2015, página 38). Uma vez que tem consciência sobre suas condutas e impactos, o jovem precisa responder aos atos análogos aos crimes que pratica, contudo, essa responsabilização deve ocorrer tendo em vista a fase de formação educacional que se vive nesse período, o que levou à nomeação das sanções aplicadas de medidas socioeducativas.

Embora sejam dotadas de característica pedagógica, não se pode dissociar as medidas socioeducativas de seu caráter sancionatório, bem como os atos infracionais devem ser pensados em sua relação com os crimes. Quando essa perspectiva é ignorada, possibilita-se a não aplicação das garantias processuais, porquanto os aplicadores do Direito veem a medida como em benefício do jovem, contudo ela pode ter consequências análogas às penas criminais e, portanto, deve ser determinada com a mesma seriedade. Ademais, a convicção de que o jovem não estaria de fato sendo responsabilizado penalmente, fortalece as discussões acerca da diminuição da maioridade penal, o que apenas exporia adolescentes cada vez mais novos a um sistema que não é preparado para acolhê-los.

É importante pontuar, ainda, que muitas das unidades onde são atualmente cumpridas as medidas socioeducativas não diferem das unidades prisionais para adultos, tanto no espaço físico como em relação aos procedimentos utilizados. Entende-se, portanto, que a proteção a crianças e adolescentes evoluiu a fim de garantir aos jovens a assistência que o menino Bernardino não teve, contudo, há ainda muito a ser reestruturado na responsabilização juvenil no Brasil. As futuras evoluções devem ser pensadas, antes de mais nada, com vistas à promoção dos direitos humanos e principalmente a partir da solução das vulnerabilidades sistêmicas que propiciam o envolvimento do jovem com a criminalidade.

 

Referências bibliográficas
CIFALI, Ana Claudia; CHIES-SANTOS, Mariana; ALVAREZ, Marcos César. Justiça juvenil no Brasil: Continuidades e rupturas. Tempo Social, v. 32, n. 3, p. 197-228, 2020.

PAULA, Liana de. Da "questão do menor" à garantia de direitos: discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 15, n. 1, p. 27-43, 2015.

TRINDADE, Judite Maria Barboza. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista brasileira de história, v. 19, n. 37, p. 35-58, 1999.

WAQUIM, Bruna Barbieri; COELHO, Inocêncio Mártires; DE MORAES GODOY, Arnaldo Sampaio. A história constitucional da infância no Brasil à luz do caso do menino Bernardino. Revista Brasileira de Direito, v. 14, n. 1, p. 88-110, 2018.

WESTIN, Ricardo. Crianças iam para a cadeia no Brasil até a década de 1920. Senado notícias. Arquivos, v. 7, 2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/07/criancas-iam-para-a-cadeia-no-brasil-ate-a-decada-de-1920#:~:text=O%20c%C3%B3digo%20de%201927%20foi,resistiu%20%C3%A0%20mudan%C3%A7a%20dos%20tempos. Acesso em 26 de abril de 2021.

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