Opinião

A incredulidade jurisdicional diante do direito à gratuidade da Justiça no Brasil

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2 de maio de 2021, 6h35

O tema sobre o acesso à Justiça tem recebido atenção especial neste momento em que a pandemia da Covid-19 acelerou a fusão entre o mundo jurídico e o digital. Em outubro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 345, que autoriza os tribunais brasileiros a adotarem o Juízo 100% Digital. A medida é fundamental para o atendimento às medidas de isolamento social nesse momento de crise sanitária e, para além disso, tende a facilitar demandas históricas da Justiça brasileira.

Contudo, outros desafios integram o cotidiano do acesso à Justiça em nosso país. Entre eles, casos comuns de incredulidade, por parte de magistrados, diante do direito à gratuidade da Justiça, previsto expressamente no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988.

A classificação por nomear de incredulidade — que advém da falta de fé ou de crença em algo —, é justamente por haver, muitas vezes, decisões que apontam para a compreensão jurisdicional que apontam para mais fundamentos no campo moral de quem julga do que propriamente na ética jurídica de um juízo. Certas áreas das humanidades, como a Filosofia e a Antropologia, já têm tradição acadêmica em refletir sobre a distinção entre ética e moral. Para compreender o argumento, parte-se de uma distinção básica: o entendimento moral sobre um determinado fato pode variar conforme as diversas interpretações atribuídas a ele, mas o entendimento ético deve, sobretudo, partir de evidências científicas e normas jurídicas, isto é, com vocação universalizante, de modo a situar um determinado fato dentro de um contexto maior.

Por isso, processos reiterados de indeferimentos e de determinações judiciais a fim de exigir o retalhamento da hipossuficiência de um cidadão pode ser uma prática abusiva e constrangedora. Crença deve ser reservada para constituir o conjunto moral que cada indivíduo adota para partilhar em uma sua comunidade (religiosa e familiar, por exemplo). No contexto jurisdicional, a ética deve ser a base para que, em sua dimensão relacional entre diferentes comunidades morais, o principal amparo para o acesso à Justiça deve basear-se nas evidências sobre um determinado a realidade social. Evidência, aqui, é diferente de miragem abstrata concentrada na percepção de um indivíduo sobre um fato; trata-se, na verdade, de embasamento sociojurídico.

Por isso, crença e presunção guardam diferenças constitutivas. A presunção de veracidade, dentro do contexto do direito à gratuidade da Justiça, tem amparo em dados e análises sobre a realidade em nosso país. Crença, por outro lado, corre o risco de se limitar ao piso e ao teto de um magistrado que se debruça diante de um pleito nesse sentido.

Vale dizer que a história do símbolo da Justiça tem origem no mito da deusa Thêmis, que significa "lei divina", "aquilo que é colocado no lugar". Cada mito contém em si uma mensagem intergeracional e que atravessa os tempos, por isso são usados amplamente em diversas sociedades. É importante, por outro lado, que rotas abstratas da Justiça não sejam confundidas com outro mito grego: Ouroboros, simbolizado por uma serpente — ou por um dragão — que morde a própria cauda e vive, portanto, em círculos, em um eterno retorno.

A aparente incredulidade jurisdicional, que se expressa em ritualizar o retalhamento da realidade de alguém que pleiteia um direito legítimo, destoa da presunção de veracidade alegada no contexto da gratuidade da Justiça que, embora tenha sua relatividade reconhecida pela Suprema Corte brasileira, não se confunde com relativismo.

Relatividade e relativismo são categorias com aprofundamentos teóricos interdisciplinares, que merecem maiores discussões. No tema em discussão, serve de alegoria para argumentar sentidos distintos para o tema da gratuidade da Justiça. Relatividade afasta o caráter absoluto de uma premissa verdadeira, enquanto a segunda contém em si o risco de anular o valor-fonte da verdade que a originou, o que permite a coexistência de interlocuções entre o valor-fonte (presunção de veracidade) e suas variáveis (suspeição), sem, contudo, anular sua base; já o relativismo tende ao vício, pois há o risco de alçar a variável (critérios de renda, no caso) ao status de referência, anulando a "argamassa" principiológica que fundou: a verdade presumida na declaração de hipossuficiência em que se demanda a gratuidade da justiça.

Portanto, incredulidade jurisdicional não deve ser substrato cristalizante do sentido contrário ao que sedimentou o princípio constitucional em questão. Em um país como o Brasil, obrigar a descrição da condição de pobreza ou insuficiência de recursos em certos contextos é reaproveitar esse infortúnio para o espetáculo: pobreza não é performance, é materialidade, assim como o acesso à Justiça deveria ser.

Nesse sentido, assim dispõe o entendimento deste Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

"1. O Novo Código de Processo Civil garante o direito à gratuidade de justiça aos que, mediante simples afirmação em petição, declaram a condição de hipossuficiência econômica, sendo presumível quando se tratar de pessoa natural. 2. Diante da declaração subscrita pela parte no sentido de que não possui condições para suportar o pagamento das custas processuais (fl. 27), impõe-se o deferimento do pedido, não sendo da atribuição do magistrado suscitar dúvidas sobre a efetiva capacidade financeira do requerente, negando o benefício sem que os demais agentes processuais manifestem-se nesse sentido. '1. O Novo Código de Processo Civil garante o direito à gratuidade de justiça aos que, mediante simples afirmação em petição, declaram a condição de hipossuficiência econômica, sendo presumível quando se tratar de pessoa natural. 2. Diante da declaração subscrita pela parte no sentido de que não possui condições para suportar o pagamento das custas processuais (fl. 27), impõe-se o deferimento do pedido, não sendo da atribuição do magistrado suscitar dúvidas sobre a efetiva capacidade financeira do requerente, negando o benefício sem que os demais agentes processuais manifestem-se nesse sentido'" (Acórdão 989032, maioria, Relator Designado: Getúlio de Moraes Oliveira, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 7/12/2016 — grifo do autor).

Este tribunal tem sido uníssono, em seus julgados, quanto aos critérios que configuram o direito à gratuidade da justiça. Parte-se da definição apresentada pela Defensoria Pública do Distrito Federal, em sua Resolução nº 140/2015, que aponta os seguintes termos:

"1) Aufira renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos;
2) Não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 20 salários mínimos;
3) Não seja proprietário, titular de direito à aquisição, usufrutuário ou possuidor a qualquer título de mais de um imóvel".

Para o autor, se esses critérios fossem apresentados em forma de pergunta, a resposta seria negativa a todos eles. Segue abaixo jurisprudência do TJ-DFT que corrobora com essa perspectiva:

"Direito Processual Civil. Agravo de instrumento. Arbitramento de aluguel de bem comum. Gratuidade de justiça. Parâmetros adotados pela Defensoria Pública do DF. Renda liquida de cinco salários mínimos. Gastos comprovados para subsistência própria e da família. Deferimento. 1. A presunção de veracidade da declaração de hipossuficiência, constante do parágrafo 3º do artigo 99 do CPC, é relativa, e pode ser impugnada pela parte adversa, nos termos do artigo 100 do CPC, ou ainda pelo próprio magistrado, pela análise dos elementos e provas constantes nos autos, inteligência do artigo 99, § 2º, do CPC. 2. A lei não estabeleceu parâmetros objetivos para análise da concessão do benefício pretendido, apenas requisito geral de que o requerente deve comprovar a insuficiência de recursos. Infere-se, assim que a análise será feita caso a caso, a partir da alegação e efetiva comprovação de peculiar situação de impossibilidade de pagamento das despesas. 3. Diante desse panorama, no intuito de preservar a isonomia e face às inúmeras ocorrências de pedidos abusivos, entendo por suficiente os critérios adotados pela Defensoria Pública do Distrito Federal, previstos na Resolução nº 140/2015: I — aufira renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos; II — não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 20 salários mínimos; III — não seja proprietário, titular de direito à aquisição, usufrutuário ou possuidor a qualquer título de mais de um imóvel? 5. No caso em tela, a renda demonstrada mostra-se inferior ao limite de cinco salários mínimos, considerando que os descontos em folha de pagamento e os gastos devidamente comprovados guardam relação com a subsistência própria e familiar. 6. Agravo de instrumento provido".

Diante disso, é necessário reconhecer que a sensibilidade ética, embora não prevista expressamente em nosso ordenamento pátrio, está inserida na base constitucional brasileira, de modo a nos permitir compreender a pobreza intergeracional à moda brasileira. É preciso que a atuação jurisdicional se afasta da alegoria performada na expressão da pobreza-palafita, que é grave e miserável, mas que não resume a dimensão de insuficiência de recursos que atravessa gerações de forma cumulativa e se expressa em diferentes formas no Brasil.

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