Opinião

Condenação por dano moral e sucumbência recíproca

Autores

2 de maio de 2021, 7h13

Conforme se depreende do artigo 292, V, do Código de Processo Civil (CPC) [1], o valor da causa que constará na ação indenizatória, "inclusive a fundada em dano moral", será o valor pretendido. Ao que tudo indica, portanto, o código atual exige que a parte especifique o valor que busca receber a título de danos morais, não se devendo mais admitir, ao menos em regra, a formulação de pedido genérico nesses casos  como ocorria no passado, em que era comum relegar o arbitramento do valor de dano moral ao juízo.

Nesse sentido, seguindo o que ditam os artigos 322 e 324 do CPC, pode-se dizer que o pedido de danos morais nas ações reparatórias deve ser certo e determinado. E, por consequência dessa afirmação, há quem defenda que, se o valor do dano moral deve ser quantificado, a eventual condenação do réu em montante inferior ao requerido, em princípio, gera a sucumbência recíproca das partes. Afinal, nessa hipótese, autor e réu seriam vencedores e vencidos simultaneamente na demanda, razão pela qual responderiam proporcionalmente pelos honorários de sucumbência e despesas processuais.

Ocorre que, ainda quando vigente o Código de 1973, o STJ havia entendimento, consubstanciado na Súmula 326 [2], segundo a qual "na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca".

Surge, então, a indagação: considerando o disposto no inciso V do artigo 292 do código atual, a Súmula 326 do STJ ainda vige?

Antes de respondê-la, ressaltamos que aderimos a corrente doutrinária que [3], a partir da leitura do artigo 292, V, do CPC, compreende que, se o valor da causa tem que ser o do dano moral pretendido, o autor passa a ser necessariamente obrigado a indicar o valor desejado, estando afastada a possibilidade do pedido genérico. Nesse sentido, não compactuamos com a outra corrente, a qual entende que a parte autora continua autorizada, a despeito do artigo 292, V, do CPC, a formular pedido genérico nas ações de indenização fundada em danos morais [4].

Quanto à resposta, compreendemos que sim. Apesar do disposto no artigo 292, V, do CPC, a Súmula 326 do STJ ainda está vigente. Além disso, o próprio STJ [5], em julgados recentes, já aplicou a referida súmula, entendendo, portanto, que a condenação por dano moral em valor inferior ao postulado não implica sucumbência recíproca.

O tema, no entanto, é passível de controvérsia entre os operadores do Direito e [6], para melhor examiná-lo, é preciso buscar compreender a ratio da súmula. 

Podem-se citar ao menos três julgados do STJ que, entre aqueles que deram origem a Súmula 326, bem delimitam  ainda que de forma breve  as razões pelas quais a elaboração da referida súmula demonstrou-se necessária e adequada.

No primeiro deles, afirma-se que não há de se falar em sucumbência recíproca quando a condenação por dano moral for inferior ao postulado, pois "não se pode, para fins de arbitramento de sucumbência, incidir no paradoxo de impor-se ao autor, vitorioso na demanda, o pagamento de honorários advocatícios superior ao deferido a título indenizatório" [7].

No segundo, resta compreendido que, diante das diversas hipóteses em que cabível indenização por dano moral, além da dificuldade de se mensurar o valor do ressarcimento, tem-se que "a postulação contida na exordial se faz em caráter estimativo, não podendo ser tomada como pedido certo para efeito de fixação de sucumbência recíproca, na hipótese de a ação vir a ser julgada procedente em montante inferior ao assinado na peça inicial" [8].

Em um terceiro julgado do STJ, que também deu origem à elaboração da Súmula 326, assevera-se que, nas ações indenizatórias fundadas em dano moral, o juiz não fica jungido aos parâmetros quantitativos fixados pelo autor. Se reconhecido o direito à reparação, ainda que em quantia inferior à pleiteada, não há êxito parcial ou sucumbência recíproca. A sucumbência é total à parte ré, eis que o objeto do pedido é a condenação por dano moral, ou  visto por outro ângulo — o êxito é total à parte autora, considerando que escapa o valor da condenação à vontade do ofendido e inexiste, no Direito positivo, tarifação para os casos de lesão ao patrimônio imaterial [9].

Embora o artigo 292, V, do CPC atual exija que o pedido de danos morais seja especificado  o que acarretaria, em princípio, a possibilidade de sucumbência recíproca caso a condenação fosse inferior ao valor postulado , entendemos que a Súmula 326 do STJ ainda vige, tendo em vista que as razões elencadas nos julgados acima ainda são pertinentes e compatíveis com o nosso atual código.  

Como adiantado no primeiro julgado mencionado, seria um paradoxo impor ao vencedor da demanda pagamento de honorários superior ao deferido a título indenizatório. O fundamento, embora adotado quando vigente o antigo código, ainda é válido para preservar a vigência da súmula, e pode ser facilmente visualizado a partir de um exemplo.

Supondo que uma pessoa, a qual teve conteúdo ofensivo a seu respeito exposto na internet, ajuíze ação indenizatória requerendo a condenação do ofensor ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 60 mil. Após o trâmite processual, imaginemos que o juiz prolate sentença condenando a parte ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil.

Nessa hipótese, se houvesse sucumbência recíproca, e imaginando que os honorários sucumbenciais fossem fixados em 10%, a parte autora seria obrigada a pagar ao advogado da parte contrária a quantia de R$ 5,5 mil (10% de R$ 55 mil  diferença entre o pedido e o concedido). Ou seja, ao final da demanda, não obstante reconhecida a ofensa e o direito à reparação por danos morais, a parte autora sofreria um prejuízo econômico maior, tendo em vista que, apesar de ter recebido R$ 5 mil a título de danos morais, teria de desembolsar R$ 5,5 mil a título de honorários sucumbenciais.

Nota-se que, ao cabo, a exposição na internet, que motivou o autor a ajuizar ação judicial, ao invés de repará-lo pelo dano sofrido, rendeu-lhe prejuízo.

Não é preciso muito esforço para constatar que a sucumbência recíproca, em hipóteses como essa, gera resultados completamente irrazoáveis ao vencedor da postulação principal. Tais situações, evidentemente, acabam por restringir o pleno acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, CF), considerando que a pessoa, cuja honra foi ofendida, pode se sentir inibida de provocar o Poder Judiciário tão somente pela possibilidade de ter de vir a pagar honorários sucumbenciais, caso o juiz não acolha integralmente o valor pretendido a título de danos morais.

Ademais, ao contrário do que afirmam aqueles que defendem o afastamento da Súmula 326 do STJ, o arbitramento do valor dos danos morais conta com alto grau de subjetividade do órgão jurisdicional no momento da decisão, exatamente em razão da dificuldade de se quantificar o abalo à esfera psicológica sofrida pelo ofendido.

É comum, inclusive, que os tribunais acabem se pautando em diversas variáveis igualmente subjetivas  a exemplo do grau de culpa do ofensor, as condições pessoais da vítima, a gravidade da ofensa etc.  para arbitrar o valor dos danos morais, tendo em vista que não existem critérios objetivos e pré-fixados de arbitramento no Brasil.  Essa circunstância, conforme exposto anteriormente, já vinha sendo reconhecida pelo STJ para afastar a sucumbência recíproca na hipótese de a ação vir a ser julgada procedente em montante inferior ao assinalado na inicial [10].

Somado a isso, temos uma cultura de precedentes em formação, cuja jurisprudência dos tribunais sobre esse e tanto outros temas ainda se encontra relativamente distante da estabilidade, integridade e coerência que o legislador tentou lhe assegurar, de forma escorreita, no artigo 926 do CPC.

Diante dessas considerações, não há dúvidas de que, por muitas vezes, será uma tarefa árdua ao advogado da parte  ainda que pesquise adequadamente, de forma prévia ao ajuizamento da ação, os precedentes do tribunal semelhantes ao seu caso  estipular, com exatidão, o valor que será compreendido futuramente pelo juízo como o ideal para o caso concreto.

Com efeito, não nos parece adequado condenar a parte ao pagamento de honorários sucumbenciais em razão dessa falta de exatidão no arbitramento de danos morais, o qual frisa-se: nem os próprios tribunais têm conseguido consolidar entendimento, de modo a garantir segurança jurídica aos litigantes no momento de propositura da ação.

Tão relevante quanto evitar a proliferação da famigerada "indústria do dano moral" é garantir à parte o pleno acesso à Justiça, o que certamente não ocorrerá se o ofendido se sentir inibido de propor ação reparatória, exatamente por receio da eventual condenação em honorários de sucumbência. Ou, ainda, visto do lado contrário, o próprio ofensor poderá se ver na cômoda situação de continuar praticando atos abusivos sem qualquer retaliação do Poder Judiciário, diante da falta de iniciativa da parte lesada na propositura da demanda.

Apesar dos argumentos expostos, em breve pesquisa jurisprudencial nos Tribunais de Justiça brasileiros ainda é possível encontrar julgado[11] entendendo pela inaplicabilidade da Súmula 326 do STJ em razão do advento do artigo 292, V, do CPC.

Na mesma linha, pela possibilidade de sucumbência recíproca nas ações indenizatórias fundadas em dano moral, dispõe o Enunciado 14 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam): "Em caso de sucumbência recíproca, deverá ser considerada proveito econômico do réu, para fins do artigo 85, §2º, do CPC/2015, a diferença entre o que foi pleiteado pelo autor e o que foi concedido, inclusive no que se refere às condenações por danos morais".

Para os defensores da tese contrária à nossa, a manutenção da Súmula 326 do STJ e a consequente inexistência de sucumbência recíproca nessas demandas ocasionariam a propositura de uma enxurrada de ações judiciais requerendo valores indenizatórios exorbitantes e abusivos, sem qualquer ônus ao autor.

O argumento é um contraponto legítimo, mas não é o suficiente para refutar os fundamentos adotados neste texto.  Ademais, frisa-se que a previsão do artigo 292, V, do CPC   segundo a qual o valor da causa deve corresponder ao valor do dano moral requerido  exigirá do autor o pagamento de custas processuais não raras vezes altas, a depender do quanto requerido, o que, de certa forma, pode igualmente frear a propositura desse tipo de demanda.

Caso, ainda assim, proposta a ação reparatória com quantum indenizatório fixado em patamar exagerado, caberá ao juiz, com fundamento na jurisprudência de casos semelhantes, e dentro dos ditames dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, reduzir ou rejeitar o valor da indenização requerida.

Por todos os fundamentos expostos, compreendemos que, não obstante a parte tenha o dever de quantificar o valor do dano moral pretendido na petição inicial ou reconvenção (artigo 292, V, do CPC), a Súmula 326 do STJ, segundo o qual "na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca", ainda é compatível com o CPC vigente.

 


[1] "Artigo 292 – O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: (…)V  na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido".

[2] Os termos "enunciado 326 da súmula da jurisprudência do STJ" e "súmula 326 do STJ" serão usados neste trabalho como sinônimos.

[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume único. 9. Ed.  Salvador: Juspodivm, 2017, p. 143. No mesmo sentido: Fredie Didier Jr (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 20. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2018, p. 655) e Alexandre Freitas Câmara (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. Ed. 6. Ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 198 e 199).

[4] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel Francisco. ARENHART, Sérgio Cruz. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 301.

[5] AgInt no REsp 1901134/CE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 22.03.21, DJe 25.03.21; AgInt no AREsp 1672112/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 24.08.20, DJe 27.08.20; AgInt no AREsp 1509395/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 17.12.19, DJe 12.05.20.

[6] Entendendo que a Súmula 326 do STJ foi superada em razão do advento do artigo 292, V, do CPC: DELLORE, Luiz. Pedido de indenização e o CPC: fim da indústria do dano moral? Publicado em: 22.02.16. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/novo-cpc-e-o-pedido-de-indenizacao-fim-da-industria-do-dano-moral-22022016; e DELFINO, Lúcio; SOUSA, Diego Crevelin de. A derrocada do enunciado sumular 326 do Superior Tribunal de Justiça. Publicado em: 05.09.16. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-05/derrocada-enunciado-sumular-326-superior-tribunal-justica.

[7] AgRg no Ag 459.509-RS, Min. Rel. Luiz Fux, 1ª Turma, j. em 25.11.03, DJ 19.12.03.

[8] REsp 432.177-SC, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, j. em 23.09.03, DJ 28.10.03.

[9] REsp 579.195-SP, Rel. Min. Castro Filho, 3ª Turma, j. em 21.10.03, DJ 10.11.03.

[10] REsp 432.177/SC, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, j. em 23.09.03, DJ 28.10.03.

[11] (1) TJ-RJ, Apelação 0002064-42.2017.8.19.0079, Rel. Des. Alexandre Câmara, 2ª Câmara Cível, j. em 16.09.20; (2) TJ-SP, Apelação nº 1002707-40.2016.8.26.0655, Rel. Des. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, j. em 23.01.18; (3) TJSP, Apelação nº 1070804-74.2017.8.26.0100, Rel. Des. Tavares de Almeida, 24ª Câmara de Direito Privado, j. em 16.07.20; (4)TJ-SP, 1001840-77.2016.8.26.0063, Rel. Des. Milton Carvalho, 36ª Câmara de Direito Privado, j. em 27.10.17; (5) TJSP, Apelação nº 1008537-57.2016.8.26, Rel Des. Helio Faria, 18ª Câmara de Direito Privado, j. em 20.06.17; (6) TJ-SP, Apelação nº 1012999-34.2015.8.26.0004, Rel. Des. Carlos Nunes, 31ª Câmara de Direito Privado, j. em 14.02.17 (7) TJ-MG, Apelação 10000191312040001, Rel. Des. Lílian Maciel, j. em 20.01.20; (8) TJ-DF, 0723140-23.2018.8.07.0001, Rel. Des. Leila Arlanch, 7ª Turma Cível, j. em 24.07.19; (9) TJ-SC, Apelação nº 0303912-41.2016.8.24.0061, Rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, 3ª Câmara de Direito Civil, j. em 13.11.18; (10) TJ-SC, Apelação 03056-33.60.2016.8.24.0018, Rel. Des. Rogério Mariano do Nascimento, 1ª Câmara de Direito Comercial, j. em 19.10.17.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!