Direito privado

"Anular uma sentença arbitral é aprimorar o sistema", diz Maia da Cunha

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2 de maio de 2021, 7h23

Anular uma sentença arbitral é aprimorar o sistema, é prestigiar as outras sentenças arbitrais que são boas. É também impedir que isso ocorra novamente, porque senão vira um sistema autoritário.

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A opinião é do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo Fernando Maia da Cunha. Especialista em Direito Empresarial, foi presidente da Seção de Direito Privado do TJ-SP no biênio 2010/2011. Na ocasião, idealizou a criação da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, da qual foi integrante de 2012 a 2016.

Maia da Cunha foi magistrado de carreira no TJ-SP de janeiro de 1981 até sua aposentadoria em setembro de 2019. Em entrevista exclusiva à ConJur, o agora sócio consultor do Warde Advogados falou sobre a modernização e informatização do tribunal nos últimos 15 anos, de anulações e sigilos em sentenças arbitrais e da importância das Câmaras Empresariais.

"Era imprescindível que São Paulo tivesse uma jurisprudência que desse segurança jurídica à grande comunidade empresarial que se concentra no estado. A Câmara Empresarial em seguida se uniu à Câmara de Recuperação e Falência, e, hoje, há duas Câmaras Empresariais que têm feito um trabalho excelente na jurisprudência", afirmou.

Leia a entrevista:

ConJur — Por que o senhor decidiu ingressar na magistratura e, ao se aposentar, atuar na advocacia?
Maia da Cunha — Ser juiz sempre foi um sonho. Na primeira instância, ser juiz de Vara Cível no Fórum João Mendes quase 12 anos, integrar o TRE de 2002 a 2004, participar de comissões e da criação dos Juizados de Pequenas Causas (hoje Juizados) e integrar o 1º Colégio Recursal (então único no Estado), nos idos de 1985, foram aprendizados muito ricos para minha carreira.

No tribunal, presidir a Seção de Direito Privado em 2010/2011, compor a 1ª Câmara Empresarial por vários anos, integrar o Conselho Superior da Magistratura, participar do Conselho Superior da Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados) e dirigir a Escola Paulista da Magistratura em 2014/2016, dentre outras, foram experiências riquíssimas. Foram quase 39 anos vivendo intensamente o sonho de ser juiz e participar de tudo que eu podia ser útil.

Me aposentei por várias razões. A minha forma de julgar implicava conhecimento e estudo pessoal de cada caso concreto, o que não era mais possível pela quantidade de recursos. Não, pelo menos, com as minhas limitações, o que gerava grande prejuízo à família, aos estudos e participação na área acadêmica. Resolvi que precisava de mais tempo sem prejudicar a minha atuação jurisdicional. Tive uma carreira feliz na magistratura e estou feliz hoje na consultoria que faço na advocacia.

ConJur — O senhor participou do maior projeto de racionalização e modernização da Justiça de São Paulo. Como foi essa aventura?
Maia da Cunha — Os últimos 15 anos foram de transformações no mundo em geral e não poderia ter sido diferente na Justiça de São Paulo. Difícil fazer uma narrativa porque as mudanças foram acontecendo ao longo do tempo. Particularmente, dentre tantos outros fatos e circunstâncias, considero relevantes destacar, nesse processo de modernização, a eleição para metade do Órgão Especial (2005), a integração dos presidentes de Seção ao Conselho Superior da Magistratura (2010) e elegibilidade de todos os desembargadores para os cargos de direção do TJ (2012). As decisões que ponderam as iniciativas dos mais jovens com a experiência dos mais antigos costumam ser benéficas aos órgãos judiciais. Esses três pontos trouxeram ao tribunal, paulatinamente, uma modernização. O tribunal ficou mais democrático. Para mim, particularmente, como disse, foi muito enriquecedor participar, direta e indiretamente, desse processo. 

ConJur — Como o senhor avalia a resposta do Judiciário à pandemia, com trabalho remoto, audiências virtuais e uso cada vez maior de novas tecnologias? O caminho do Judiciário é esse: investimentos em informatização?
Maia da Cunha
 — A pandemia veio depois da minha saída, mas só ouvi elogios em relação às providências tomadas pelo TJ-SP. Em menos de 15 dias, sem parar e não obstante a sua grandeza em todos os aspectos, o tribunal passou a funcionar remotamente. Isso é um feito que merece todos os elogios à gestão atual do TJ-SP, que responde por quase 25% dos processos em andamento no Brasil, ou seja, dos 77 milhões em tramitação, 19 milhões estão no TJ-SP. Só na primeira instância são 320 comarcas e 1.529 varas. E agora tudo funcionando virtualmente. A informatização do tribunal, como em tudo, é um caminho inevitável. E o que se fez na pandemia certamente não seria possível se não fossem os investimentos que o TJ fez na informática nos últimos dez anos.

Além disso, a produtividade alcançada faz presumir que não voltará mais a ser o que era. Será presencial e virtual, eu penso — talvez na proporção de 60% virtual e 40% físico, desde que sempre haja um juiz na comarca [após a entrevista, o TJ-SP publicou uma resolução que regulamenta o teletrabalho após a pandemia].

ConJur — Até que ponto a automatização do processo judicial vai substituir pessoas? Como o senhor vê projetos com robôs e inteligência artificial?
Maia da Cunha
 — Não acredito que a virtualização e os processos digitais substituirão pessoas. A peculiaridade dos serviços judiciais exige a presença das pessoas movimentando os computadores. Claro que não é fora de propósito pensar que poderá haver redução em setores ou departamentos específicos em que a inteligência artificial e robôs poderão realizar os atos repetitivos ou de condutas semelhantes. Por exemplo, nas execuções fiscais: além de uma quantidade absurda de processos, o rito é o mesmo, então é possível usar robôs, que é o que fazem os bancos hoje com a inteligência artificial. O que sei é que o TJ estuda o fenômeno mais ou menos em sintonia com a própria informatização.

ConJur — O que redução da faixa etária de juízes e desembargadores tem mudado o perfil da Justiça de São Paulo?
Maia da Cunha
 — É sempre salutar que os mais jovens participem das decisões com os mais antigos. Isso mantém o tribunal mais sintonizado com o mundo atual e suas alterações e desafios.

ConJur — O senhor acredita que há um movimento de juízes se aposentando cada vez mais cedo, como ocorreu com o ministro do STJ Nefi Cordeiro, que surpreendeu a todos ao se aposentar aos 57 anos?
Maia da Cunha
 — Não consigo ver um "movimento" de juízes se aposentando mais cedo. Houve uma transformação do mundo na última década e o Judiciário não ficou fora das mudanças. Não tenho dados para afirmar que hoje se aposentam mais magistrados do que há dez anos. Pode ser que o tempo mostre que os atrativos da carreira não são mais suficientes a manter os juízes e juízas até o tempo limite de idade.

No TJ, houve aposentadorias nos últimos anos antes da compulsória. Talvez um número acima do normal, mas acredito que não foi exatamente por falta de atrativos na carreira, mas sim por circunstâncias peculiares aos aposentados. 

ConJur — Ano passado, ministros do STJ, como o João Otavio Noronha e Rogério Schietti, disseram que a Justiça de São Paulo rema contra questões pacificadas pelos tribunais superiores, especialmente em matéria criminal. O senhor acredita que juízes de São Paulo são mais punitivistas?
Maia da Cunha
 — Seria leviano da minha parte comentar o que ocorre no Direito Criminal sem dele ter participado e sem ter elementos acerca de descumprimento do que o STJ decide ou de maior rigor do que a média. No que se refere ao Direito Privado, as decisões da 4ª Câmara, ainda que com anotação de posicionamentos pessoais diferentes, sempre seguiram a jurisprudência do STJ, especialmente aquelas resultantes de recursos repetitivos. Em 2010/2011, quando fui presidente da Seção de Direito Privado, não recebi reclamações a respeito.

ConJur — O senhor participou da implantação da 1ª Câmara Empresarial do TJ-SP. Como foi esse trabalho e qual a importância de ter a especialização na área empresarial, especialmente em época de crise econômica?
Maia da Cunha
 — Quando assumi a presidência da Seção de Direito Privado, tinha como uma das metas uma especialização maior do que a existente. São Paulo concentra quase a totalidade das sedes das grandes empresas. E o empresário é muito rápido, não tem paciência nem tempo para esperar o fim de uma demanda que leva alguns anos. No fim do mês, tem folha de pagamento, estoque, cliente e toda a dinâmica empresarial da vida que segue. Então era uma grande pretensão que eu tinha.

A primeira proposta que fiz para criação da Câmara Reservada de Direito Empresarial acabou sendo aprovada, não sem muito trabalho de convencimento do CSM e dos integrantes do OE. A proposta foi feita oficialmente em novembro de 2010, que se transformou na Resolução 538 apenas em fevereiro de 2011.

Era imprescindível que São Paulo tivesse uma jurisprudência que desse segurança jurídica à grande comunidade empresarial que se concentra no estado. A Câmara Empresarial em seguida se uniu à Câmara de Recuperação e Falência, e, até hoje, há duas Câmaras Empresariais que têm feito um trabalho excelente na jurisprudência. Ao longo do tempo e com a participação efetiva do desembargador Manoel Pereira Calças [ex-presidente do TJ-SP], um entusiasta do Direito Empresarial, as Câmaras ficaram exclusivas, e foram criadas as Varas Empresariais na capital e na 1ª RAJ, que inclui mais de 30 comarcas ao redor da cidade de São Paulo.

ConJur — Desde o início da pandemia, aumentou a demanda da área empresarial com mais pedidos de recuperação judicial e de falências. Há algum caminho para se evitar o acúmulo de processos em Varas e Câmaras Empresariais? Como o senhor vê a atuação do Legislativo em questões empresariais ao longo da pandemia, como a Lei 14.112/20?
Maia da Cunha
 — A Lei 14.112 criou uma obrigatoriedade na conciliação como tentativa de desafogar um pouco a recuperação judicial. Mas a única forma de fazer uma conciliação, com uma negociação mais equilibrada, é entrar com uma ação cautelar pedindo para o juiz conceder uma tutela para suspender as execuções. E aí ocorre mais judicialização. Quer dizer, para tentar resolver a judicialização compondo os interesses, antes é preciso ir ao Judiciário. Não há outra solução no caso da recuperação porque sem equilíbrio da devedora e credores não há conciliação. E acredito que até junho haverá outro aumento substancial de insolvências em decorrência da segunda onda da pandemia.

ConJur — A arbitragem tem sido um tema recorrente no Judiciário brasileiro e houve um aumento no número de sentenças arbitrais anuladas em 2ª instância. Como o senhor vê a arbitragem? É preciso melhorias no modelo?
Maia da Cunha
 — A arbitragem sempre foi um caminho para a solução dos conflitos empresariais, especialmente os de empresas de grande porte. A legislação é clara e a jurisprudência dos tribunais sempre prestigiou a justiça arbitral. Todo modelo precisa de constante melhoria, sob pena de não serem corrigidos problemas que podem ocorrer. Algum aumento nas ações de nulidade da sentença arbitral, bem como algumas anulações, não desprestigiam o instituto da arbitragem. Há previsão legal do controle judicial de legalidade da sentença arbitral. E, dentro das hipóteses de revisão previstas na Lei de Arbitragem, não pode ser visto como prejudicial à justiça privada. Anular uma sentença arbitral é aprimorar o sistema, é prestigiar as outras sentenças arbitrais que são boas. É também impedir que isso ocorra novamente, porque senão vira um sistema autoritário.

ConJur — O TJ-SP também tem retirado o sigilo de sentenças arbitrais e alguns magistrados têm criticado o fato de o segredo de Justiça ser a regra nesse modelo. Para o senhor, as sentenças arbitrais devem ser mantidas em sigilo ou deve-se priorizar a transparência?
Maia da Cunha
 — A questão do sigilo dos procedimentos de arbitragem não é tão nova. Diante das grandes mudanças ocorridas na sociedade em geral depois da edição da Lei de Arbitragem, talvez seja um bom momento para a comunidade jurídica refletir a respeito. Há pontos positivos e pontos negativos. Ao mesmo tempo que pode preservar as empresas envolvidas e seus litígios, não contribui com a jurisprudência para o aprimoramento do Direito Empresarial. Se pode preservar as empresas, também pode prejudicar o direito que, sobretudo nas companhias abertas, os acionistas têm de conhecer os litígios que as envolvem. De outro lado não há aperfeiçoamento do Direito Empresarial porque, embora sejam grandes juristas que proferem as sentenças arbitrais, as decisões ficam em segredo. O risco é criar um direito próprio de uma comunidade que não é tão grande. Seja como for, o sigilo não pode ser motivo para evitar a discussão judicial e a necessidade de transparência se assim entendeu o tribunal naqueles casos concretos.

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