Opinião

A crise do positivismo jurídico na Justiça do Trabalho

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1 de maio de 2021, 13h12

Há muito se sabe que entre o exagero daqueles que confundem o Estado com a própria realidade social, e nos apresentam o Direito como uma simples roupagem das relações de convivência, e o exagero daqueles que fazem abstração da sociedade para só apreciar o mundo jurídico como um mundo puro de normas, há uma posição de justo equilíbrio a que se prendem ambas as instituições. 

É, pois, a observação atenta e corriqueira dos precedentes da Justiça do Trabalho, com o respeito que merecem, que permite a conclusão de que eles, por vezes, ignoram a existência da posição de justo equilíbrio perseguido pelo ordenamento, notadamente quando o bem maior é a segurança jurídica e a objetividade do sistema normativo pátrio, colocando em risco, nessa medida, a própria instituição, que, não raras vezes, é alvo de severas críticas.

Não se ignora que o Direito é fato social, realidade psicossocial em perene transformação e, por isso, tenciona-se com as demais relações nas quais se imiscui. Todavia, com elas não se confunde. Logo, há inequívoca barreira na aplicação da norma posta com o fim de, alterando seu sentido, alcance ou finalidade, tutelar fato jurídico não previsto, contemplado ou, expressamente, marginalizado pela regra.

É justamente nesse ponto que surge o tema do nosso despretensioso artigo, haja vista que a técnica comumente utilizada na distorção do ordenamento jurídico está fundamentada em uma linha argumentativa que faz da norma posta um singelo e, em certa medida, descartável orientador a ser seguido pelo julgador, mas que, em qualquer hipótese, está subjugado ao crivo do seu subjetivismo e convicções pessoais.

Nesse sentido, cita-se a recente polêmica advinda da decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0100413-12.2020.5.01.0052, movida pelo Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro. Nela se discute a obrigatoriedade de negociação prévia com o ente sindical na hipótese de dispensa coletiva, o que se coloca em rota de colisão com o Direito positivo pátrio, na medida em que ignora propositalmente a regra e o impulso histórico do Direito positivo para a legislação, tendo como consequência lógica a lei como fonte exclusiva ou absolutamente prevalente do direito.

Isso porque a conduta social e as decisões judiciais se orientam no sistema normativo, espelhos refletores que são — ou deveriam ser — da prevalência da lei como fonte primeira do Direito. Em outras palavras, há vedação a um ordenamento oriundo de comandos individuais e ocasionais, cujo fim é impedir que o Direito se torne mero capricho e arbítrio, haja vista decorrer do propósito humano de modificar a sociedade.

A importância do positivismo jurídico é inquestionável e sua legitimação estriba-se no reclamo social de moderação ao poder concentrado e ilimitado do Estado, buscando barreiras aos arbítrios praticados. Logo, a lei passa a ser o instrumento conformador da liberdade dos cidadãos e é considerado o único a legitimar a restrição dos seus direitos.

A partir desse cenário, somente a lei válida pode impor obrigações aos cidadãos, haja vista que a lei e o primado da soberania popular ganham tamanha importância que são alçados a um patamar de dogma, na medida em que a primeira é, ao menos em tese, expressão máxima da segunda, sendo esta o fundamento central da criação dos Estados modernos.

Esses conceitos, cuja compreensão adequada permite apreender a criação da norma posta, são reiteradamente ignorados, esquecidos, marginalizados e usurpados em alguns precedentes oriundos da Justiça do Trabalho, que, estratificando a classe dos empregados da classe dos empregadores, ignora que todos, indistintamente, são trabalhadores e dependem em maior ou menor grau dos mesmos mecanismos de produção e sobrevivência.

A insegurança jurídica que atormenta um, atormenta o outro. A instabilidade advinda de resultados distintos em demandas idênticas angustia a todos e coloca a sociedade em zona nebulosa, o que não condiz com os ideais do Estado democrático de Direito, fundado, pois, na lei posta.

Pondera-se, de outro lado, que não se está a defender ou ignorar a força normativa, ou integrativa dos princípios, tampouco a jurisdição constitucional e as suas formas de interpretação. Contudo, buscar álibis, argumentos ou ponderações em toda e qualquer circunstância para a afastar a incidência da regra é, em nosso sentir, um equívoco.

E tal se dá porque a fantasiosa e rasa intenção de utilizar a ponderação de valores perpassa na arbitrariedade de escolha e descoberta de princípio que prevalecerá na solução do caso em detrimento de todo o ordenamento jurídico (regra), revelando má e indistinta aplicação da técnica, além de verdadeiro protagonismo judicial para a busca da concretização de direitos.

Ocorre que não é facultado ao julgador negar vigência a texto de lei ancorando-se em convicções pessoais a partir das quais ele crê que a regra não é a mais justa para a solução do caso concreto, valendo-se, para tanto, de princípios. Decisões que deixam de aplicar a lei ao fato por meio da subsunção, para fazê-lo por meio de princípios, orientando-as por valores eleitos pela sociedade, ostentam elevado grau de subjetividade e, portanto, estão divorciadas da estabilidade própria das relações jurídicas.

A par disso, e não havendo modelo jurídico no qual são estanques e distantes entre si princípios e regras, a proposta que mais se alinha ao ideal de justiça e equidade é aquele que combine ambos e que haja valoração conjunta. Não obstante ombrearem-se, os institutos não se confundem, encontrando-se, pois, na densidade normativa de cada um deles o elemento de distinção que os separa.

Aplicando-se as considerações feitas até o momento acerca das regras e princípios, importa reconhecer que há em um dos lados da balança a segurança jurídica que decorre da certeza de aplicação da lei ao caso concreto, imprescindível à ideia do Estado democrático de Direito. De outro, porém, a isonomia material, e não exclusivamente processual, inerente à solução equânime oferecida pelo Estado aos conflitos objetivamente idênticos, tão caro à justa e adequada prestação jurisdicional.

Em síntese, o desenho tradicional adotado para a interpretação e aplicação das regras deve ceder espaço a um sistema jurídico fundamentado na aplicação dessas mesmas regras jurídicas valoradas por princípios jurídicos. Todavia, cada um com seu papel fundamental para a funcionalidade do sistema, pois enquanto as regras levam à previsibilidade necessária ao ordenamento, embalando as hipóteses de incidência e efeitos objetivos, os princípios encampam a flexibilidade que autoriza e legitima a aplicação mais adequada do Direito e, por consequência, a melhor prestação jurisdicional ao caso concreto.

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