Opinião

Precisamos falar sobre o valor da causa

Autor

  • Monya Pinheiro

    é advogada pós-graduada em Direito Tributário pelo IBET MBA em Práticas Contábeis pela Fundação Visconde de Cairu sócia do escritório Pires Pinheiro Freitas—PPF Advocacia.

1 de maio de 2021, 6h03

Seja o(a) leitor(a) familiarizado(a) ou não com a dinâmica de processos judiciais, audiências, partes, juízes, fóruns e afins, decerto que todos sabem, mesmo que intuitivamente, que ao propor ou se defender de uma demanda judicial é importantíssimo conhecer o conteúdo patrimonial da discussão jurídica.

O motivo principal parece evidente: sob a ótica do autor, de quem propõe a ação judicial, o conteúdo econômico reflete sua perspectiva de ganho no processo. O réu, por sua vez, considerará o conteúdo econômico atribuído à causa como sendo o valor que terá de pagar à outra parte caso perca a discussão.

O conteúdo econômico de uma demanda judicial é denominado de valor da causa. Trata-se de um dos requisitos de validade da petição inicial [1]: caso não seja dado um valor à causa na petição inicial, ou tal valor seja atribuído incorretamente, a ação pode ser prematuramente extinta [2]. Comumente, o valor da causa é o último dado redigido na petição inicial (ou na reconvenção). Em uma simples linha, atribui-se o conteúdo econômico de todo o processo judicial.

O artigo 291 do Código de Processo Civil estabelece que "a toda causa será atribuído valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico imediatamente aferível". Diante da objetiva redação do dispositivo, geralmente não se dá ao valor da causa a atenção que merece.

A bem da verdade, a discussão sobre o valor da causa ganha relevo quando o conteúdo econômico da discussão judicial não pode ser adequadamente aferido/precificado. E é nesse contexto que surgem equívocos interpretativos do Poder Judiciário que podem se caracterizar como verdadeira obstrução ao acesso à Justiça daqueles que tiveram seu direito lesado.

Para ilustrar tal situação, citem-se como exemplos processos judiciais nos quais se discutem: 1) a eliminação arbitrária de participante em licitação pública, de contratação estimada em R$ 50 milhões; e 2) a negativa ilegal de pedido administrativo de parcelamento de débitos tributários na ordem de R$ 2 milhões.

Em ambos os casos, a despeito de haver valores indiretamente envolvidos na discussão judicial, não se pode, sob hipótese alguma, considerar que o "conteúdo patrimonial em discussão" ou "o proveito econômico perseguido pelo autor" equivale, respectivamente, a R$ 50 milhões e R$ 2 milhões.

Nas duas situações, o objeto da discussão é a legalidade do ato administrativo, que, no primeiro caso, excluiu o licitante do certame público, e no segundo caso indeferiu seu pedido de parcelamento de débitos tributários. O eventual sucesso do autor na primeira ação judicial não lhe proporcionará a celebração de um contrato administrativo de R$ 50 milhões, mas tão somente de continuar participando da licitação. Da mesma forma, o contribuinte que consegue, via ação judicial, autorização para parcelar seus débitos de R$ 2 milhões não terá, de modo algum, um proveito econômico nessa ordem.

Infelizmente, os exemplos ora trazidos não são situações hipotéticas. Tratam-se de discussões judiciais verídicas, nas quais o magistrado, aplicando o artigo 292, §3º, do CPC [3], corrigiu de ofício o valor atribuído à causa, por considerar que o conteúdo patrimonial em discussão/proveito econômico perseguido pelo autor equivalia, no primeiro caso, ao valor do futuro contrato administrativo da licitação pública e, no segundo caso, ao montante dos débitos tributários que o autor buscava parcelar.

A correção de ofício do valor da causa pelo juiz pode gerar sérios inconvenientes, ou mesmo inviabilizar o acesso à Justiça pelo cidadão. Isso porque é sobre o valor da causa que são calculadas as custas processuais, taxa judiciária cujo recolhimento é necessário para propor de uma demanda judicial, interpor recursos, dentre outros atos processuais. Cada tribunal tem uma tabela própria de custas, que variam de acordo com o valor atribuído à causa. A depender de qual tribunal é o competente para processar e julgar a ação, o valor das custas aproxima-se dos R$ 100 mil.

Além da majoração das custas processuais, que por si só representa obstáculo ao exercício do direito de ação, tendo em vista que o não recolhimento das custas impede o prosseguimento regular do processo [4], o aumento equivocado do valor da causa também repercute na eventual condenação da parte perdedora ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais [5].

Atualmente já é possível à parte prejudicada interpor recurso contra a decisão do magistrado que aumenta de ofício o valor atribuído à causa. Até pouco tempo, em razão da discussão sobre as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento no novo Código de Processo Civil de 2015, os tribunais consideram irrecorrível a decisão que alterava o valor da causa. Felizmente, com o julgamento do REsp n° 1.704.520/MT em dezembro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça firmou-se a tese da taxatividade mitigada do rol previsto no artigo 1.015 do CPC/15.

Mais do que a possibilidade de manejar um recurso, o mais relevante para a discussão sobre o valor da causa é o adequado entendimento do assunto pelos magistrados, advogados e partes do processo. Distinguir que "o acolhimento da pretensão pode não ter correlação com o valor da causa, ou mesmo "não gerar proveito econômico direto à parte" [6], é essencial para evitar teratologias jurídicas que dificultam o escorreito acesso à justiça.

Incumbe aos advogados delimitar adequadamente as pretensões e o direito reivindicado pela parte que representam e aos magistrados, o exercício valorativo de discernir com seriedade o efetivo objeto da discussão no processo judicial, para daí então extrair o verdadeiro proveito/benefício econômico perseguido. Todos os participantes da relação jurídica processual são fundamentais para atribuir ao valor da causa a relevância que merece.


[1] "CPC, artigo 319. A petição inicial indicará:
I – o juízo a que é dirigida;
II – os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu;
III – o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;
IV – o pedido com as suas especificações;
V – o valor da causa".

[2] "CPC, artigo 321 – O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.
Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial".

[3] "CPC, artigo 292 – O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será:
§ 3º O juiz corrigirá, de ofício e por arbitramento, o valor da causa quando verificar que não corresponde ao conteúdo patrimonial em discussão ou ao proveito econômico perseguido pelo autor, caso em que se procederá ao recolhimento das custas correspondentes".

[4] "CPC, artigo 290 – Será cancelada a distribuição do feito se a parte, intimada na pessoa de seu advogado, não realizar o pagamento das custas e despesas de ingresso em 15 (quinze) dias".

[5] "Artigo 85 – A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
§ 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos".

[6] "Nos casos em que o acolhimento da pretensão não tenha correlação com o valor da causa ou não se observe proveito econômico com a extinção sem resolução do mérito da execução fiscal, os honorários de sucumbência devem ser arbitrados por apreciação equitativa, com observância dos critérios dos §§ 2º e 8º do artigo 85 do CPC/2015" (REsp 1.776.512/SP, STJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 12/05/2020, DJe 22/05/2020).

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