Opinião

A exigência de representação no crime de estelionato

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1 de maio de 2021, 17h18

A Lei nº 13.964/2019, popularmente conhecida como pacote "anticrime", alterou a natureza da ação penal do crime de estelionato, que, outrora pública incondicionada, passou a ser, em regra, pública condicionada à representação, salvo se a vítima for a Administração Pública, direta ou indireta, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental ou maior de 70 anos de idade ou incapaz (artigo 171, §5º, CP).

Com a mudança, surgiram aparentes problemas relacionados à aplicação da norma: ter-se-ia de aplicá-la apenas aos casos nos quais a denúncia ainda não foi oferecida, ou, por ser mais benéfica ao réu, também naqueloutros cujo processo já está em curso? Quanto a isso, a doutrina parecia apresentar certo consenso de que as normas híbridas ou mistas, com natureza material e processual, retroagem para beneficiar o réu quando lhe são benéficas, em cumprimento ao disposto no artigo 5º, XL, da Constituição Federal (CF).

Em relação à mudança efetuada pelo pacote "anticrime" em particular, Renato Brasileiro de Lima, por exemplo, seguiu o entendimento até então tido como prevalecente. Segundo o autor, a mudança legislativa que alterou a ação penal no crime de estelionato assumiu nítida natureza penal, pois criou, em favor do acusado, nova causa extintiva de punibilidade, qual seja a decadência. O fato de a Lei nº 13.964/2019 silenciar a respeito, diferentemente do que ocorrera com a Lei nº 9.099/1995, não deve constituir um empecilho para a incidência do novo regramento, cabendo o efeito retroativo mesmo nas ações penais já em curso, demandando a representação da vítima para o seguimento do processo [1].

Por outro lado, Rogério Sanches Cunha manifestou-se no sentido de que a denúncia já ofertada constitui ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança legislativa. Além disso, entendeu ser incorreta a intimação da vítima para manifestar o seu interesse em ver prosseguir o processo, o que transformaria a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. Já naqueles casos em que não houve o oferecimento da denúncia, o autor considera que o Ministério Público (MP) deve aguardar a representação da vítima ou o decurso do prazo decadencial, que teria como termo inicial, em relação aos fatos pretéritos, o início da vigência da lei [2].

A visão projetada pelo segundo autor foi a que ecoou e embasou as decisões dos tribunais superiores. Basta notar a citação direta usada pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do STJ, na decisão proferida no Habeas Corpus (HC) nº 585.179/SP, e a menção feita pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, na decisão que exarou no bojo do HC nº 187.341/SP.

A questão por fim chegou à 3ª Seção do STJ, sendo debatida no HC nº 610.201/SP para ao final firmar o entendimento de que o §5º do artigo 171 não retroage aos fatos praticados antes da sua vigência e que já foram objeto de denúncia pelo MP. Os principais argumentos lançados pelo relator, ministro Ribeiro Dantas, foram, basicamente, no sentido de defesa da segurança jurídica e do respeito ao ato jurídico perfeito, consubstanciado no oferecimento da denúncia. Além disso, frisou que o legislador nada esclareceu a respeito da retroatividade da norma, que, se aplicada fosse aos casos já em andamento, contrariaria a vontade clara e expressa dos representantes populares. Também destacou que a representação não exige maiores formalidades, bastando com que a vítima tenha levado a ocorrência do fato ao conhecimento da autoridade para manifestar a sua aquiescência ao processamento. No mais, ter-se-ia de reconhecer a representação como condição de prosseguibilidade, o que alteraria a sua natureza jurídica, que é de condição de procedibilidade.

Vejamos alguns pontos. No que toca ao aspecto prático de prescindir de maiores formalidades para a representação, isso de tempos é assente na jurisprudência dos tribunais superiores: basta com que a vítima manifeste-se inequivocamente a respeito. Mas, como cada caso é um caso, as particularidades das inúmeras situações devem ser observadas. Pense-se num hipotético exemplo em que a vítima, ao registrar a ocorrência na delegacia de polícia, tenha manifestado o interesse em representar, dando-se início à investigação. Durante o decurso do prazo decadencial, ela foi ressarcida pelo autor dos fatos, porém não mais retornou perante a autoridade policial para retratar-se, tendo seguimento o inquérito que, posteriormente, serviu de base para o oferecimento da denúncia. Nesse exemplo hipotético, cuja ocorrência não se é de descartar, a vítima não mais demonstrou o interesse em representar criminalmente durante o lapso do prazo decadencial, o que apenas pode não ter sido levado em conta por questões burocráticas.

Além disso, como o crime de estelionato era procedido mediante ação penal pública incondicionada antes das mudanças legislativas, é possível que o atendente, ao registrar o boletim de ocorrência, não tenha perguntado à vítima se ela manifestava o interesse em representar, por saber que, uma vez efetuado o registro, o fato seria investigado, mesmo que a contragosto da vontade do ofendido. É comum as pessoas registrarem boletins de ocorrência apenas para "salvaguardar direitos", como em casos de lesões corporais leves ou ameaças. Daí que o simples registro da ocorrência não pareça ser suficiente para demonstrar a "vontade inequívoca" da vítima em representar criminalmente.

É bem verdade que "a representação será irretratável depois de oferecida a denúncia" (artigo 102, CP; artigo 25, CPP). Mas, se bem vemos, não se podem desconsiderar as circunstâncias de cada caso concreto em prejuízo da liberdade. Afinal, a vítima pode ter sido ressarcida pelo autor dos fatos depois de oferecida a denúncia e não mais desejar o prosseguimento do feito, caso em que a exigência de representação, coadunando-se com o artigo 5º, XL, da CF é mais benéfica do que a atenuante do artigo 65, III, "b", do CP. Se estiver correto o mobilismo de Heráclito, de que nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio duas vezes, porque nem o homem e nem o rio serão os mesmos, deve ter lugar o benefício da dúvida (a vítima que anteriormente manifestou o interesse em representar criminalmente pode não mais tê-lo depois da inclusão do §5º ao artigo 171 do CP).

O argumento de respeito ao ato jurídico perfeito, consubstanciado na denúncia, do mesmo modo apresenta falhas. É certo que a "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" (artigo 5º, XXXVI, CF). Logo à frente, a CF estabelece que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (artigo 5º, XL). Há aí um aparente conflito entre direitos fundamentais, que é resolvido em favor da liberdade: a superveniência de lei que, por exemplo, revogue o crime pelo qual o réu foi anteriormente condenado faz cessar todos os efeitos da condenação, ainda que transitada em julgado (artigo 2º, CP). Seguindo esse raciocínio, a lei mais favorável deve também retroagir para beneficiar o réu, mesmo que diante de ato jurídico perfeito, primando, novamente, pelo resguardo à liberdade. Essa ponderação, salvo melhor juízo, não foi realizada no julgamento.

O caráter material dos acréscimos efetuados no artigo 171 do CP consiste no fato de que a exigência de representação é um limite ao poder de punir, devendo o Estado respeitar a vontade da vítima. Além do mais, a decadência, como causa extintiva da punibilidade, também configura um óbice ao poder de punir, não encontrado nas ações penais públicas incondicionadas. O mesmo valeria se ocorresse a mudança de um crime cuja ação penal é de natureza pública condicionada à representação, como, por exemplo, a ameaça, para ação penal privada: esta admite institutos como o perdão, a perempção e a renúncia, inexistentes em casos de ação penal pública condicionada à representação, sendo, pois, mais benéfica ao réu, devendo então retroagir.

O silêncio do legislador a respeito da retroatividade tampouco é convincente para barrar o efeito retroativo da lei. A omissão legislativa não significa que o legislador não quis estabelecer efeitos retroativos à lei, já que a própria Constituição se manifesta expressamente sobre o assunto no artigo 5º, XL. Como bem salientou o ministro Rogerio Schietti em seu voto no HC 610.201/SP, "mesmo que o legislador não o diga  porque não se trata necessariamente de norma-dispositivo, mas de norma-princípio — somos vinculados a tal máxima, que é um cânone do Direito Penal". E complementa:

"Seria equivocado condicionar a incidência de tal regra à regulação legislativa, sob pena de, por lógica consequencial, admitirmos pudesse o legislador votar uma lei determinando que não se aplica aos processos pendentes (ou julgados), v. g., a diminuição da pena de determinado crime. Tal enunciado normativo, à evidência, seria inconstitucional".

Em relação ao marco temporal para a retroatividade da norma, parece também correta a solução proposta pelo ministro Rogerio Schietti: limitá-la até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Nas palavras do ministro, "impor a coisa julgada como limite lógico é acertado porque, além do conteúdo penal, a norma também tem natureza processual, isto é, pressupõe que haja um processo em curso (não encerrado)". Desse modo, a coisa julgada só poderia ser desfeita por novatio legis in mellius com conteúdo puramente material.

Obiter dictum: o ministro Ribeiro Dantas, em seu voto, destacou que "temos uma aplicação do Direito Penal que talvez precise ser revista, mas talvez precisemos deixar para punir com sanção penal aquelas atitudes realmente mais agressivas". Eis uma descoberta que os teóricos de um Direito Penal de tutela subsidiária de bens jurídicos parecem não ter se dado conta (contém ironia). Ao fim e ao cabo, o advérbio de dúvida é duvidoso porque se duvida de algo que é manifesto!

 

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Volume único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 366.

[2] SANCHES CUNHA, Rogério. Pacote anticrime – Lei 13.964/2019: comentários às alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 65.

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