Garantias do Consumo

Se é para reduzir judicialização, o foco é a mudança da postura do fornecedor

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30 de junho de 2021, 10h59

Quando um problema causa incômodo, busca-se uma saída mágica para solucioná-lo. Ou melhor, para silenciá-lo. Sob a alegação de elevado número de processos judiciais envolvendo relações de consumo, a fácil saída é impedir que essas reclamações cheguem ao Judiciário, numa lógica equivocada pela qual os "culpados" são os que ousam criticar (e processar) os maus prestadores de serviço.

Pois bem, tramita no Congresso Nacional a Medida Provisória nº 1040, de 2021, que teria por objetivo propiciar uma desburocratização, uma simplificação do "ambiente de negócios", um estímulo ao empreendedorismo. Entre as muitas emendas que recebeu, destacam-se as de número 67, 94 e 160, que pretendem, sob o argumento de estímulo à autocomposição e à redução de judicialização, criar obstáculos ao acesso ao Judiciário. O "estímulo" à solução extrajudicial passaria a obrigar o consumidor a notificar o fornecedor, dando-lhe prazo para oferecer uma solução ao problema vivenciado. Sem essa formalidade, não restaria configurada a pretensão resistida, faltando, pois, o interesse de agir.

De plano, salta aos olhos a total ausência de pertinência temática dessas emendas ao objeto da medida provisória (bem como se tais assuntos têm a relevância e urgência para serem objeto de MP), mas não será esse ponto que trataremos aqui, mas a premissa equivocada que as sustenta. Trata-se de uma forma de impedir os consumidores, em especial os mais vulneráveis, de exercerem seus direitos.

Para melhor compreensão de tal lógica invertida, é importante que se lembre que os primeiros cursos de Direito no Brasil, em 1827, eram frequentados exclusivamente por homens [1] (e homens brancos) em um momento em que pessoas negras, simplesmente pela cor da pele, eram vendidas em praça pública como se coisas fossem. A legitimação e reprodução de uma estrutura social excludente marcou o início dos cursos de Direito no Brasil e a estruturação de nosso sistema de Justiça.

É importante ressaltar que apenas a partir de 1988 é que o texto constitucional passou a contar com a previsão expressa de instituição permanente com a incumbência de pautar as instâncias de poder com a realidade real, nua, crua, verdadeira, daqueles e daquelas excluídos dos espaços decisórios, buscando alterá-la. E, talvez por isso, quando a Defensoria Pública exerce sua missão constitucional de garantir o acesso à Justiça, buscando defender e levar a voz dos excluídos e excluídas ao Poder Judiciário, visando à garantia e à efetivação de seus direitos, isso gera incômodo em alguns setores. Não raro, critica-se a instituição por fazer seu trabalho e não transigir na defesa dos vulneráveis. Para não se criticar a mensagem, critica-se o mensageiro.

Lembramos, por exemplo, que no início da década passada foram feitas críticas de que a Defensoria Pública estaria fazendo uso exacerbado de Habeas Corpus junto às cortes superiores. Nesse cenário, a Defensoria Pública paulista fez uma pesquisa sobre a motivação dos HCs impetrados nos três anos anteriores (de 2009 a 2012), a qual depois foi aperfeiçoada por meio do projeto Pensando o Direito [2]. Com os dados, foi possível mostrar que os HCs impetrados foram motivados por situações concretas violadoras do direito e que a "novidade" era que tais conflitos estavam passando a chegar aos tribunais superiores, que a realidade dos excluídos estava chegando de modo sistêmico e institucional às instâncias de poder. A "culpa" pois não era do HC e nem da Defensoria, mas das violações muitas naturalizadas de direitos: a única forma de reduzir os ajuizamentos, era reduzir as lesões.

O problema não é se valer do Poder Judiciário para garantir um direito. O problema é obrigar a se valer do Poder Judiciário para que o desrespeito a direitos cesse. Ainda mais quando esse desrespeito é sistemático. Compreender esta premissa é vital para uma solução real para a diminuição da judicialização e redução dos custos de transação.

Simplificar e reduzir os custos de transação, impactando na redução do preço ao consumidor, poderia ser interessante, sim, tanto ao ambiente de negócios como ao mercado de consumo. Mas apenas se esses custos de transação não forem uma escolha dos fornecedores para evitar a efetivação do direito dos consumidores, se forem resultados das mudanças de posturas e trabalho interno para redução de comportamento atentatório a direito do consumidor. Com efeito, eventual alto custo do Judiciário para a sociedade brasileira tem que ser visto como uma externalidade negativa de quem sistematicamente presta serviços de má qualidade e não um eventual abuso de direito de um indivíduo.

Um exemplo: pesquisa realizada ano passado [3], aponta que das 780.179 reclamações recebidas pelo Consumidor.gov.br [4] em 2019, apenas 21.68% eram alheias à assimetria informacional e que 78.32% poderiam ser evitadas com maior equidade informacional. A mesma pesquisa, valendo-se de jurimetria, demonstra que 77,99% dos julgados do Superior Tribunal de Justiça, que tem a palavra consumidor na ementa, também tem a palavra informação. Tais evidências apontam que mais eficaz que impedir ou dificultar o acesso ao Judiciário seria investir na construção de incentivos a uma melhor informação para a pessoa consumidora e esforço efetivo por parte dos fornecedores para solucionar as reclamações no momento em que são recebidas (seja em uma loja física, seja pelo SAC).

Outra pesquisa, de 2018, viabilizada pelo Conselho Nacional de Justiça[5], demonstra que maior parte das demandas consumeristas judicializadas tem apenas 30 fornecedores. Com tantas evidências, não seria mais eficaz gastar energia em melhorar os serviços desses 30 grandes litigantes que dificultar o acesso ao Judiciário de quem, muitas vezes, vai ser parte em apenas um processo ao longo de toda sua vida?

Além disso, o foco deve ser a eficácia do exercício do direito, o melhoramento efetivo do ambiente de negócios e do mercado de consumo, não de reduzir demandas maquiando-se números. Exercer direitos dá trabalho, consome tempo, energia, paciência e impor a condicionante da pretensão resistida é uma maneira sutil de fechar de fato as portas da Justiça, numa diminuição artificial de demanda. É afirmar que não houve qualquer alteração nos direitos positivados no Código de Defesa do Consumidor, mas dificultar que esses direitos possam ter proteção que a Constituição lhes outorga. Mascara-se esse panorama de lesões de direitos, reduzindo-se a judicialização e dando aparência de melhoria, quando se afastaria, ainda mais, o Brasil real do Brasil abstrato, se afastaria ainda mais a realidade concreta das instâncias de poder.

E foi justamente para evitar tal cenário que o CDC impõe que é direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos (artigo 6º); que incentiva o diálogo com o fornecedor ao obstar a decadência até a resposta expressa do fornecedor (artigo 26). E o CDC é norma de ordem pública, decorrente de expresso mandamento constitucional que reconheceu a defesa do consumidor como direito fundamental (que nem emenda constitucional pode reduzir) e como princípio de toda a ordem econômica brasileira. Além da inconstitucionalidade por ausência temática, não seria mais eficaz a reflexão sobre tantas evidências e se buscasse curar a causa da judicialização e não o exercício dela?

Não se pode jamais esquecer que as garantias do processo e sua própria existência enquanto instituto caro ao Estado democrático de Direito não é obra de uma só pessoa, mas de uma soma histórica, de uma luta complexa e contínua que não pode ser interrompida, ainda mais em meio a uma pandemia. O acesso à jurisdição vem das lutas de direitos humanos, estão consagradas em documentos internacionais e fragilizá-la impacta negativamente nossas estruturas jurídicas e na própria segurança que a MP 1040 anseia oferecer ao ambiente de negócios.

O reconhecimento dos direitos das pessoas consumidoras, que como nos disse John Kennedy no histórico 15 de março de 1962 "somos todos nós", vem do reconhecimento da sua vulnerabilidade nas relações de consumo. As emendas 67, 94 e 160 colocam em sério risco a defesa do consumidor e o acesso à Jurisdição e são incapazes de resolver o problema que se propõem: se o problema é o excesso de ações judiciais, a solução não é desligar o microfone do consumidor, mas identificar e resolver a razão do seu grito, sob pena de se colocar a poeira debaixo do tapete repercutindo negativamente no próprio "ambiente de negócios" que depende do consumidor, e de sua confiança, para vender e render. Se alguém está com febre, não adianta o antinflamatório; se não resolver a causa, a febre volta e ainda mais grave.

 


[1] Apenas na década de 80 do século XIX é que as mulheres se matricularem no curso de Direito do Recife, sendo que na Faculdade de Direito de São Paulo apenas mais tarde é que teve a primeira matrícula de uma mulher. Neste sentido, https://www.ufpe.br/arquivoccj/curiosidades/-/asset_publisher/x1R6vFfGRYss/content/1827-1927-primeiras-bacharelas/590249 e https://www.migalhas.com.br/quentes/235253/as-mulheres–e-o-direito–historias-de-pioneirismo

[2] Executado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do então Ministério da Justiça e Cidadania, com apoio do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

[3] Tese de doutorado de Amélia Soares da Rocha, defendida em 10/08/2020 no Programa de Pós Graduação em Direito da UNIFOR – Universidade de Fortaleza e publicada, neste ano de 2021, pela Editora Foco, sob o título “CONTRATOS DE CONSUMO: parâmetros eficientes para a redução da assimetria informacional”.

[4] Mecanismo de solução extrajudicial de disputas organizado e mantido pela SENACON – Secretária Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

[5] O resultado foi publicado no “Relatório analítico propositivo JUSTIÇA PESQUISA POLÍTICAS PÚBLICAS DO PODER JUDICIÁRIO: os maiores litigantes em ações consumeristas, mapeamento e proposições” e está disponível na sede eletrônica do CNJ (www.cnj.jus.br).

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