Escritos de Mulher

O julgamento dos séculos: o marco temporal

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

30 de junho de 2021, 11h19

Faz cerca de quatro décadas que estive fora do país e vi uma manifestação em frente ao tribunal. Na época, estranhei, pois não era usual que isso acontecesse no Brasil. As manifestações ocorriam em relação aos demais poderes da República. Certo que fazia poucos anos que tínhamos saído do período da ditadura civil-militar, de modo que esses atos eram excepcionalíssimos em relação ao Judiciário e não faziam parte da cultura das manifestações populares.

Spacca

Recordava apenas das manifestações do movimento de mulheres, em frente aos espaços da Justiça, que foram tão importantes na década de 80 para abalar a estrutura patriarcal, que referendava a tese da legítima defesa da honra. Eu mesma presenciei uma dessas manifestações, já estudante de Direito, em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, quando era julgado famoso cantor que matou a ex-mulher. Feministas reunidas em frente ao Palácio da Justiça bradavam palavras de ordem que foram as sementes para que muito mais para frente fosse incorporado o crime de feminicídio ao nosso ordenamento jurídico.

Hoje, pode-se dizer que o povo brasileiro exercita o direito de manifestação e de pensamento, direito assegurado na Constituição Federal, em relação ao Poder Judiciário, com frequência maior, sendo fundamental que os poderes de Estado garantam aquele direito fundamental, que integra a base do Estado democrático de Direito e que é seu sustentáculo.

Desde o último dia 7 vemos esse direito tomando corpo em Brasília, de forma muito especial, onde acontece o acampamento Levante pela Terra. Trata-se de uma grande manifestação dos povos indígenas de todas as regiões do país.

O Levante pela Terra acontece com cerca de mil indígenas de inúmeras etnias (todos com as duas doses da vacina contra a Covid-19) e envolve também entidades indigenistas. Estão em Brasília para se manifestar contra o Projeto de Lei 490/2007 (com vários projetos apensados, que alteram o Estatuto do Índio) e para acompanhar a votação do Recurso Extraordinário 1.017.365 e requerer que o STF salvaguarde o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas, nos termos do artigo 231, da Constituição Federal.

Esse ato, prolongado no tempo, nos remete à ideia de que a praça é o lugar de exercício da cidadania em seu estado mais puro, o espaço privilegiado em que os cidadãos exercem as liberdades e podem participar dos desígnios do Estado e de suas políticas públicas.

Muito seria possível dizer em relação ao projeto de lei e seus apensos, mas o foco é o julgamento e pode-se afirmar que é o maior julgamento de séculos de Brasil, pois é o momento em que o país reafirmará a sua própria história com os povos originários, que se inicia com muita violência e brutalidade, como todos sabemos, mas que possui um marco na Constituição Federal de 1988, de reconhecimento, e que na atualidade está sendo atacado, de diversas maneiras.

O Supremo Tribunal Federal dará início nesta data ao julgamento do referido recurso, de relatoria do ministro Edson Fachin, com repercussão geral declarada em fevereiro de 2019. O julgamento seria realizado no Plenário Virtual, entre 11 e 18 de junho, mas, com a apresentação de destaque pelo ministro Alexandre de Morais, estará no julgamento presencial nesta quarta-feira (30/6).

O julgamento já ganhou nome: processo do marco temporal, pois a tese central é a que usa o dia 5 de outubro de 1988 como marco para a demarcação das terras indígenas. Os que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 perderiam os direitos territoriais, desconsiderando as expulsões das terras, remoções forçadas, as violências e a impossibilidade de ingresso em juízo por vontade própria.

Trata-se, pois, de recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) contra acórdão do TRF 4ª Região referente a ação de reintegração de posse concedida contra os indígenas em área reconhecida como ocupação tradicional dos índios Xokleng, Kaigang e Guarani, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, no Estado de Santa Catarina.

No bojo do recurso, importante destacar que duas medidas protetivas dos direitos indígenas foram tomadas pelo ministro relator: a) suspensão de todas as ações de reintegrações de posse ou de anulação de processos de demarcação de terras indígenas, enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do recurso; b) suspensão dos efeitos do Parecer nº 001/2017 da Advocacia-Geral da União, com determinação expressa para Funai se abster de rever procedimentos administrativos de demarcação de terra indígena, com base no referido parecer, que indica o uso do marco temporal de 5 de outubro de 1988 para efeito de demarcação das terras indígenas e com vinculação ao decidido no caso Raposa Serra do Sol.

O fato é que espraiou-se pelo Judiciário o uso das condicionantes da Raposa, ainda que o próprio STF tenha decidido em 2013 que em hipótese alguma as condicionantes vinculam o Judiciário quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas e que a decisão vale apenas para aquele caso.

É mesmo fundamental que o STF se debruce sobre as questões que estão envolvidas nesse processo para que o Judiciário, como poder de garantia, possa dar efetividade à normativa posta pelo constituinte de 88, para todos os povos indígenas.

Nunca é demais registrar que o Brasil tem compromissos de ordem internacional e que qualquer julgamento tem de levar em conta os instrumentos normativos internacionais e regionais de direitos humanos.

Após a Declaração Universal de Direitos Humanos, que tem a dignidade humana como referencial ético, verificou-se que os instrumentos existentes não eram suficientes para o resguardo dos direitos relativos aos povos indígenas, na medida em que tais instrumentos centram sua atenção na perspectiva dos direitos individuais. Ficava descoberta a necessidade de proteção sob a ordem coletiva dos povos, afetando sua dignidade como grupo humano com identidade cultural própria.

Diante da constatação desse vazio, foram adotados instrumentos internacionais de caráter coletivo. O primeiro foi o Convênio 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, revisado pelo Convênio 169 da OIT, de 1989, posto que aquele tinha visão integracionista. Ainda, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.

Vale destacar os principais direitos e princípios básicos consagrados no convênio 169: princípio da não discriminação; direito dos povos indígenas de posse das terras tradicionalmente ocupadas; direito de que sua cultura, integridade e instituições sejam respeitadas; direito a determinar sua forma de desenvolvimento; direito de participar diretamente da tomada de decisões acerca de políticas e programas de seus interesses e que lhes afetam; e direito a ser consultado sobre medidas legislativas ou administrativas que também possam os afetar.

No Direito interno, a Constituição de 1988 é o marco fundamental do direito dos povos indígenas, protagonistas das conquistas nela estabelecidas, com o acolhimento do princípio da diversidade e alteridade, que consagrou o direito congênito às terras tradicionais ocupadas e declarou nulo todo e qualquer negócio jurídico que as tenha por objeto. Mas não foi a primeira Constituição brasileira que tratou do tema, a que primeiro consagrou os direitos indígenas foi a CF de 1934, com dispositivos que se repetiram em outras Constituições, com a compreensão que atos de transmissão de posse ou propriedade das terras eram nulos de pleno direito. Na Constituição de 1934, temos o artigo 129; na Constituição de 1937, a norma do artigo 154; na Constituição de 1946, o artigo 216; na Constituição de 1967, o artigo 186; na Emenda nº 1/1969, o artigo 198.

É preciso que se entenda a pluralidade agasalhada na nossa Constituição para que ela seja uma realidade. A alteridade tem que ser um exercício diário para todos. Nessa direção, é preciso compreender o sentido e o valor da terra para os povos indígenas, que é muito diverso do nosso, não indígenas.

Melhor compreendi esse sentido quando estive num acampamento à beira da estrada do Mato Grosso do Sul, quando a cacica Damiana dizia que não tinha sentido estar naquele lado da estrada e que tinha explicado para o proprietário que nada queria das terras em que se encontrava acampada, pois suas terras estavam do lado de lá da rodovia. Quis me mostrar suas terras ancestrais, chamou o neto e pediu uma folha de papel que estava guardado e no qual se viam desenhados os traços de suas terras; tomou um facão e me pegou pela mão; atravessamos a estrada e ela, mulher pequena, abria a mata com um facão até que chegamos ao cemitério onde estavam enterrados seus entes.

O sentido da terra para a cacica era sua própria ancestralidade, sua vida, sua conexão com o ontem e com o porvir.

Temos 305 povos indígenas no Brasil, que falam mais de 274 línguas. São 114 povos indígenas isolados e de recente contato. Habitam 1.298 terras indígenas, sendo 408 homologadas e 829 em processo de regularização e/ou reivindicadas.

Urge que o STF ouça as manifestações e reivindicações dos povos indígenas, apresentados constitucionalmente no Levante pela Terra, onde estão representados todos esses povos, para que este país possa ter paz.

Urge, de igual modo, que o Judiciário, dê prioridade aos julgamentos atinentes às terras indígenas, pois a falta de delimitação e demarcação dos territórios tradicionais aguça os conflitos, que se retroalimentam.

Nas mãos do STF, o julgamento desses cinco séculos e o momento de reafirmação do projeto de país posto na Constituição Federal.

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