direito de defesa

Policial não age em legítima defesa

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30 de junho de 2021, 8h01

A captura e a morte de Lázaro, nesta semana, vieram acompanhadas da tese da legítima defesa policial. Acossado por dezenas de policiais, o perseguido teria reagido, razão pela qual recebeu mais de cem tiros dos agentes de segurança pública.

Spacca
Seja qual for o contexto dos fatos, há algo que deve ficar claro: a polícia não age em legítima defesa! Justificar pela resistência à prisão ou pelo revide a morte de alguém cercado e subjugado pelas forças do Estado não é concebível em um Estado democrático de Direito.

A legítima defesa é a reação do cidadão diante de uma agressão injusta. O Estado, detentor do monopólio da violência, abre mão da sua prerrogativa, e permite que o particular exerça a autotutela, porque não há tempo ou condições de acessar a proteção pública (CP, artigo 25).

Nesse caso, o agredido pode agir de forma violenta, e usar quaisquer meios necessários para impedir o ataque, desde que moderados. É permitida uma certa desproporção (Hungria, "Comentários", p. 302), alguma disparidade entre o bem tutelado e o afetado (Mezger, Tratado, p.385), uma vez que os meios necessários para cessar a agressão não são sempre iguais, e o agredido age em situação de intensa turbação emocional.

Nada disso vale para o agente de segurança pública.

Sua atuação não é equiparável à de um particular agredido. Ele representa a força oficial, a mão pública, que recebe da Constituição o monopólio da violência para tratá-la de forma racional e organizada. Não cabe em sua atuação qualquer desproporcionalidade, liberdade para escolha de meios de reação ou o desprezo de formas menos violentas de encerrar a agressão.

A reação a ataques não é vedada ao policial. Ele pode — e até deve — usar de certa violência para cumprir com suas funções ou se proteger. Mas, não se trata de legítima defesa, e sim do estrito cumprimento do dever legal, que também justifica as agressões, mas de forma mais limitada. O agente deve evitar a lesão ou a letalidade por todas as formas possíveis, respeitar a proporcionalidade e os procedimentos regrados.

A reação não é discricionária ou descompromissada, como ocorre com o cidadão em legítima defesa. Deste se espera a confusão, algum excesso, decorrente do desconcerto emocional produzido pelo ataque. Daquele se espera o profissionalismo de alguém que foi preparado por anos para lidar com delicadas situações de estresse. 

Em suma, a legítima defesa é a reação do particular quando o Estado não está presente. Quando está, não existe mais essa excepcionalidade, e o manejo da violência somente será admitido apenas no estrito cumprimento do dever legal.

A reação do agente de segurança pública ou equiparado é regrada por diversos diplomas, como o Código Penal Militar, que estabelece os limites para o emprego de força no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga (artigo 234), a Lei 13.060/2014, que disciplina e prioriza o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública em todo o território nacional, bem como por outros.

O Código Penal estabelece que se considera em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes (CP, artigo 25, parágrafo único). Essa previsão só existe porque as outras situações de legítima defesa não se aplicam a tais agentes; do contrário essa regra seria absolutamente desnecessária.

Em seu magistério, Hungria ressaltava que: "No caso de cumprimento de dever (que pressupõe no executor um funcionário ou agente do Estado, agindo por ordem da lei, a que deve estrita obediência) o rompimento da oposição pela violência, ainda que esta não constitua legítima defesa, pode ser praticado pelo executor ex prorprio Marte [1]". No mesmo sentido, a lição de Peña ao afirmar que: "(…) o emprego da força por parte de autoridade em cumprimento de suas funções não se ampara na legítima defesa — embora nesses caso a autoridade defenda particulares —, mas sim em outras exculpantes, como o cumprimento de um dever ou o exercício de um cargo [2]". Ao tratar do tema, Zaffaroni afirma que: "Para os agentes estatais, trata-se de situações que, em definitivo, não constituem legítima defesa (justificação), mas de cumprimento de dever legal", acrescentando, ademais, ser inadmissível "(…) o homicídio como meio legítimo para que um Estado de Direito defenda a administração de sua justiça [3]".

Diante disso, casos como o de Lázaro, morto com 38 tiros depois de cercado por dezenas de policiais, que atiraram mais de 125 vezes [4], ou o do chefe de milícia Ecko, baleado dentro de uma viatura, a caminho da delegacia, não devem ser tratados como legítima defesa, mas como situações excepcionais, anormais, que merecem uma profunda investigação para que se identifique se realmente a reação foi proporcional ou a única alternativa.

Por mais que se trate de pessoas violentas, perigosas e que mereçam punição, o Estado não exerce o papel de anjo vingador. Churchill dizia que o totalitarismo é a barbárie organizada pelo Estado, e tal barbárie, nos tempos atuais, vem seguida de selfies, curtidas em redes sociais e aplaudida por um setor da mídia que se alimenta de um monstro que não poderá controlar depois.

Segurança pública não é sinônimo de violência policial. Enquanto acreditarmos que nosso problema de criminalidade será resolvido com carta branca para matar, sob a égide de uma inexistente legítima defesa, seguiremos lidando com populações e bairros aterrorizados, cotidianamente, com a morte de culpados e inocentes.

Será que apenas perceberemos o risco disso quando, de repente, um homem, branco, de classe média, for o objeto de dita violência? Será que apenas nesse momento as pessoas, chocadas com a descoberta da agressividade do poder público, sairão às ruas batendo panelas?

Que ao menos a dogmática cumpra com sua função e juízes, professores, promotores e advogados compreendam e reconheçam a distinção entre legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal, para que ao menos se possa, na trincheira jurídica, combater uma das violências mais presentes e mais toleradas em nosso país.


[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, volume I, tomo II, artigo 11 ao 27, 5 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. p. 313.

[2] PEÑA, Diego M. Luzón. Aspectos esenciales de la legitima defensa. Barcelona: Bosh Casa Editorial, 1978, p. 104

[3] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V. 1, 9ª ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 508.

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