Opinião

Modulação em matéria tributária: regra ou exceção?

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30 de junho de 2021, 14h00

1) Introdução
No presente contexto, modular é definir no tempo o início da vigência de determinada norma jurídica. Porém, não de norma jurídica qualquer, mas daquela que é posta pelo Poder Judiciário. Mais precisamente, por algum tribunal de uniformização, ou seja, o STF, o STJ ou a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais [1].

A perplexidade pode surgir aqui: o Poder Judiciário legisla?

A resposta é positiva [2]. Se todo texto de lei necessita ser traduzido pelos juízes, que convertem a linguagem do legislador para a sua própria linguagem, duplicando a realidade, a proposição que o magistrado cria já não tem o mesmo significado que o enunciado criado pelo legislador.

Em breve exemplo: o texto da Constituição diz que a seguridade social será financiada, entre outras, por contribuição incidente sobre "a receita ou o faturamento". Por sua vez, o texto da Lei nº 9.718/99 diz que o PIS e a Cofins serão calculadas com base no faturamento e que este "compreende a receita bruta de que trata o artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26/12/1977". A seu turno, este último texto de lei diz que a receita bruta compreende: "I – o produto da venda de bens nas operações de conta própria; II – o preço da prestação de serviços em geral; III – o resultado auferido nas operações de conta alheia; IV – as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos incisos I a III".

Somados esses textos de lei todos, mesmo assim não se resolve a seguinte controvérsia: o ICMS componente do preço das mercadorias vendidas pela pessoa jurídica comerciante integra, ou não, o conceito de receita bruta ou faturamento?

Quando o STF, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral (RE 574.706), com a finalidade de resolver essa questão controvertida, deu sentido aos textos de lei acima, inegavelmente, ele colocou uma nova norma gereal no ordenamento jurídico.

Daí por diante, qualquer outro órgão jurisdicional que decidir questão idêntica não se dará ao trabalho de conhecer os textos da Constituição e das leis acima citadas. Ele recorrerá, direta e exclusivamente à conclusão de tese firmada pelo STF que, no caso, é: "O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins". Esse enunciado é lei nova, posta no ordenamento jurídico pelo Poder Judiciário, não pelo legislador.

Assim, a abissal diferença existente entre o texto da lei, posto pelo legislador, e a norma jurídica, construída pelo Judiciário, decorre do processo de tradução inerente à atividade interpretativa. Mas há ainda outra aspecto importantíssimo a ser considerado e que realça também fortemente essa diferença: a norma jurídica construída pelo Poder Judiciário não resulta apenas da atribuição de sentido aos textos de lei.

A construção da norma jurídica pelo Poder Judiciário envolve ainda a consideração de vários textos de leis, às vezes completamente desconexos entre si, bem como sua estruturação em um enunciado deonticamente lógico. Essa norma jurídica estruturada, tarefa realizada ao longo de todo o "percurso gerador de sentido" [3], pode ser sintetizada da seguinte forma: se for tributar o faturamento de pessoa jurídica com base na Cofins, "o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins".

Apesar dessa imensa relevância, o tema não é ainda percebido dessa forma pela comunidade jurídica.

Uma das consequências disso é que se deixa de pensar com mais profundidade diversos institutos jurídicos, entre eles, o da vigência das normas novas postas pelo Poder Judiciário.

Por exemplo: em regra, toda norma jurídica tem vigência para o futuro e esse seu poder de irradiar efeitos se inicia na data de sua publicação ou, no silêncio da lei, após decorridos 45 dias depois de oficialmente publicada, nos termos do artigo 1º da LINDB.

Mas e se a norma for posta pelo Poder Judiciário? Como fica?

Em regra, ela é aplicada a partir da publicação, como ocorre com as leis postas pelo Poder Legislativo. Em outras palavras, a partir da publicação da decisão judicial, ela passa a irradiar seus efeitos e se torna vinculante para todo o Poder Judiciário, que deverá decidir, das mesma maneira, todas as questões controvertidas idênticas [4].

2) Modulação dos efeitos da decisão judicial prevista no artigo 927 do CPC
E o início da vigência das normas postas pelo Poder Judiciário? Como fica? Como dito, fica igual ao que ocorre com as normas postas pelo Poder Legislativo: a partir da publicação, porém sem possibilidade de aplicação da regra dos 45 dias, posto que, aqui, tal regra não faria sentido.

Assim, se tal norma somente deve viger para o futuro, então, quando o STF decide um caso com repercussão geral e põe uma nova norma no ordenamento jurídico ela somente deve ser aplicada para o futuro, ou seja, para reger as relações jurídicas e seus efeitos dali em diante.

Essa é a regra.

Porém, como ficam as demandas ajuizadas e ainda não julgadas?

A pergunta é extremamente relevante, pois as demandas já ajuizadas e também aquelas que ainda serão ajuizadas poderão pedir ao Poder Judiciário que faça retroagir a norma jurídica do caso concreto para todo o passado permitido pelas regras de prescrição e decadência.

No Direito Tributário, isso é muito comum, especialmente nos casos que envolvem a repetição de indébito.

Diante desse tipo de caso, atente-se, se a nova norma geral posta pelo Poder Judiciário puder ser aplicada a demandas novas, ou seja, que serão ajuizadas somente depois da nova norma já ter sido posta no ordenamento jurídico pelo STF, então, tecnicamente ter-se-á o quê?

Tecnicamente, ter-se-á a retroatividade da norma jurídica, o que não é possível em função da segurança jurídica, pilar do sistema.

É exatamente por isso que o artigo 927 do CPC prevê a modulação apenas quando houver mudança de jurisprudência.

Dessa forma, andou muito bem o STF quando, ao julgar o RE 574.706, modulou os efeitos da norma posta nos seguintes termos: "O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins —, ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão em que proferido o julgamento".

Ao chegar até aqui, a pergunta final: e por que afirma-se que a modulação é exemplo clássico de consequencialismo interno? Que prognose de consequências é esta feita na modulação e que é autorizada pela própria lei, no caso, o artigo 927 do CPC?

Esse é o juízo necessário para a realização da modulação. É o juízo que recai sobre as consequências da norma nova geral quanto ao "interesse social" e à "segurança jurídica".

Quanto à segurança jurídica, o núcleo do problema está no controle da retroatividade da norma jurídica, nos termos acima postos. Em outras palavras: sempre que o tribunal antevir a possibilidade de retroatividade da norma geral posta, deverá realizar a modulação.

Dessa forma, nessa hipótese, a modulação não está no campo da discricionariedade do Poder Judiciário, que pode avaliar acerca da conveniência, ou não, de realizá-la: ele deve, necessariamente, empreendê-la. Trata-se de imperativo de segurança jurídica para preservar o sistema.

Especificamente em matéria tributária, contudo, há exceção, na qual o imperativo de segurança jurídica, a depender do juízo sobre as consequências do caso, poderá ceder. Essa hipótese ocorre nos casos de reconhecimento da inconstitucionalidade de determinada exação.

Nessa situação, excepcionalmente, mesmo diante da hipótese de mudança de jurisprudência, a segurança jurídica poderá ceder frente à deletéria possibilidade de que o Poder Judiciário chancele cobranças inconstitucionais. É certo que a segurança jurídica é base do Estado, porém, como o Estado existe para servir o cidadão, e não o contrário, é este que tem que ser resguardado.

Dessa forma, nessas hipóteses excepcionais, é o Judiciário, de forma discricionária e soberana, que decidirá pela modulação, ou não.

Por fim, no que diz respeito às consequências relacionadas ao "interesse social", penso que se trata aqui de cláusula de reserva, deixada pelo legislador ao Poder Judiciário para auxiliá-lo no manejo de tão difícil e complexo instituto, que é esse da modulação jurídica.

3) Modulação dos efeitos da decisão judicial prevista no artigo 27 da Lei 9.868/99
Nesse caso, a modulação tem função completamente diferente daquela comentada no item anterior.

Tratando-se, especificamente, de declaração de inconstitucionalidade através do controle concentrado, o texto da lei é declarado incompatível, formal ou materialmente, com a Constituição. Disso decorre que a validade da lei é cortada e, portanto, ela perde sua vigência com efeito retroativo total, ou seja, desde o princípio.

Assim, todos os fatos juridicamente qualificados com base na lei declarada inconstitucional, bem como todas as relações jurídicas constituídas e cujos efeitos foram gerados com base nessa lei terão de ser totalmente requalificadas, revisadas e reajustadas.

Aqui entra a modulação. É possível que o desfazimento de todo esse emaranhado de fatos jurídicos, situações jurídicas e relações jurídicas gere consequências muito mais desastrosas, gravosas ou penosas do que já foi gerado pela própria lei inconstitucional.

Então, cabe ao Poder Judiciário, a partir de juízo consequencialista, norteado pelo mesmo "interesse social" e pela mesma "segurança jurídica" mencionados no artigo 927 do CPC, tentar, não com base na ciência jurídica, mas com base na jurisprudência, harmonizar esse cipoal ou feixe de situações firmadas no passado.

Dessa forma, enquanto na modulação do artigo 927 está em jogo a irretroatividade da norma nova posta pelo Poder Judiciário, aqui o que está em questão é a necessidade de manter incólume situações jurídicas firmadas por lei que perdeu a validade, a vigência e a eficácia.

Em última análise, trata-se de manter a vigência da lei inconstitucional para certar situações, ou seja, manter sua capacidade para irradiar efeitos sobre determinada realidade fática em espaço de tempo fixado pelo tribunal.

Após tudo quanto dito, é possível se concluir que, enquanto no caso do artigo 927 a modulação é a regra, pois a lei nova geral posta pelo Poder Judiciário não deve retroagir, na presente hipótese, dá-se justamente o contrário: a modulação é a exceção, pois, a rigor, a lei inconstitucional, banida ab initio, não pode ter sua vigência mantida em nenhum intervalo de tempo.

Porém, da mesma maneira como ocorre no caso do artigo 927, a modulação pode gerar absurdos. Nessa hipótese, contudo, é a não modulação que pode gerá-lo, daí que, em uma e outra situação, entra em cena a destreza dos juízes para harmonizar o ordenamento jurídico, mas não só, harmonizar também todo o conjunto de milhões de relações jurídicas já constituídas e desenvolvidas sob a lei inconstitucional.

Quando se coloca na equação o fator tempo, ou seja, quando se adiciona a esse imbróglio o fato de que o STF pode demorar 20 anos para decidir uma ação direta de inconstitucionalidade, é possível vislumbrar o tamanho do problema.

No âmbito tributário, o caso mais paradigmático, sem dúvida, é o da ADI 1.945, ajuizada pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no dia 21/1/1999. O julgamento do mérito foi concluído no dia 24/2/2021. Nesse feito, se discutiu o critério material da regra-matriz do ISS, em confronto com a do ICMS, e a respectiva incidência sobre software por encomenda e software de prateleira. Quando foi ajuizada a demanda, rede social era o mIRC, os celulares eram analógicos e se vendia software, em grandes varejistas, armazenado em CD. Até o partido mudou de nome. Na corte, somente o ministro Marco Aurélio estava presente nas duas pontas do tempo.

Ao final do julgamento, o tribunal teve de fazer um enorme esforço consequencialista para modular os efeitos dessa decisão, envolvendo, simplesmente, 27 unidades federativas de nível estadual e miríades em nível municipal. O resultado pode ser conferido na ata de julgamento.

4) Conclusões:
a) A modulação prevista no artigo 927 do CPC tem como objetivo evitar a retroatividade da lei nova, posta pelo Poder Judiciário, e sua fixação deve ser vista como regra, não como exceção.

b) O texto de lei do artigo 27 da Lei nº 9.868/99, que trata da modulação para o caso de declaração de inconstitucionalidade no controle direto, também traz o consequencialismo como critério de decisão judicial, sendo outro excelente exemplo do chamado consequencialismo interno.

c) Diferentemente da modulação prevista no CPC, no caso da Lei nº 9.868/99, o objetivo é evitar situações absurdas e contrárias ao programa constitucional decorrente da perda superveniente da validade, vigência e eficácia do texto de lei declarado inconstitucional.

d) Nessa hipótese, ao contrário do que ocorre com a hipótese tratada pelo CPC, a modulação deve ser vista como exceção, não como regra.

 


[1] No caso da Turma Nacional, a obrigatoriedade da decisão não decorre do CPC, posto que este órgão não está listado no artigo 927, porém da sua própria estrutura e função. Este ponto, contudo, ainda não está assentado na jurisprudência do Colegiado nem foi ainda examinado pelo STJ.

[2] Sobre o assunto, consultar: BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define um julgamento e quais o limites dos juízes. São Paulo: Noeses, 2017.

[3] Para compreender o que é e como se estrutura o percurso gerador de sentido, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] Atenção. Aqui, necessária importante parada técnica, para que sejam lançadas algumas advertências relevantes: (i) para reger, especificamente, a relação jurídica objeto da demanda, a fenomenologia jurídica, ou seja, o movimento de construção normativa que aparece e que, portanto, pode ser observado e estudado, não é este de que estamos tratando; (ii) a fenomenologia de que cuidamos até agora é aquela alusiva à construção da norma geral que exsurge do julgamento do recurso repetitivo ou com repercussão geral, e que será vinculante para todo Poder Judiciário, nos termos do artigo 927 do CPC; (iii) contudo, há outra norma jurídica sendo construída em segundo plano e de forma particularizada para cada demanda especificamente, que é a norma jurídica do caso concreto; (iv ) neste segundo caso, é preciso examinar a petição inicial e verificar qual foi a dimensão e os contornos da controvérsia posta, inclusive no que diz respeito à sua extensão temporal, bem como as regras incidentes quanto ao ônus da prova, prescrição, decadência e efeitos financeiros, como valor principal, juros e correção monetária; (v) a doutrina processualista, em clássica divisão, costuma, inclusive, fazer diferença entre os efeitos (ou eficácia) da sentença declaratória, constitutiva, condenatória e mandamental.

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