Anuário da Justiça, 15 anos

No ano da crise, ações de controle de constitucionalidade batem recorde no STF

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30 de junho de 2021, 9h30

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2021, lançado nesta terça-feira, 29 de junho, na TV ConJur.

Num ano existencialmente atípico, nada mais natural que o Ranking de Constitucionalidade, publicado pelo Anuário da Justiça Brasil desde 2007, apresente resultados bem fora da curva. A começar pelo elevado número de ações de controle de constitucionalidade julgadas no mérito pelo Supremo Tribunal Federal: foram 408 ações julgadas em 2020, contra 271 no ano anterior – um crescimento de 50% em um ano e o maior número de ações analisadas pelo STF desde que o Anuário fez o primeiro Ranking de Inconstitucionalidade, com dados de 2006.

Com um volume tão grande de feitos julgados, é muito natural que também o número de ações procedentes – ou seja, que reconheceram a inconstitucionalidade das normas questionadas – tenha sido o mais elevado da série – 263. A surpresa maior, porém, é que em termos proporcionais, 2020 registra a segunda menor taxa de inconstitucionalidade da série histórica, com 64% de ações procedentes, superando apenas a taxa de 2016 (59%).

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A taxa de normas declaradas inconstitucionais é de 65%, similar à de ações procedentes. No total foram questionadas 471 normas, entre leis e decretos, portarias e resoluções, além de dez decisões judiciais. Do

total, 312 destas normas foram consideradas em conflito com a Constituição Federal.

Foi relativamente decisiva a contribuição da crise provocada pela epidemia do novo coronavírus por estes números fora da curva em 2020. Das 111 ações de inconstitucionalidade propostas em 2020 e analisadas pelo STF em 2020, a metade dizia respeito de alguma forma à Covid-19. E das 22 julgadas no mérito, dez também estavam contaminadas pelo novo coronavírus. Outras 17 ações relacionadas à crise sanitária dariam entrada na corte nos três primeiros meses de 2021, das quais 11 foram julgadas no mérito.

Em 2020, três ações (ADPF 672, ADPF 687 e ADI 6362) foram o instrumento para o Supremo definir e reafirmar o papel dos entes federativos no combate à epidemia. A decisão foi usada, maliciosamente, pelo governo federal para lavar as mãos diante da tragédia, na tentativa dolosa de transferir a culpa pelo desastre na administração da crise sanitária aos governos estaduais e municipais.

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Mas não foi isso que os ministros da Suprema Corte decidiram: “O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública, mas nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios.”

Já o ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADI 6.362, assegurou: “O federalismo cooperativo, adotado entre nós, exige que a União e as unidades federadas se apoiem mutuamente no enfrentamento da grave crise sanitária e econômica decorrente da epidemia desencadeada pelo novo coronavírus.” Assim, o Presidente da República mente quando diz que o Supremo proibiu o governo de atuar no enfrentamento da epidemia. Em duas ocasiões, a corte também decidiu que a Constituição não impede que os governos imponham a vacinação obrigatória a todas as pessoas.

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Outras decisões da corte foram no sentido de declarar a inconstitucionalidade da criação de facilidades como a redução das mensalidades das escolas particulares e a suspensão do pagamento de empréstimos consignados pretendida por prefeitos de diferentes cidades usando como pretexto as dificuldades advindas da epidemia.

Mas o aumento extraordinário do número de ações de controle de constitucionalidade julgadas em 2020 é o resultado do esforço promovido por Dias Toffoli, então presidente da corte, para limpar as gavetas atulhadas de ADIs e ADPFs pendentes de julgamento. Como já dito antes, 111 ações desse tipo deram entrada no Supremo depois da chegada do novo coronavírus. E do total de ações analisadas no ano, 342 foram protocoladas no STF há mais de cinco anos.

Logo no início de 2020, o Supremo foi convocado a dirimir uma questão parlamentar de grande impacto político: se os ocupantes da mesa da Câmara dos Deputados e do Senado podiam concorrer à reeleição. Não podem, decidiu, fechando a porta da continuidade para os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (Democratas-RJ), e do Senado, David Alcolumbre (Democratas-AP), e abrindo passagem para Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (Democratas-MG) ocuparem os postos, respectivamente.

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A corte julgou também 16 ADIs e uma ADPF, todas propostas pelo procurador-geral da República contra a União e os estados, contestando as normas que previam pagamento de honorários de sucumbência para procuradores e advogados públicos. O Plenário definiu a tese que reconhece a constitucionalidade do pagamento: “É constitucional o pagamento de honorários sucumbenciais aos advogados públicos, observando-se, porém, o limite remuneratório previsto no artigo 37, XI, da Constituição.”

Outro tema em que o Supremo reafirmou sua posição no julgamento de diferentes ações foi sobre a constitucionalidade de leis municipais que proibiam o ensino de educação sexual nas escolas, apelidada pelos defensores da moralidade da medieval família brasileira de ideologia de gênero.

Relator da ADPF 600, que tinha na mira lei aprovada pela Câmara Municipal de Londrina (PR), o ministro Roberto Barroso atentou para o fato de ser competência privativa da União legislar sobre diretrizes e bases da educação e chamou a atenção para a “importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens. Indivíduos especialmente vulneráveis que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente naturalizado. É dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão”.

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Além de Londrina, também atentaram contra a Constituição com a pretensão de combater a ideologia de gênero os municípios de Cascavel, Foz do Iguaçu e Paranaguá, todos do Paraná, Ipatinga (MG), Palmas (TO) e Novo Gama (GO).

Um bloco de ações promovidas por entidades sindicais questionou dispositivo da Emenda Constitucional 45/2004 que exige acordo mútuo entre as partes para a instauração de dissídio coletivo na Justiça do Trabalho. O ministro Gilmar Mendes destacou a importância da negociação coletiva na Justiça do Trabalho para afirmar a constitucionalidade do dispositivo.

Quase um terço das ações julgadas no mérito tiveram como objeto normas federais – o que inclui leis aprovadas pelo Congresso, medidas provisórias baixadas pelo governo central, atos administrativos de ministérios e órgãos da União e, também, decisões judiciais de diversos ramos da Justiça Federal. Foram 127 normas num total de 408, um número mais que duas vezes maior do que o registrado em 2019, quando foram julgados 50 processos contra a União. Mesmo dando o desconto de que 60% das ações movidas contra as normas federais foram consideradas improcedentes, chama a atenção o fato de que nada menos que 51 resultaram em declarações de inconstitucionalidade.

No caso do Judiciário, foram movidas seis ações de inconstitucionalidade contra decisões de varas da Justiça do Trabalho em Santa Catarina, no Ceará, no Rio Grande do Norte, no Pará e no Amapá que determinaram o bloqueio de recursos de órgãos públicos para garantir o pagamento de dívidas trabalhistas. “É inconstitucional o bloqueio de recursos públicos para o pagamento de verbas trabalhistas devidas a empregado público, por ofender o princípio da legalidade orçamentária, haja vista a impossibilidade de constrição judicial de receitas que estejam sob a disponibilidade do poder público, por força de convênio e para finalidade específica legalmente definida”, decidiu o ministro Edson Fachin ao conceder liminar no julgamento da ADPF 530, contra decisão do TRT-8 (Pará e Amapá).

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Em segundo lugar no ranking aparece o Rio de Janeiro, com 24 ações ajuizadas e 19 consideradas procedentes, seguido por Rio Grande do Sul (19 ações, das quais 16 procedentes) e São Paulo (26 e 15). Em seu conjunto, contudo, os estados são os alvos preferenciais das ações de inconstitucionalidade. Eles respondem por 250 ações de inconstitucionalidade das 408 que foram julgadas no mérito em 2020. Aparecem ainda na tabela de classificação sete municípios, seis deles por conta das tais chamadas leis de combate à ideologia de gênero.

Pela primeira vez, o principal proponente de ações de controle de constitucionalidade não foi a Procuradoria-Geral da República, que tem nesta atividade uma de suas principais atribuições. Quem ocupou este posto, em 2020, foram as organizações da sociedade civil: associações de classe e empresariais e também o Conselho Federal da OAB. Estas entidades propuseram, no conjunto, 192 ações, quase um terço do total de proposituras e praticamente o dobro das iniciativas da PGR.

No confronto entre o bloco de organizações civis e o grupo de entidades do Estado – no caso governos estaduais e PGR – que contestam a constitucionalidade das normas, salta aos olhos que as ações do setor privado têm taxa de sucesso muito abaixo daquela obtida pelo setor estatal. Enquanto os governos estaduais foram atendidos em 81% de suas demandas e o Ministério Público, em 79%, as entidades que representam o mundo do capital e do trabalho foram atendidas em 54% e 49% de suas petições, respectivamente, o que resulta na média de 51% para todo o setor. E os partidos políticos tiveram um saldo negativo de êxito em seus questionamentos: 49%.

A legislação do Trabalho ficou em quinto lugar entre os temas que mais suscitaram arguições de inconstitucionalidade. Mas tirando as ações contra o bloqueio de bens públicos, a maioria das outras ações foi considerada improcedente. Elas foram movidas, em grande parte, pela inconformidade dos trabalhadores com dispositivos da reforma trabalhista.

Descontado o primeiro lugar conferido ao controle de constitucionalidade (172 ações), os temas mais frequentes nas demandas foram as ações referentes aos servidores públicos (55 ações, das quais 44 procedentes), a Direito Tributário (39 e 24) e a concessões de serviços públicos (27 e 19).

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