Trabalho contemporâneo

"Ne nuntium necare": não mate o mensageiro

Autor

29 de junho de 2021, 8h00

Ao ler a nota da OAB/RJ sobre o artigo que escrevi neste espaço em 08/06/2021, acerca da venda de créditos trabalhistas, imediatamente veio à minha lembrança a história da célebre frase, título deste artigo.

Spacca
Pelo que se sabe, a origem da expressão seria a ordem dada por Dario 3, rei da Pérsia, quando lhe chegou uma notícia ruim, a da derrota de seu exército para Alexandre, o Grande. Ao invés de enfrentar a realidade da derrota, determinou ele a morte de quem trazia a notícia, provavelmente para encobrir seu próprio fracasso.

Guardadas as proporções, a nota pública da Diretoria da OAB/RJ soa, para mim, exatamente como a clássica história: no lugar de refletir sobre a questão exposta, a ordem é matar o mensageiro e ignorar a mensagem.

A tática de desacreditar quem fala o que pensa e, por isso, incomoda, constitui um triste expediente que, para além de um ataque pessoal, traduz a intenção de evitar o debate por quem detém o poder estabelecido. E o artigo por mim escrito, objeto da nota, não faz outra coisa além de expor uma triste realidade subjacente ao mister da comunidade jurídica de nossa área: o mercado bilionário alimentado pelos conflitos trabalhistas.

Não causa surpresa o expediente. A morte deste mensageiro já foi tentada pela própria Instituição que integra, através da Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro. Quinta-feira, 17/6/2021, o Pleno do TRT-1 colocou em pauta o julgamento da reclamação disciplinar 0101930-77.2021.5.01.000, defendendo a Corregedoria a abertura de processo administrativo disciplinar para minha eventual punição.

A reclamação ocorreu em razão do artigo por mim escrito nesta mesma revista eletrônica, sobre a decisão judicial que condenou a Churrascaria Fogo de Chão em 17 milhões de reais a título de dano moral coletivo. O motivo da condenação? A empresa ter efetuado dispensa em massa sem negociação prévia com o sindicato, exatamente como autoriza a lei (artigo 477-A da CLT). Questionei, de forma contundente, as razões de decidir da colega magistrada, apenas isso.

Foram aproximadamente cinco horas de sessão para o Pleno deliberar sobre a abertura do Processo Administrativo Disciplinar, finalizando a votação em 21 a 20. Como não foi alcançada a maioria absoluta exigida por lei, determinou-se o arquivamento da reclamação. Não houve vitória neste episódio, perdemos todos, a classe e a sociedade, pois o que fica claro é o desejo de suprimir a liberdade de expressão.

Ao invés de se refletir sobre a questão trazida em artigo acadêmico, optou-se por tentar calar o porta voz, isso para não mencionar os diversos ataques que já recebi pessoalmente de outras frentes, incluindo a acusação de ser machista pelo simples fato da decisão analisada ter sido proferida por colega do sexo feminino.

Vira-se o rosto para questões óbvias, que esgarçam nosso cotidiano e produzem uma péssima imagem ao Poder Judiciário brasileiro, famoso por ser custoso e ineficiente. Conforme as estatísticas oficiais, as execuções trabalhistas somente são efetivas em cerca de 30% dos casos. E olha que a Justiça do Trabalho é reconhecida como a mais célere e efetiva.

Cria-se, anualmente, uma massa de créditos que, recentemente, começaram a ser negociados dentro da lógica capitalista, o que, no mínimo, deveria levar a uma reflexão crítica sobre o quê e como fazemos. Dentro da magistratura posso afirmar que vários colegas sentem um estranhamento por passarem a executar créditos de trabalhadores a favor de empreendedores capitalistas.

Não se trata, aqui, de ser a favor ou contra tais práticas, mesmo porque a questão deve ser resolvida simplesmente de acordo com o ordenamento jurídico em vigor. Não cabem paixões no momento da análise da viabilidade jurídica de um negócio, cumpre ser imparcial e formar a convicção a partir das regras previstas no direito positivo.

Agora, impedir através de ataques pessoais, buscando fixar a alcunha de destruidor de direitos sociais, inimigo da advocacia ou algo que o valha apenas pelo fato de se ter a coragem de mostrar à sociedade o que vivemos, realmente é para ser lamentado. Não é possível que a comunidade jurídica não deva refletir sobre a matéria, até para buscar novas alternativas quanto à implementação dos direitos sociais e, não, sua mera comercialização.

Como digo há anos para meus alunos, Direito do Trabalho é bom na medida em que é cumprido. A lógica da monetização do descumprimento não protege o trabalhador, que se vê à mercê das necessidades pessoais aos negociar seus direitos. E tudo começa na presença do próprio juiz, através dos acordos judiciais onde parte dos chamados "direitos indisponíveis" são transacionados e se transformam em simples créditos.

Uma leitura atenta ao artigo que escrevi revela profundo respeito a todos os profissionais que atuam na área, bem como a honestidade de reconhecer que todos nós vivemos da existência do conflito trabalhista. E deixa claro que o recente negócio de venda de créditos possui o grande risco de fomentar a judicialização, como forma de alimentar o próprio mercado que viabiliza sua existência, na contramão de tudo que se deseja para um Poder Judiciário moderno.

Defender uma Justiça enxuta, a redução da conflituosidade na área trabalhista, mecanismos alternativos para solução dos conflitos, sempre com a participação dos advogados, bem como identificar que há, sim, diversos interesses no mercado bilionário em que se transformou o contencioso trabalhista, é um imperativo de quem deseja a melhoria para o país, ainda que sofra pessoalmente perdas em sua condição.

Uma legislação que produza harmonia, em lugar de conflito, procedimentos para soluções amigáveis que aproximem os atores sociais, deixando para a jurisdição apenas os casos em que, efetivamente, seja indispensável a intervenção do Estado-juiz, a redução dos custos para a sociedade com o aparato do Poder Judiciário, através de novos modelos para o exercício da jurisdição, o reconhecimento dos limites do poder da magistratura, em respeito ao Estado Democrático de Direito e à autonomia dos demais Poderes da República, acabando com a chaga do voluntarismo e das influências ideológicas no ato de decidir que geram extrema insegurança jurídica, são algumas das bandeiras que defendo veementemente e que continuarei pontuando.

Espero estar equivocado, mas ignorar a realidade focando em uma narrativa defensiva e criando um inimigo imaginário, ainda mais sem nenhum potencial ofensivo, constitui a caminhada para o abismo da proteção social tão decantada por diversas instituições da sociedade.

Enquanto desviamos a atenção do que realmente importa, a desconstrução da própria competência da Justiça do Trabalho segue em ritmo forte. A nota pública da OAB/RJ, longe de contribuir para o debate, apenas ratifica o que tenho expressado semanalmente: seremos nós nossos próprios algozes. E não adianta matar o mensageiro.

Superado o episódio, continuarei na próxima semana meu ofício, lembrando que o tempo sempre é remédio abençoado para curar as agruras deste mundo. E conforme o poeta Mário Quintana:

"Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!"

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!