Paradoxo da Corte

Garantia do contraditório e collateral estoppel

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

29 de junho de 2021, 8h01

Não se duvida que as mutações da realidade influenciam a experiência jurídica e, por via de consequência, deformam as soluções tradicionais para questões que não permanecem estáticas. A esse notável fenômeno não pode, à evidência, restar estranha a obra da ciência do direito, mais especificamente da dogmática, entendida como uma complexa atividade, na qual cabe distinguir essencialmente os seguintes escopos: 1) o de fornecer uma análise conceitual e de propiciar o conhecimento sistemático da lei em vigor; e 2) o de elaborar propostas para a solução dos dilemas jurídicos e superação dos paradigmas e, ainda, o de fornecer critérios para a aplicação do direito.

É muito provável que, por esta fundamental razão, inúmeros juristas modernos têm sentido menor receio de ampliar o estudo de comparação jurídica (de estabelecer um "diálogo"…) entre os sistemas do common law e do civil law.

Não é preciso frisar que realmente existem profundas discrepâncias acerca das matrizes teóricas do direito anglo-americano e do direito europeu-continental e, assim, entre os seus respectivos fundamentos. Não obstante, na realidade da praxe jurídica, ou seja, no que se refere à interpretação e à aplicação do direito, essa presumida diferença não joga qualquer papel determinante… As duas faces do processo e, sobretudo, da decisão judicial — autoridade e razão — estão estritamente ligadas: uma jurisprudência e uma legislação constantemente irracionais perderiam toda autoridade, mas o pensamento jurídico racional, revestido portanto de autoridade, deve transpor-se à decisão. Na teoria do direito anglo-americano o acento mais forte é colocado sobre o elemento da razão; na do direito europeu-continental, sobre o elemento da autoridade, mas sempre em busca de um caminho que atenda à efetividade do processo e ao anseio de toda a sociedade (cf. Martin Kriele, Il precedente nell’ambito giuridico europeo-continentale e angloamericano, La sentenza in Europa, Padova, Cedam, 1988, p. 517).

Nesse sentido, interessa verificar até que ponto os resultados alcançados pelo sistema do common law, em matéria de limites subjetivos da coisa julgada, podem auxiliar como instrumento de análise, de reflexão e de eventual reforma.

Cumpre consignar inicialmente que as regras que governam a extensão ultra partes da coisa julgada na doutrina e na praxe do direito anglo-americano têm uma disciplina praticamente idêntica àquela tradicional originada nas fontes romanas. E há também um consenso entre os juristas do common law, de época contemporânea, quanto às dificuldades para garantir a efetividade do processo e, ao mesmo tempo, tutelar o direito dos terceiros.

O julgamento de mérito, no âmbito de tal sistema jurídico, somente pode vincular as pessoas que tiveram oportunidade de debater a causa perante o tribunal. Essa premissa contém implícita a garantia do due process: "the full and fair day in court". E, ademais, entre aquelas se incluem ainda os privies, ou seja, os sujeitos que, de algum modo, às partes se equiparam, como, por exemplo, o sucessor do litigante na coisa ou no direito litigioso, ou o sócio, o co-credor ou co-devedor.

Como se observa, a denominada "regra da mutualidade" (mutuality rule), cunhada na dogmática do common law, que muito se aproxima do princípio clássico acerca dos limites subjetivos, segundo o qual a autoridade do julgado só opera entre as partes. Pela incidência desse princípio, as questões de fato e de direito que já foram apreciadas e decididas, cobertas pela issue preclusion, não podem ser objeto de novo exame num segundo processo entre as mesmas partes. E, se eventualmente voltarem a ser deduzidas pela parte que antes fora derrotada, o outro litigante pode opor-lhe o anterior julgado, que produz collateral estoppel. Ressalte-se que a referida preclusão recai também sobre as questões prejudiciais, decididas incidenter tantum.

É evidente que se a segunda demanda fosse ajuizada por outro litigante contra a parte derrotada no primeiro processo, o autor não poderia arguir collateral estoppel para paralisar a força dos argumentos deduzidos pelo réu, já examinados e julgados no precedente processo. Assim, segundo o exemplo fornecido por James Hazard Jr. (Civil Procedure, 3ª ed., Boston, Little-Brown, 1985, p. 631-632), alegando ter sofrido dano físico, em decorrência de acidente de carro provocado por Pedro, que dirigia o automóvel de Gustavo, Antônio move ação contra o proprietário do veículo, Gustavo, fundada na culpa in vigilando. O argumento principal é o de que Pedro agira com manifesta imprudência. O pedido é julgado improcedente porque não teria havido imprudência alguma. Nesse caso, não haveria qualquer óbice a que Antônio promovesse sucessiva ação em face de Pedro, reabrindo, por certo, a questão da imprudência. E isso, porque Pedro, a rigor, na condição de terceiro, não estaria adstrito à autoridade da coisa julgada atinente ao primeiro julgamento. Logo — acrescenta Hazard —, a decisão sobre a imprudência, em decorrência da "regra da mutualidade", só produz issue preclusion em relação às partes, não a terceiros…

Saliente-se, outrossim, que, apesar de sofrer algumas insignificantes exceções, esse princípio permaneceu inalterado até 1942, quando foi superado no caso Bernhard v. Bank of America. Nesse precedente, que se tornou famoso, o primeiro julgamento aprovara as contas apresentadas pelo inventariante (Cook) no inventário da testadora (Mrs. Sather). Antes de sua morte, Mrs. Sather havia autorizado Cook a gerir os seus negócios. Mais tarde, ela sacou determinada quantia de uma conta de poupança e entregou-a a Cook, que a depositou numa conta-corrente conjunta em nome de "Clara Sather e Charles O. Cook". Em momento posterior, Cook sacou aquela importância e utilizou os recursos em seu próprio benefício. Quando Mrs. Sather faleceu, Cook era o inventariante. As contas apresentadas no inventário não mencionavam a existência daquele valor em dinheiro. Os herdeiros instituídos pelo testamento de Mrs. Sather, incluindo Helen Bernhard, em decorrência de tal omissão, impugnaram a respectiva prestação de contas. Após a audiência de instrução, as contas foram homologadas, tendo constado da decisão judicial que a falecida, ainda em vida, beneficiara Cook, a título de doação, com aquela soma em dinheiro.

Quando Cook foi destituído da inventariança, Bernhard foi nomeada administradora do espólio e moveu uma segunda ação contra o banco, reclamando a importância em dinheiro, sob o argumento de que Mrs. Sather nunca havia autorizado o referido saque. A Suprema Corte da Califórnia, pelo voto do Juiz Traynor, entendeu que Mrs. Bernhard e os outros herdeiros instituídos pelo testamento estavam vinculados à autoridade da decisão que declarara a existência de doação, questão (prejudicial) que tornava prejudicados os fundamentos da ação promovida em face do banco. O tribunal então decidiu que: "Na determinação da procedência da arguição do collateral estoppel, como efeito da coisa julgada, três questões são fundamentais: 1) se o objeto de decisão no precedente processo era idêntico àquele examinado no sucessivo?; 2) se houve decisão de mérito com trânsito em julgado?; e 3) se aquele contra quem a (segunda) pretensão é deduzida foi parte ou tinha algum vínculo, ainda que objetivo (privity), com a parte do primeiro processo?" (cf., ainda, James Hazard Jr., Civil Procedure, cit., p. 632-633).

Essa mudança de paradigma, ocorrida nesse leading case, conhecido como Bernhard doctrine, foi, aos poucos, granjeando adeptos em outras cortes de justiça. Diga-se que a base teórica para o reconhecimento do collateral estoppel sem observância estrita à clássica regra da mutualidade (tria eadem) foi inspirada não apenas na economia processual, mas, sobretudo, na garantia do contraditório. E isso, porque, se a parte teve "vigorosa" oportunidade de defesa acerca de determinada matéria litigiosa em precedente demanda, mas sucumbiu, não há razão para rediscuti-la em outro processo pelo simples fato de que, no subsequente caso, a contraparte não é a mesma. Caberá sempre ao juiz do segundo processo verificar se realmente a ampla defesa foi assegurada, em particular, no que respeita às consequências que decorrem da pretensão do terceiro.

Esse relevante aspecto só vem confirmar, mais uma vez, a importância que é depositada na atuação dos juízes do sistema do common law, dotados de amplos poderes de direção do processo.

Infere-se, assim, que acaba sendo desprezada a exigência de identidade de parte ao litigante que tem a possibilidade de arguir a coisa julgada contra aquele que a ela se encontra subordinado. Essa solução permite reconhecer a autoridade da coisa julgada em prol de vários co-interessados que não participaram do processo. Frise-se — consoante observou Giovanni Pugliese — que esses co-interessados não são titulares de situação jurídica comum, mas titulares, cada qual, de uma distinta relação jurídica, conexa àquela que foi decidida, porque originada de um único fato ou de um fato idêntico (Giudicato civile (dir. vig.), Enciclopedia del diritto, 18, Milano, Giuffrè, 1968, p. 888).

Os tribunais norte-americanos passaram, outrossim, a distinguir a oposição defensiva e ofensiva do collateral estoppel, num novo processo, por quem não foi parte no anterior.

O emprego defensivo do collateral estoppel ocorre quando o réu, que não participou do primeiro processo, opõe ao autor a preclusão sobre o objeto da demanda, para impedir que este último faça valer uma pretensão já anteriormente deduzida em juízo e contra ele decidida. O collateral estoppel é considerado ofensivo quando o autor impede que o réu apresente em sua defesa matéria de fato ou de direito, já por ele invocada, sem sucesso, numa precedente demanda, mesmo que em face de outro sujeito. Nesse caso, como se denota, o demandante pode ser dispensado do ônus de provar a responsabilidade do réu, se já reconhecida em anterior decisão.

Ademais, é até intuitivo inferir que o mecanismo do collateral estoppel favorece a transação, antes da instrução probatória, porque estimula o réu a evitar uma decisão que lhe seja desfavorável, com o risco de "selar" a sorte de ações subsequentes contra ele aforadas.

Estas reflexões conduzem a duas considerações finais.

A despeito das inúmeras e acentuadas diferenças que, nesse particular, todo esse arcabouço técnico possui se cotejado com o regime da coisa julgada no âmbito do civil law, é possível admitir que, também em nosso direito, um terceiro e, portanto, não subordinado à coisa julgada produzida inter partes, possa valer-se da eficácia desta num sucessivo processo.

Não resta dúvida de que essa situação guarda alguma similitude com o disposto no artigo 274 do vigente Código Civil brasileiro, cuja redação é a seguinte: "O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais; o julgamento favorável aproveita-lhes, a menos que se funde em exceção pessoal ao credor que o obteve". A 1ª parte do artigo 274, caso a ação tenha sido ajuizada apenas por um ou alguns dos credores, harmoniza-se com a regra geral do artigo 506 do Código de Processo Civil, que delimita, sob o aspecto subjetivo, a coisa julgada, porque, se o resultado for desfavorável ao demandante, é ele ineficaz aos demais credores que não participaram do processo. Estes poderão, em sucessiva demanda, buscar a condenação do devedor comum. Todavia, sem embargo da confusa redação, a 2ª parte do artigo 274, na hipótese de julgamento favorável ao credor demandante, prevê a extensão da autoridade da coisa julgada aos credores estranhos ao processo. Ora, isso significa que se o devedor, condenado no primeiro processo, ajuizar ação de natureza declaratória em face dos outros credores, então ausentes (daquele processo), poderão eles lançar mão da exceção de coisa julgada.

Igualmente, a procedência do pedido formulado na ação anulatória de deliberação societária (ex vi do artigo 206, inciso II, da Lei 6.404/76) atende ao interesse de muitos dos sócios que não participaram do respectivo processo, o que torna absolutamente inócuo o ajuizamento de ulterior ação judicial por qualquer deles. Mas, se a sociedade pretender rediscutir a matéria em futura demanda movida em face destes, será oponível a exceptio rei iudicatae pelos réus.

E, de idêntico modo, na opinião de Michele Taruffo, com a qual desde logo concordamos, ao litisconsorte necessário, que deixou de ser citado, é também permitido valer-se da res iudicata que lhe proporcionou vantagem jurídica, caso pudesse, em seguida, ser isoladamente acionado pela parte que sucumbiu no primeiro processo: "nulla impedisce che egli possa opporla a chi è rimasto soccombente nel primo processo" ("Collateral estoppel" e giudicato sulle questioni, Rivista di diritto processuale, 1972, p. 297-298). 

A derradeira consideração leva à conclusão de que, diante do exposto, o que realmente importa, seja no sistema do common law, seja na experiência jurídica do direito codificado, é que tenham sido asseguradas ao litigante, contra o qual será posteriormente oposta a coisa julgada, as garantias do devido processo legal.

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