Opinião

Festejos juninos em tempos pandêmicos: celebração e direito ao desenvolvimento

Autores

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora federal no TRF-3 e mestre e doutora em Direito.

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

29 de junho de 2021, 14h02

Desde 2020, em decorrência da grave crise sanitária decorrente da Covid-19, a época dos festejos juninos, tão típicos em todo o Nordeste, teve de se adaptar às medidas restritivas para contenção e prevenção de contágio pela doença. Encontros menores, no entanto, têm sido realizados nos lares nordestinos, preservando-se a estética da festa a partir de poucos elementos, como a culinária típica, as roupas matutas e a decoração com bandeirinhas coloridas nas casas e quintais.

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Falar em comemorações e pensar em festa neste momento de luto coletivo, e no mês em que a Covid-19 atingiu a marca de 500 mil mortes no país, pode parecer sem sentido ou em total dissonância com a realidade. Mas os valores de referência ligados à memória e à identidade do povo nordestino em relação às festas juninas permitem afirmar o contrário: que a celebração do São João, além do exercício de um direito cultural coletivo, é uma forma de tornar efetivo o direito ao desenvolvimento.

Há uma ligação e uma memória afetiva entre as festividades juninas e o povo nordestino. Sob a ótica constitucional, a celebração junina é manifestação cultural (artigo 215) e também patrimônio cultural imaterial brasileiro, por reunir elementos e bens portadores de valores de referência à identidade, à ação, à memória do povo nordestino (artigo 216). Trata-se de uma celebração de origem essencialmente rural, em que familiares e amigos se reuniam, e ainda se reúnem, para comemorar a colheita e a época das chuvas.

Por isso, a identidade e a memória do povo nordestino persistem nessa época do ano, mesmo deixando de lado os grandes eventos, que geram renda, entretenimento e reafirmam as tradições culturais, bem como os encontros familiares com maior número de pessoas, sempre regados a comidas e bebidas, a forró de pé de serra, a danças de quadrilhas e à realização de práticas tradicionais, como leilão e casamento matuto.

O que se quer destacar é que mesmo com as duras perdas econômicas provocadas pela pandemia de Covid-19 para diversos setores, com afetação direta no desenvolvimento de toda a região nordestina, que se beneficia do turismo sazional das festas juninas, remanesce a necessidade de se valorizar e proteger os direitos culturais da comunidade.

A ideia de diversidade cultural e de vivência intergeracional da memória afetiva em meio a uma crise sanitária de proporções inéditas ressalta a importância de se discutir a sustentabilidade e o direito ao desenvolvimento como conceitos que exigem o diálogo permanente entre os pilares da inclusão social, tutela ambiental e  do desenvolvimento econômico e as políticas públicas que prestigiam e resguardam as liberdades, especialmente as liberdades culturais, que podem ser guardiãs de práticas que voltarão a gerar riquezas quando a crise sanitária passar.

Nessa ótica, vale destacar a visão de Amartya Sen, para quem o desenvolvimento estaria tão vinculado à liberdade, assim como o contrário, que os dois termos poderiam ser tratados como interdependentes [1]. A compreensão de Sen parte de um enfoque mais profundo do que a mera discussão sobre o acesso formal e material aos direitos sociais, uma vez que as questões de gênero e de raça e de participação e averiguação nos processos e procedimentos de interesse público também precisam ser levadas em consideração. Por isso Amartya Sen afirma que "o que as pessoas conseguem realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras, como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas" [2].

Essa visão  de desenvolvimento a partir da cidadania ativa e da garantia de liberdades  guarda harmonia com o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, porque esse é o abrigo mais propício para o exercício do direito ao desenvolvimento na perspectiva de diversidade cultural intergeracional ou simplesmente do direito ao desenvolvimento consagrado no Princípio 3 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), que diz "o Direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de gerações presentes e futuras".

Como prática simbólica, as festas de São João estão inseridas numa dinâmica social consolidada a partir de valores e sentidos vivos, sempre inacabados e em constante (re)elaboração. São, ainda, o motor para a efetividade de outros direitos sociais, econômicos, culturais e estão vinculados diretamente a alguns dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), entre os quais destacamos o ODS 11, que versa sobre o compromisso de "tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis", tendo o Brasil adequado a meta 11.4 deste ODS para "fortalecer as iniciativas para proteger e salvaguardar o patrimônio natural e cultural do Brasil, incluindo seu patrimônio material e imaterial"; e o ODS 15, que traz a finalidade de "proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade".

Muito antes da edição dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) pela ONU, as fogueiras, os fogos e os balões, que faziam parte de qualquer festejo junino até a década de 1990, passaram a ser questionados: aos balões se atribuíam incêndios; aos fogos, acidentes, eventuais incêndios e poluição atmosférica, além da lesão aos animais, que se assustam com o barulho produzido. No entanto, as fogueiras eram consideradas as principais vilãs, por contribuírem de maneira mais significativa para a geração de poluição atmosférica e para o desmatamento irregular.

Era (e continua sendo) inegável o impacto das fogueiras na desertificação e na perda da biodiversidade, especialmente no âmbito do semiárido nordestino, onde esse processo de perda da cobertura vegetal é mais intenso do que no resto do país, e também porque é nessa região que essa comemoração é mais forte. Também eram mencionados eventuais incêndios e problemas urbanísticos, como a queima da fiação elétrica, a queima da copa das árvores e o surgimento de buracos no asfalto.

Por isso, desde os anos 2000, com a finalidade de atender às exigências ambientais, a comunidade incorporou as propostas de adaptação das práticas juninas: os fogos estão mais seguros, apesar de as modalidades menos barulhentas ainda precisem ser mais utilizadas, inclusive para respeitar os animais; os balões juninos, embora ainda aconteçam, estão cada vez menos frequentes, até porque são proibidos pela Lei de Crimes Ambientais (artigo 42); o número de fogueiras se reduziu de maneira considerável, o que se deu tanto em razão de campanhas de conscientização quanto da fiscalização dos órgãos responsáveis, que passou a cobrar a origem da lenha.

Essas adaptações dos festejos à proteção do meio ambiente, e agora também às restrições sanitárias, são demonstrações da força do elo afetivo existente entre o povo nordestino e o São João e um exemplo exitoso do exercício do direito ao desenvolvimento, num espectro de liberdades, pela comunidade nordestina. As boas mudanças vão além da temática ambiental e são um sinal de que as gerações futuras serão herdeiras de um legado com gosto de bolo de milho e um colorido que só os nordestinos e as bandeirinhas juninas têm.


[1] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 46

[2] SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 18.

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    é desembargadora Federal no TRF da 3ª. Região (SP), doutora em Direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), especialista em Direito Sanitário pela UnB e autora do livro "Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro" (Ed. Forum).

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    é advogado, doutor em Direito da Cidade pela UERJ e em Recursos Naturais pela UFCG e professor da UFPB e da UFPE.

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