Anuário da Justiça, 15 anos

Supremo, incansável guardião da Constituição durante a pandemia

Autor

29 de junho de 2021, 7h40

*Artigo publicado no Anuário da Justiça Brasil 2021, que será lançado hoje, 29 de junho, às 10h30, na TV ConJur.

Ao iniciar o ano de 2020 ninguém estava preparado para a assombrosa situação de pandemia a ser enfrentada em esfera mundial. Também nós, integrantes do Conselho Superior da Magistratura, quando traçamos as prioridades do biênio 2020-2021, jamais imaginávamos que grande parte do planejado seria alterado, em pouco mais de dois meses, pelas novas necessidades impostas pela Covid-19. Depois de mais de 40 anos de magistratura, uma certeza carrego na mente e no coração: não importa o tempo, o espaço físico, as condições financeiras ou sanitárias: o foco do Poder Judiciário é, e sempre será, o cidadão.

Após mais de um ano do reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a crise mundial gerada pela Covid-19 permanece uma adversidade profunda, que nos tem custado milhões de vidas em todo o globo terrestre. Só no Brasil, foram mais de 400 mil perdas. Os anos de 2020 e 2021 marcarão as nossas memórias como o momento mais trágico para a humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. Somente daqui a alguns anos, quiçá décadas, é que olharemos para trás e conseguiremos compreender a real dimensão da adversidade que ora vivenciamos.

A epidemia tem revelado não apenas a finitude humana, sendo um desafio pessoal e coletivo para os cidadãos brasileiros, como também tem testado a capacidade de coordenação das instituições dos Três Poderes, que têm se deparado com escolhas trágicas e complexas. Seja na implementação emergencial de serviços de saúde e de medidas de restrição de circulação, seja nos ajustes fiscais e nas políticas econômicas para alívio dos impactos econômicos da epidemia.

Na realidade, o momento atual demonstra que não existem decisões fáceis quando há tensão entre o direito à vida e o direito à liberdade, ou entre o direito à saúde e o direito ao trabalho. Essas aflições se agravam ainda mais em face do toque contextual do extraordinário e do imprevisível, uma vez que estamos submetidos a um cenário de difícil ponderação entre riscos, custos e benefícios em cada uma das nossas decisões.

Diante dessa situação preocupante, o desafio de enfrentar essa crise é relevante, porém, maior deve ser o sentimento de esperança na superação. Por onde passo, tenho reiterado esta mensagem: o presente momento expôs não somente as fraquezas, mas também as fortalezas, a capacidade de reinvenção dos cidadãos e de suas instituições.

Sob a perspectiva jurídica, duas circunstâncias alimentam vigorosamente essa minha percepção resiliente do futuro.

Em primeiro lugar, nesse processo de reação e de reconstrução nacional, o meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição sairá mais fortalecida dessa crise. Forçoso reconhecer que, mesmo no auge da ansiedade coletiva causada pela epidemia, ninguém – ninguém – ousou questionar a legitimidade e a autoridade da Constituição Federal, tampouco das respostas que o seu guardião, o Supremo Tribunal Federal, construiu para nossas incertezas momentâneas.

Em segundo lugar, o cidadão brasileiro testemunhou o esforço dos tribunais brasileiros, notadamente de nossa Suprema Corte, em garantir segurança jurídica, paz social e estabilidade democrática, bem como em estimular a coordenação entre os entes federativos.

Nos últimos meses de epidemia, o Supremo Tribunal Federal tem sido incansável no seu propósito de julgar em tempo recorde ações judiciais que versem sobre o enfrentamento da epidemia da Covid-19. Nos últimos doze meses, foram mais de sete mil processos relacionados à crise sanitária, decididos individual ou colegiadamente, com relevante impacto político, social e econômico.

Para destacar a atuação do STF diante da epidemia, relembro que, em decisões pragmáticas, a Corte reforçou a competência corrente da União, dos estados e dos municípios para a concretização de políticas públicas de combate à epidemia.

Além disso, foi preciso atuar também para mitigar os impactos econômicos das necessárias medidas restritivas de circulação, sem se descuidar da observância dos direitos sociais e trabalhistas. E, para isso, permitiu, em caráter extraordinário, o realinhamento fiscal de diversos estados, proporcionando a realocação de orçamento para os gastos emergenciais com saúde pública.

E cumprindo com a missão institucional do Supremo Tribunal Federal, decidimos casos relacionados à obrigatoriedade da vacina e à aquisição de seus insumos, à disponibilização de leitos de UTI e respiradores aos necessitados, entre outras medidas urgentes para a concretização do direito à saúde.

Todo esse repertório jurisprudencial se inspira na premissa de que não há saída para nenhuma crise fora da Constituição. No exercício de suas funções, o Supremo Tribunal Federal tem buscado assegurar que a nossa Constituição permaneça como a certeza primeira de todos os brasileiros. Deveras, numa sociedade democrática, momentos de crise nos convidam a reforçar a crença em nossa Carta Maior e em nossas instituições. Afinal, é o artigo primeiro de nossa “Constituição Cidadã”, na feliz expressão de Ulysses Guimarães, que reúne os valores que constituem a essência de nossa identidade brasileira: a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, a soberania nacional, a cidadania e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Não por acaso, no premiado best-seller Why Nations Fail, os economistas Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Harvard) demonstram que a chave para o desenvolvimento socioeconômico de uma nação perpassa a construção de um ambiente sólido de respeito às instituições, balizado em uma cultura política íntegra e proba. Com efeito, não podemos olvidar que nações que souberam construir instituições inclusivas alcançaram ciclos virtuosos de desenvolvimento sustentável.

Imbuído desse espírito, o Supremo Tribunal Federal, seja nos momentos de calmaria, seja nos momentos de turbulência, estará a postos para cumprir o seu papel de salvaguardar a Constituição do Brasil, atuando pela estabilidade institucional da nação e pela proteção da democracia, sempre pelo povo e para o povo brasileiro.

Trago uma advertência, porém: tratando-se de sustentabilidade democrática, não há nada automático, natural ou perpétuo. O regime democrático necessita ser reiteradamente alimentado e reforçado. Para tanto, as instituições devem atuar de forma independente, impondo freios e contrapesos recíprocos, porém harmônica, estando alinhadas entre si em prol da materialização dos valores constitucionais. Igualmente, os cidadãos devem ser vigilantes para que as regras do jogo democrático sejam rigorosamente cumpridas.

Relembro que o nosso tempo é hoje. Nesses dias difíceis, o nosso país precisa, mais do que nunca, de diálogo e de união entre os três poderes, entre os agentes políticos de todos os níveis federativos, entre os setores público e privado, e, enfim, entre todos os cidadãos. É necessário trabalhar em prol de medidas eficazes para que a ciência e os bons propósitos possam finalmente vencer a crise sanitária.

Não esqueçamos de que o maior símbolo da democracia é o diálogo. Por isso mesmo, democracia não é silêncio, mas voz ativa; não é concordância forjada seguida de aplausos imerecidos, mas debate construtivo e com honestidade de propósitos. Em tempos de pós-verdade e de polarizações exacerbadas, o dissenso convida a coletividade a tematizar as diversas perspectivas de um mesmo mundo. Somente através da justaposição respeitosa entre os diferentes conseguiremos eliminar os excessos de cada lado do debate, para então construirmos soluções mais justas e pragmáticas para os problemas coletivos.

Como bem disse John F. Kennedy, então presidente dos Estados Unidos da América, “a mudança é a lei da vida”. Toda crise é composta de dois elementos: “um representa perigo e o outro representa oportunidade”. Que saibamos enfrentar o perigo, aproveitando a oportunidade para nos tornarmos mais fraternos com a finitude humana e mais responsivos com o ideário de bem nacional.

Por isso repito que, neste processo de reconstrução pátrio, o meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição e o Brasil sairão mais fortalecidos da epidemia. A nossa Carta Magna, enunciada sob a proteção de Deus, permanece como a âncora do nosso Estado Democrático de Direito e guia as nossas aspirações de presente e de futuro.

Devemos seguir prudentes e incansáveis. A responsabilidade com o próximo e com o país traduz a genuína cidadania preconizada pela nossa Constituição.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!