Justiça e Democracia

Não vi ameaça mais concreta à democracia do que a "lava jato", diz Gilmar Mendes

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29 de junho de 2021, 13h08

"Não vi ameaças mais concretas à democracia no país senão a partir de iniciativas de grupamentos corporativos de procurador, juiz, órgãos da Receita e Polícia Federal. Esse conúbio colocou em risco aquilo que entendemos como Estado de Direito e devido processo legal", afirmou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, nesta terça-feira no webinar de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2021.

 

Durante o debate “Justiça e Democracia”, o ministro voltou a fazer críticas à “lava jato” e às “dez medidas contra a corrupção”, proposta legislativa de iniciativa de membros do Ministério Público que tramitou no Congresso Nacional. Gilmar Mendes, com uma visão privilegiada da democracia brasileira, depois de ter passado pela Casa Civil e pela Advocacia-Geral da União antes de chegar ao STF, lembrou de propostas “fortemente autoritárias” apresentadas pelos procuradores ao Parlamento: permissão para o uso de provas ilícitas e restrição brutal à concessão de Habeas Corpus.

“Só na ditadura o HC sofreu limitação, ainda assim no AI-5. As dez medidas desenhavam um modelo autoritário, estávamos muito próximos de ser submetidos à ditadura de Curitiba”, disse. É preciso estarmos atentos aos salvadores da pátria — venham eles do Legislativo, Executivo ou Judiciário — recomendou o ministro, e acrescentou que esse é o legado que fica da fase crítica da “lava jato”. O ministro lembrou um ditado que diz que o país que precisa de salvadores não merece salvação.

Gilmar Mendes também falou sobre o uso das delações premiadas pelos procuradores de Curitiba. “A nossa luta contra a ditadura foi pelo devido processo legal, pelo Estado de Direito, pelo fim da tortura. Com as delações premiadas, você introduz um elemento de tortura para obter a delação”, disse. “Descemos muito na escala das degradações.”

A democracia enfrenta muitos desafios atualmente, não apenas a brasileira, afirma Gilmar Mendes ao lembrar da invasão ao Capitólio, nos Estados Unidos, fato que considerou “chocante”. Para o ministro, fatos como esse, mostram como grupos, “pretensamente democráticos”, se valem da democracia para causar tumulto — sistema que, em sua opinião, é o melhor que temos.

O ministro falou sobre as dificuldades do modelo de representatividade, das suas insuficiências e do fato de não conseguir alimentar o sonho de todos. Ressaltou que a democracia é um regime complexo e que se pauta por regras escritas e outras não escritas. “Há uma série de regras não escritas, que devemos respeitar. Não podemos atacar as pessoas, temos de ter uma atitude de tolerância, não podemos eliminar o adversário, o adversário não é inimigo. Precisamos trazer a democracia para civilizar a internet”, disse.

“Continua a valer a máxima de Churchill, segundo a qual a democracia é um regime ruim, excluídos todos os outros", concluiu Gilmar Mendes.

O advogado e ex-presidente da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, que também participou do evento nesta terça-feira, destacou a influência da rede mundial de computadores e das redes sociais na democracia. Citando o livro Os Engenheiros do Caos, ele afirma que o discurso de negacionismo, de aversão à cultura e totalitarismo não é aleatório e se repete em vários lugares do mundo “para atrair acessos na internet e vincular as pessoas a determinados pensamentos”. 

Segundo ele, os partidos políticos também têm uma participação importante para a construção da democracia. "Os partidos precisam ter responsabilidades de lançar nomes que sejam comprometidos com a democracia. O livro cita diversos momentos da história do mundo que eventuais pessoas de direita chegaram a votar em candidatos de esquerda para impedir que alguém da extrema direito fosse eleito, para defender a democracia. E vice-versa", avaliou. 

Para Marcus Vinicius, é fundamental que o primeiro compromisso seja com a democracia e com o estado de direito. “Dentro do sistema de Justiça, o discurso autoritário vem na pregação do discurso de ódio contra parte adversa. Na democracia não devemos pregar ‘o aniquilar do adversário’, ou seja, o adversário necessita existir. Temos que ter amor ao debate. As ideias devem brigar, as pessoas jamais”, ressaltou. 

O lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2021, que aconteceu na manhã desta terça-feira (29/6) e foi transmitido pela TV ConJur, teve a participação dos presidentes do STF, Luiz Fux; do Conselho de Curadores da Faap, Celita Procópio; do STJ, Humberto Martins; do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi; do TSE, Roberto Barroso; do STM, Luis Carlos Gomes Mattos; do PGR, Augusto Aras; do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz; e da AMB, Renata Gil — cada um deles com um breve panorama do último ano e suas perspectivas para 2021.

Em seguida, houve o debate “Justiça e Democracia — A visão da Justiça, do Ministério Público e da Advocacia” com a participação do ministro Gilmar Mendes, do STF; do procurador-geral da República Augusto Aras; e do advogado e ex-presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho. A mediação foi do repórter especial da ConJur Rodrigo Haidar.

O Anuário da Justiça Brasil é uma publicação da ConJur que tem o apoio da Faap — Fundação Armando Alvares Penteado.

A versão digital do Anuário da Justiça Brasil 2021 é gratuita e já está disponível no site anuário.conjur.com.br ou por meio do app Anuário da Justiça. A versão impressa está à venda exclusivamente na Livraria ConJur.

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