Direito Civil Atual

Tema 1.155 submetido ao Plenário Virtual da repercussão geral no STF (parte 2)

Autores

  • Luiz Guilherme Marinoni

    é professor titular de Direito Processual Civil da UFPR pós-doutorado na Università degli Studi di Milano e membro da comissão de juristas instituída pela Câmara dos Deputados para elaboração do anteprojeto do Código de Processo Constitucional.

  • Luiz Henrique Krassuski

    é doutorando e pesquisador dos Núcleos de Direito Processual Civil Comparado e Constitucionalismo e Democracia na Faculdade de Direito da UFPR professor de pós-graduação na Faculdade Presbiteriana Mackenzie e advogado.

29 de junho de 2021, 11h40

Continuação da coluna publicada em 21/6/021

5) O baixo percentual de ARE’s providos diz algo sobre a inidoneidade do ARE como instrumento para controle de decisões de inadmissibilidade indevidas?
Antes de tudo, é preciso ver com um olhar crítico os dados referentes ao 1) baixo índice de provimento de Agravos em Recursos Extraordinários (ARE’s) e o 2) número expressivo de ARE’s na Corte. Deve-se também problematizar a conclusão de que seria possível, a partir disso, constatar um "massivo acerto" das decisões de inadmissibilidade originárias.

ConJur
Registre-se que não se questiona aqui a atuação e o esforço das Cortes locais na aplicação dos precedentes do STF, essenciais para a manutenção de uma Corte Suprema viável. O ponto é distinto: o ARE é, ou não, instrumento adequado para correção de eventuais abusos?

Novamente, a questão se desdobra em três reflexões. Em primeiro lugar, mesmo que os ARE’s sejam em grande maioria desprovidos, isso não significa que o STF sempre mantenha a mesma fundamentação adotada pela Corte local. Vale dizer, sem depurar mais esses dados, não é possível ter uma informação segura sobre a qualidade da fundamentação adotada  ainda que, destaque-se, o dado seja um bom indício. Para além disso, os dados não revelam necessariamente que o ARE seja instrumento inadequado para levar ao conhecimento da Corte questões constitucionais que tenham, eventualmente, sido indevidamente obstadas pelos tribunais locais.

Daí porque, em segundo lugar, surge um dado relevante quando se olha não para o número global de ARE’s, mas sim especificamente para as decisões proferidas no PV da RG.

Nesse sentido, desde 01/7/2020 até 10.06.2021 foi feito o primeiro juízo da preliminar de RG no PV em 51 recursos, dos quais 15 eram agravos [1]. Ou seja, os ARE’s corresponderam a aproximadamente 30% das análises colegiadas sobre a existência ou não de RG.

Vale destacar ainda que dos agravos analisados pelo PV, reputou-se a questão como constitucional e dotada de repercussão geral em nove deles [2], inclusive julgando desde logo o mérito em quatro ocasiões [3]. Ou seja, a maioria dos agravos submetidos ao PV da RG, ao menos em princípio, superaram os óbices apontados pela decisão local em 60% dos casos, justamente para afirmar a existência de questão constitucional relevante e transcendente.

O recurso, portanto, tem permitido eventuais "ajustes de rota" diante de indecisões de inadmissibilidade indevidas, permitindo que a Corte desempenhe sua missão constitucional e possa utilizar adequadamente o filtro da RG.

Por fim, e em terceiro lugar, vale também questionar se a rejeição de aproximadamente 9 mil ARE’s por ano (média de 2019 e 2020, nos números indicados no voto), seria de fato número destoante em termos de direito comparado.

A reposta, no entanto, nos parece negativa. A título de exemplo, é amplamente conhecido que a Suprema Corte americana (Scotus) analisa a cada ano judiciário um número similar de petições de writ of certiorari  entre sete e oito mil cert petitions. Apesar de as denegações de certiorari não exigirem fundamentação, pesquisas sobre o funcionamento concreto da Corte já revelaram o papel importante da análise do atendimento dos requisitos formais [4].

Daí porque, a título de exemplo, se apontam como razões para a não concessão do writ  e que devem ser sustentadas em um brief in opposition  defeitos similares à nossa ausência de prequestionamento, ou mesmo à necessidade de rever fatos essenciais para a solução da questão de direito. Essa última, inclusive, é apontada pela doutrina como uma das possíveis razões pelas quais um certiorari originalmente concedido venha posteriormente a ser denegado como "improvidently granted" [5].

Há, portanto, um componente formal, burocrático e relevante na denegação do certiorari, para além de um modelo de escolha de casos estratégico ligado ao mérito. Apesar de não se poder precisar exatamente o percentual de denegações baseadas em vícios formais, sua existência é inquestionável e o "juízo de idoneidade formal" dos writs é feita pela própria Corte, que apenas acolhe aproximadamente 10% de todas as cert petitions.

Considerando que o STF é composto por um conjunto maior de juízes (11 contra nove), bem como os ministros possuem uma estrutura de apoio muito mais correta e adequada (pelo menos 10 assessores diretos e três magistrados instrutores/auxiliares, contra apenas com quatro law clerks para os Justices), a Corte brasileira é até mesmo melhor equipada para lidar com essa importante carga de trabalho.

A diferença da prática entre as Cortes é que as decisões de inadmissibilidade por razões formais nos RE’s e ARE’s são e devem ser fundamentadas, ao passo que nos Estados Unidos acabam escondidas pela não fundamentação da concessão ou denegação do certiorari.

Em ambos os casos, no entanto, fica claro caber às Cortes Supremas, e apenas a elas, verificar em última análise a idoneidade formal dos casos que lhes permitirão o desempenho de suas missões constitucionais. Se esse poder for integralmente delegado, ou, então, substancialmente reduzido, ao fim e ao cabo, as Cortes locais passarão a ter verdadeiro "poder de veto" na criação do cardápio de questões a ser analisado pelo Supremo.

6) Reflexões conclusivas
Tendo em vista que o julgamento virtual se encontra suspenso, o artigo buscou colaborar com o debate, suscitando algumas questões relevantes que nos parecem não estar ainda presentes na discussão, a fim de auxiliar na solução a ser construída pela Corte.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).


[1] Tendo em vista as reformas recentes estabelecidas no regimento interno da Corte, se utilizará como recorte temporal a Emenda Regimental nº 54/2020.

[2] V. ARE 1307386 RG, ARE 1278713 RG, ARE 1294969 RG, ARE 1289782 RG, ARE 1293130 RG, ARE 1288550 RG, ARE 1285177 RG, ARE 1267879 RG, ARE 1255885 RG.

[3] V. ARE 1278713 RG, ARE 1294969 RG, ARE 1293130 RG, ARE 1255885 RG.

[4] FELDMAN, Adam; KAPPNER, Alexander, Finding certainty in cert: an empirical analysis of the factors involved in Supreme Court certiorari decisions from 2001-2015, Villanova Law Review, [S.I], V. 61, [S.I.], p. 795 e ss., 2016.

[5] V. PRETTYMAN JR., Elijah Barret; Opposing certiorari in the United States Supreme Court, Virginia Law Review, [S.I], V. 61, [S.I], p. 197-209, 1975, p. 200-1.

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    é professor titular de Direito Processual Civil da UFPR, pós-doutorado na Università degli Studi di Milano e membro da comissão de juristas instituída pela Câmara dos Deputados para elaboração do anteprojeto do Código de Processo Constitucional.

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    é doutorando e pesquisador dos Núcleos de Direito Processual Civil Comparado e Constitucionalismo e Democracia na Faculdade de Direito da UFPR, professor de pós-graduação na Faculdade Presbiteriana Mackenzie e advogado.

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