Opinião

O caminho de equívocos legais no pedido de cotitularidade da marca Legião Urbana

Autores

  • Talitha Chaves

    é advogada sócia do escritório Leite Roston Chaves & Saciotto com ênfase em consultoria empresarial incluindo contratos em geral e propriedade intelectual; diretora da comissão de Propriedade Intelectual da Associação Brasileira de Direito da Tecnologia da Informação e das Comunicações (ABDTIC).

  • Annie Katarine Oliveira

    é advogada associada ao escritório Leite Roston Chaves & Saciotto pós-graduada pela FGV em Propriedade Intelectual e Novos Negócios especializada em Proteção de Dados e certificada pela WIPO para aprofundamento em Propriedade Intelectual e em Patent Cooperation Traty – PCT

28 de junho de 2021, 17h29

Este mês voltou à pauta para julgamento pela 4° Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) o Recurso Especial (Resp 1.860.630) que trata da polêmica disputa jurídica sobre a utilização da marca Legião Urbana entre os ex-integrantes da ex-banda Legião Urbana, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos e a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. Até o momento, já votaram os ministros Isabel Gallotti, Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e Raul Araújo, cabendo o desempate ao ministro Marco Buzzi.

A disputa começou em 2013 e gira em torno da marca "Legião Urbana". A história dessa marca, no entanto, começa muito antes em setembro de 1987, quando Renato Russo, Dado, Bonfá e Renato Rocha, todos sócios da Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. e decidiram depositar perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) a marca "Legião Urbana" em nome da empresa. Em 1988, os integrantes que ora disputam a marca venderam suas respectivas participações acionárias na empresa, deixando seus ativos (incluindo as marcas) e passivos na empresa.

Em 2013 os ex-integrantes da ex-banda Legião Urbana, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos iniciaram um processo na Justiça Estadual do Rio de Janeiro pleiteando a cotitularidade da marca Legião Urbana; a possibilidade de utilizarem a marca sem que a titular do registro possa impedi-los, e ainda a indenização por perdas e danos. Julgado em primeira instância como parcialmente procedente, os ex-integrantes obtiveram uma sentença autorizando a utilização da marca sem que a titular possa oferecer qualquer tipo de resistência e sem a necessidade de pagamento de royalties.

Os direitos relativos a marcas no Brasil são regulados pela Lei 9.279/96, a Lei da Propriedade Industrial e em seu artigo 2º, fica expresso que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial se dá com a concessão do registro da marca pelo INPI. Tal Lei estabelece ainda que é por meio do registro que se adquire a propriedade sobre uma marca, assegurando o uso exclusivo em território nacional [1], e garantindo ao titular o direito de ceder o registro, licenciar o uso e zelar pela integridade material ou reputação.

Observa-se que, neste caso, a marca foi concedida para a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. após a saída dos ex-integrantes da sociedade, mas mesmo assim, os ex-integrantes poderiam pelo menos, três oportunidades de interferir no processo para a concessão do registro: até 1997 — para impedir o uso do sinal pela Legião Urbana Produções Artísticas — medida que possibilitaria a discussão sobre o uso da marca pela empresa; após concessão da marca e até 2001, com a possibilidade de processo administrativo de nulidade perante o INPI; ou até 2005, mediante processo judicial de nulidade do registro. No entanto, nada foi pleiteado nestas oportunidades e 16 anos se passaram sem qualquer objeção dos ex-integrantes em relação à marca.

Evidente, portanto, que à época do falecimento de Renato Russo, os ex-integrantes há muito não detinham qualquer direito sobre a marca, pois já havia passado de oito anos que eles renunciaram aos diretos sobre a marca, visto que se retiraram formalmente da empresa titular, mediante remuneração por suas cotas sociais, cedidas integralmente a Renato Russo ainda em vida. Importante destacar, ainda, que a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda é pessoa jurídica e seu patrimônio não se confunde com o dos seus sócios. O registro da marca perante o INPI não se trata de mero formalismo, mas, sim, requisito formal, legalmente estabelecido em nosso ordenamento, para que haja a caracterização de um ativo como sendo intangível que integra o patrimônio de seu titular.

Ao deferir medida que proíbe a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda de impedir o uso da marca pelos ex-integrantes, o juiz Estadual acabou por limitar o direito de propriedade da marca, afastando atributo legal da exclusividade, inerente ao direito de propriedade, sobrepondo-se, portanto, sobre o direito previamente concedido pelo INPI.

É certo que não foi imposta à empresa a abstenção ao uso da marca, mas houve, sim, a limitação de seu uso, já que foi imposto à Legião Urbana Produções Artísticas Ltda tolerar o uso pelos ex-integrantes, independentemente de licenciamento, bem como lhe foi ordenada abstenção de atos que, em última análise, nada mais são do que decorrência dos poderes de que detém o titular da marca relativos à sua proteção/exploração.

Desse modo, o juízo estadual deveria ser considerado incompetente "ad materiae", já que a decisão afeta o direito concedido pelo INPI à Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. Ao afirmar a validade desta sentença, o acórdão recorrido corrobora o uso da marca por não titulares, ofendendo o artigo 966 do Código de Processo Civil (CPC), bem como artigo 129 e 130 da 9.279/96, além de abrir o precedente para que a justiça Estadual conceda a cotitularidade de marcas à terceiros, ato de competência exclusiva do INPI, nos termos da Lei 9.279/96.

No que se refere à alegação dos artistas de que houve desvio de finalidade e função social da marca, uma vez que esta identifica a banda que fizeram parte, importa destacar que a Legião Urbana não existe mais, como pontuado pelos próprios artistas por diversas vezes. Portanto, não há que se falar em função social para realização de shows. Sendo assim, para usar o sinal Legião Urbana como marca, é imprescindível a autorização da única titular do registro. Como bem destacado pela relatora ministra Isabel Gallotti, não há impedimentos para os artistas se apresentarem em shows tocando músicas da ex-banda, assim como Paul McCartney faz tocando sucessos da ex-banda The Beatles.

Desta maneira, impedir o uso pelos ex-integrantes não desvia a função social da marca, mas, sim, a reforça, uma vez que a empresa tem como preocupação fundamental a utilização da marca para enaltecer o legado da banda. Como bem apontado pela ministra Gallotti "não está em questão direito social. Não está em questão o direito de os ex-integrante tocarem as músicas de sua autoria. Não está em questão o direito social do público em geral sobre ouvir a Legião Urbana. A banda se extinguiu e não há direto social de ouvir os recorridos tocando com o nome Legião Urbana, eles podem tocar usando o próprio nome. Não há o direito de que eles toquem como se fossem a extinta Legião Urbana colocando um cover, escolhido por eles, para fazer o papel do falecido Renato Russo, isso não trará de volta o patrimônio social que foi a extinta Legião Urbana".

Ademais, a decisão objeto do recurso especial (Resp), na prática, atribuiu aos ex-integrantes efeitos de cotitularidade da marca, o que deve decorrer de ato administrativo de competência exclusiva do INPI. No último dia 22, o ministro Antônio Carlos Ferreira, em seu voto, que foi acompanhado pelo ministro Raul Araújo, manifestou seu entendimento que "o provimento deferido não envolve interesse do INPI" e que "o que se deu, na verdade, seria qualificado como licenciamento compulsório, à semelhança que se vê na Lei 9.279/96 para os casos de patentes em situação de exercício abusivo (artigo 68 e seguintes da Lei 9.279/96)".

A respeito da licença compulsória mencionada, cumpre esclarecer que a disposição legal diz respeito à adoção de medida excepcionalíssima, prevista pelos artigos 68 a 74 da Lei 9.279/96 e refere-se tão somente ao registro de patente. O legislador não previu em nosso regramento licença compulsórias para marcas e a aplicação de um dispositivo legal por semelhança pode gerar insegurança jurídica.

A lei estabelece que o pedido de licença compulsória de patentes deverá ser formulado mediante indicação das condições oferecidas ao titular da patente. Assim, para ser concedida a licença compulsória de patente entre particulares, é preciso que sejam cumpridos os requisitos previstos nesta lei, quais sejam: insuficiência de exploração (artigo 68 §1º); exercício abusivo (artigo 68 §2º); abuso de poder econômico (artigo 68 §3º); dependência de patentes (artigo 70); interesse público ou emergência nacional (artigo 71), sendo a licença compulsória sempre concedida sem caráter de exclusividade e por prazo determinado.

Observa-se, ainda, que os contratos de licença, seja para patente ou marca devem ser averbados perante o INPI para que produza efeitos em relação a terceiros. Desse modo, para que seja averbada uma licença é necessária a análise da autarquia federal, que poderá deferir ou indeferir a averbação. Assim, entende-se que, mesmo que se admitida a possibilidade de licença compulsória de marca, com aplicabilidade dos artigos citados acima por verossimilhança — algo que por si só já é passível de discussão da legalidade —, seria igualmente necessário o envolvimento do INPI.

Conclui-se, portanto, o assunto em discussão é de extrema relevância, pois, trata da inédita possibilidade de um juiz da esfera Estadual limitar os direitos concedidos pela Autarquia Federal INPI ao titular de marca registrada, quais sejam, os direitos de dispor, autorizar e licenciar, ou não, sua marca à terceiros alheiros ao registro.


[1] artigo 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos artigos 147 e 148.

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