Justiça Tributária

O projeto de remendo no Imposto de Renda e seu populismo eleitoral

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

28 de junho de 2021, 8h00

Na sexta-feira (25/6), o governo apresentou um projeto de lei alterando as regras do Imposto de Renda para as pessoas físicas e jurídicas em nosso país, com o intuito de que, se aprovadas, passem a vigorar a partir de 1º/1/2022. Como esperado, não se trata de um projeto de reforma tributária, com "R" maiúsculo, mas outro projeto meia-sola, visando a ajustar pontualmente algumas imperfeições do sistema atual.

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O projeto contém vasta miudeza, alterando alíquotas pontuais e prazos de pagamento de rendimentos de aplicações financeiras, entre outras coisas. Vou me deter em três pontos específicos, sem pretender esgotar o assunto: 1) a ampliação da faixa de isenção dos rendimentos, que hoje é de R$ 1.903,98 e se propõe que passe a ser de R$ 2,5 mil, proposta que necessariamente deve ser analisada em conjunto com a redução do desconto simplificado na declaração anual de rendimentos, cujo teto passa a ser de R$ 40 mil/anuais; 2) a tributação de dividendos, isentos desde 1994, que se propõe passem a ser tributados na base de 20%, exceto quando recebidos de microempresas e de empresas de pequeno porte; e 3) a possibilidade de antecipação da valorização imobiliária para fins de pagamento de IR sobre lucros de capital no percentual de 5%.

Primeiro: a ampliação da faixa de isenção para R$ 2,5 mil é positiva, porém se deve considerar que: 1) o valor é inferior ao das perdas inflacionárias; e 2) é praticamente a metade do que o presidente prometeu em sua campanha presidencial nenhuma surpresa neste ponto, pois ele também havia prometido não se candidatar à reeleição e é candidatíssimo desde que assumiu (assistir aqui, no ponto de 35 segundos).  

Ora, sendo positiva a ampliação da faixa de isenção, onde está o erro? Exatamente em seu contraponto, a redução do desconto simplificado na declaração anual. Vamos a um exemplo didático, o que implica em ser simples: consideremos um indivíduo que receba R$ 3,5 mil mensais de salário bruto, correspondente a R$ 42 mil anuais (sem considerar o 13º). Sob as regras atuais, teria cerca de R$ 6 mil de retenção na fonte, que seriam devolvidos quase na íntegra na declaração de ajuste anual. Nas regras propostas, não terá mais esse desconto, devendo pagar Imposto de Renda no ajuste anual. Logo, para esta faixa de renda haverá a mesma incidência de IR na fonte, e não haverá restituição. Resultado: aumento da carga tributária.

Qual a implicação desses dois aspectos analisados em conjunto? Quem ganha menos terá a sensação de que terá mais algum dinheiro no bolso, pois o desconto mensal na fonte poderá ser menor, mas, quando for fazer a declaração de ajuste anual, constatará que, ao invés de receber devolução, será obrigado a pagar. Em síntese, o governo está propondo dar com uma mão e retirar com a outra.

Por que se identifica isso como uma medida populista? Porque aliviará de imediato, no dia a dia, o bolso dos trabalhadores que vivem com as menores faixas de renda, mas obrigará ao pagamento de Imposto de Renda ao final. Se aprovado o projeto, a folga mensal no bolso ocorrerá durante todo o ano eleitoral de 2022, mas o pagamento da diferença só acontecerá em 2023, quando a eleição já terá ocorrido.

Segundo: alega-se que a tributação de dividendos é justa, pois há tributação sobre a remuneração dos trabalhadores, mas ela não ocorre sobre os lucros distribuídos (dividendos) aos sócios/acionistas. É um bom argumento, mas que não se sustenta, por alguns motivos: 1) a partir de 1994, quando foi isentada a distribuição de dividendos, a carga tributária brasileira era de 25% do PIB, hoje é de 33%, sendo que a carga tributária da União era de 19% e hoje é de 24%, e sua maior parte é sobre o faturamento, isto é, sem que se verifique se houve ou não lucro retornaremos à situação pré-1994, com o agravante de que hoje a carga tributária total é sensivelmente maior; 2) busca-se acabar com a pejotização, isto é, reduzir o número de pessoas físicas fantasiadas de pessoas jurídicas, porém a proposta, ao isentar quem recebe de microempresas e de empresas de pequenas porte (faturamento anual R$ 4,8 milhões), estimulará o fracionamento das médias empresas, criando ainda mais pejotização.

Além disso, 3) haverá aumento da carga tributária, alegadamente para compensar a ampliação da faixa de isenção para R$ 2,5 mil acima comentada que não ocorrerá, ocasionando a pura e simples majoração da carga tributária total pelo IR. Para implementar tal medida, 4) deve-se distinguir os dividendos de acordo com o regime tributário (dividendos do lucro real não são iguais aos do lucro presumido) e com a forma societária, pois, apenas tributar os dividendos sem harmonização do sistema será um tiro no pé; 5) deve-se ainda analisar que dividendo decorre de capital de risco, diferentemente de aplicações em renda fixa e assemelhadas, cujo rendimento é praticamente garantido; o que está sendo proposto é contra o empreendedorismo, bandeira maior do argumento liberal hoje difundido.

Qual o horizonte? Tudo indica que 7) haverá maior litigância, retornando ao centro do debate a alegação de fraude na pejotização e na distribuição disfarçada de lucros (DDL), de nada saudosa memória pré-1994.

Caracteriza-se também tal medida como populista, pois seu desenho visa apenas a acenar com uma bandeira de igualdade, sem nenhuma consideração sobre as diferenças reais e palpáveis encontradas nos diferentes tipos de remuneração. Sabe-se que as desigualdades devem ser combatidas, mas as diferenças devem ser respeitadas, o que não está presente na proposta apresentada.

Terceira: a possibilidade de antecipar o pagamento da valorização imobiliária, tributando-a em 5%, parece adequada, mas a quem interessa? A ideia é simples. Quem adquiriu um imóvel e o viu ser valorizado ao longo do tempo poderá reavaliá-lo, pagando apenas 5% sobre essa valorização. Poderá também não o fazer, pagando 15% sobre a valorização ocorrida ao longo do período. Trata-se de medida de planejamento tributário lícito à disposição de todos os que decidirem antecipar esse pagamento (sob uma alíquota de 5%), para ficar com o valor de seus bens atualizados, afastando a alíquota de 15% sobre uma base de cálculo maior, pois desatualizada.

Os proprietários de imóveis agradecem essa oferta, que certamente acarretará grande arrecadação no primeiro semestre de 2022 período eleitoral. Trata-se de medida que sorri para o andar de cima de nossa pirâmide social e que acarretará dinheiro no caixa para as eleições de 2022, pois esses 5% serão pagos durante o ano eleitoral.

Em breve síntese: as propostas apresentadas são populistas, pois apenas acenam para igualdade na tributação da renda e para a desoneração da carga tributária, mas, na verdade, são instrumentos de retórica fiscal, de populismo desenfreado e com claro intuito arrecadatório tudo isso visando às eleições do próximo ano.

Um adendo: essa proposta de remendo no Imposto de Renda será usada como uma bandeira de que a reforma tributária foi aprovada o que é absolutamente falso. Reforma, com "R" maiúsculo, necessita olhar de forma mais ampla o problema financeiro do Brasil, atacando os aspectos da dívida, da despesa e também da receita, considerando renda, consumo e propriedade, como expus anteriormente aqui e aqui.

Essa reforma meia-sola sobre a tributação da renda, se aprovada, será apenas mais um remendo na colcha de retalhos em que se transformou o sistema tributário brasileiro e servirá para fins populistas eleitorais, não para seu aperfeiçoamento.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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