Público & Pragmático

Inquérito civil público e 'provas secretas': onde está o garantismo?

Autores

  • Gustavo Henrique Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Wilson Accioli Filho

    é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Administrativo e advogado.

27 de junho de 2021, 8h00

Em opinião recente publicada na ConJur, já tivemos a oportunidade de defender a possibilidade de trancamento judicial de inquérito civil público (ICP) com base na ausência de respeito ao devido processo legal adequado e na inexistência de prévia abertura de um canal de negociação pelo Ministério Público com o investigado, ainda que o consenso se revele infrutífero posteriormente. Agora, aprofundaremos o debate para saber se a justa causa poderá ser fundamentada por meio de testemunha e/ou informante anônimo.

Spacca
Antes, uma justificativa sobre o porquê da escolha desta pauta para a coluna da semana.

É recorrente encontrarmos inquéritos, sindicâncias, processos administrativos e atos administrativos sancionatórios estruturados a partir de elementos probatórios conflitantes com o devido processo legal. Em tempos de fake news e guerra de narrativas, o Direito Administrativo tem cada vez mais se valido de relatos anônimos, reduzidos a termo, para fundamentar um ato sancionatório. Daí não ser exagerado afirmar que se vive (ainda) uma crise de desrespeito às garantias fundamentais do cidadão.

Dito isso, perguntamos: existe justa causa em ICP instruído unicamente a partir de depoimentos sigilosos, cujas identidades das testemunhas sejam omitidas do investigado e também de seu procurador? A necessidade de abertura dialógica do ICP, para um melhor amadurecimento da justa causa, pode admitir que provas sejam produzidas secretamente, sem que o investigado e seu procurador possam contraditá-las, em momento anterior à tomada de uma decisão definitiva pelo membro do Ministério Público no sentido de arquivar o procedimento, propor um acordo ou ajuizar uma ação judicial?

O sigilo em investigações civis não deve ser a regra (artigo 5º, IV, CF; artigo 7º da Resolução 23/2007 do CNMP). Ao contrário, o prestígio à participação do investigado nos atos procedimentais é crucial para a elucidação dialética de controvérsias, prática que num mundo ideal contribuiria para um cenário de máxima cooperação das partes. Todavia, não se desconhece que exceções existem e devem ser consideradas.

Há situações em que a integridade física da testemunha está ameaçada e o Estado precisa protegê-la, impondo sigilo aos seus dados pessoais (artigos 7º, IV, da Lei 9.807/1999). Nessa hipótese, a decisão administrativa deverá ser motivada levando em consideração as consequências práticas do ato administrativo (artigo 21 da Lei 4.657/1942). Significa dizer, não se reputará existente a justa causa que for desenhada exclusivamente por meio de provas advindas de depoimentos imotivadamente anônimos.

Diante da necessidade de prestígio cada vez maior ao contraditório e à ampla defesa em investigações ministeriais, não se admite outra justificativa para o sigilo da prova testemunhal além da proteção da integridade física e psicológica da testemunha.

O direito de contraditar a testemunha é uma garantia do cidadão prevista no §1º do artigo 457 do CPC, sendo também corolário do devido processo legal [1]. A dialeticidade necessária a uma investigação ministerial não condiz com o sigilo imotivado da identidade de testemunhas. Isso viola o direito do investigado de inquirir o depoente em igualdade de condições com o Ministério Público, assim como o direito do advogado de dispor dos meios adequados para a estruturação da defesa técnica [2].

Sabe-se que a simples instauração de um ICP traz consigo desde logo um constrangimento inevitável à vida pessoal e profissional do investigado. Assim, sem ignorar o dever-poder do Estado de tutelar o interesse público, atos procedimentais investigatórios devem adotar a máxima cautela para não agravar ainda mais esses naturais prejuízos intrínsecos a qualquer ICP, sob pena de se caracterizar abuso de autoridade tipificado no artigo 27 da Lei 13.869/2019.

Melhor explicando: na medida em que impede o investigado de confrontar informações, o sigilo imotivado empregado às provas testemunhais em ICPs fortalece a possibilidade de desvio de finalidade, de abuso de autoridade e fragiliza a garantia constitucional do cidadão de saber, no mínimo, se a prova existe, é verossímil e o depoente conhece realmente os fatos e não é um desafeto pessoal ou de sua família [3].

Os posicionamentos majoritários do STJ (Súmula 611) e do STF (RHC 132.115 [4]) são de que as informações anônimas comunicando ilicitudes somente podem ensejar processo de responsabilização quando previamente constatada a justa causa e a verossimilhança dos fatos por meio de investigações preliminares. Não se autoriza, desse modo, a adoção de quaisquer medidas de persecução penal, cível ou administrativo-disciplinar motivadas por relatos anônimos não anteriormente apurados.

Então, se nem a denúncia ou a delação anônima são livres de condicionamentos, o que se poderá dizer de um inquérito civil cuja justa causa esteja inteira e exclusivamente embasada em prova testemunhal anônima?

No âmbito do inquérito policial [5] existem importantes decisões do STJ determinando o trancamento de investigações ou a nulidade do processo penal originado de notitia criminis apócrifa e desacompanhada do correspondente aprofundamento probatório dos fatos:

"(…) Ainda que a instauração do inquérito tenha sido determinada pelo Ministério Público, o dever de verificar a procedência das informações recai sobre todos os órgãos públicos com atribuição investigativa penal. A notitia criminis apócrifa, por si só, não supre a necessidade de verificação mínima da existência de justa causa para a deflagração de inquérito policial ou a determinação pelo Parquet de sua instauração. (…). Recurso em habeas corpus provido para reconhecer a nulidade na Ação penal nº 0098586-10.2009.8.26.0050 (050.09.098586-9), desde a decisão que determinou a instauração do inquérito policial com base exclusivamente em denúncia anônima e sem a realização de nenhuma investigação prévia" (STJ — 5ª Turma — RHC nº 64.504/SP — relator ministro Joel Ilan Paciornik — j. em 21/8/2018 — DJe de 31/8/2018).

"(…) In casu, o inquérito policial não logrou estabelecer o, minimamente seguro, liame entre o comportamento do paciente e as imputações. Ordem concedida para determinar o trancamento do inquérito policial nº 00127485020128260000, em trâmite no Tribunal de Justiça de São Paulo, sem prejuízo de abertura de nova investigação, caso surjam novos e robustos elementos para tanto" (STJ — 6ª Turma — HC nº 242.686/SP — relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura — j. em 16/4/2013 — DJe de 24/4/2013).

A ausência da justa causa afeta não apenas o ICP, como também a validade e a eficácia de todos os demais atos e negócios jurídicos dele decorrentes, incluindo eventual acordo administrativo de não persecução cível (artigo 16, §1º, da Lei 8.429/1992) ou termo de ajustamento de conduta (artigo 5º, §6º, Lei 7.347/1985).

E o fundamento do raciocínio é extraído da análise comparativa com a jurisprudência aplicável ao inquérito policial. Ora, se o início de um processo penal não é autorizado apenas com base em informação anônima, muito menos será possível a assinatura de um acordo de não persecução penal motivado por um inquérito construído com depoimentos anônimos.

Do mesmo modo deve ocorrer no Direito Administrativo. Se para a persecução cível é necessário evidenciar com clareza a justa causa e a verossimilhança, também para celebrar um acordo administrativo após o encerramento do ICP estes requisitos deverão estar presentes, sob pena de ineficácia do negócio jurídico [6].

A propósito, as Dez Medidas de Combate à Corrupção, em trâmite na Câmara dos Deputados sob o Projeto de Lei 3.855/2019, pretendem introduzir no ordenamento jurídico a figura do informante confidencial, ressalvando que "ninguém poderá ser condenado com base exclusivamente em depoimento de um informante confidencial, já que não será possível à defesa avaliar criticamente a credibilidade do depoente" [7]. Alguns podem dizer que essa previsão legal é óbvia. Contudo, fosse ela tão óbvia não se encontrariam — com certa facilidade — processos administrativos instaurados a partir de denúncia anônima e encerrados, com decisão sancionatória, pautados também em depoimentos anônimos.

À guisa de conclusão: se o principal elemento jurídico do ICP é a justa causa e esta for construída com base em prova imotivadamente ofensiva ao devido processo legal, como é o caso do depoimento anônimo, o inquérito civil público deverá ser arquivado administrativamente ou trancado judicialmente porque inexistente o requisito da condição de ação.

 

[1] Também, no artigo 447 do CPC são previstas limitações para a prova testemunhal. Excluem-se, dentre outras, as pessoas suspeitas. Ainda, com base no artigo 457, antes de ouvida, a testemunha será qualificada, declarará ou confirmará seus dados e informará se tem relações de parentesco com a parte ou interesse no objeto do processo.

[2] É como já decidiu o Tribunal de Justiça do Mato Grosso: "Apesar do anonimato da testemunha ser, em alguns casos, necessário para protegê-la de possíveis ameaças e coações, encontrando respaldo na Lei 9807/1999, tal condição não pode ser absoluta e irrestrita. Eleger o testemunho anônimo como prova suficiente à condenação representa notória violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pois estar- se-á privando a defesa técnica de analisar a parcialidade da testemunha, bem como de realizar indagações adequadas e pertinentes para a elucidação do caso". (TJMT. Apelação cível nº 0016882-45.2011.8.11.0042. Julgada em 20/02/2019).

[3] Nesse sentido, cf.: https://www.conjur.com.br/2021-jun-04/streck-precisamos-duty-of- disclosure-mp-advogado-vargas.

[4] "Logo, tenho que o procedimento tomado pela autoridade policial está em perfeita consonância com o entendimento desta Suprema Corte, segundo o qual, a denúncia anônima, por si só, não serve para fundamentar a instauração de inquérito, mas, a partir dela, poderá a autoridade competente realizar diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito". (STF. Recurso Ordinário Em Habeas Corpus nº 132.115/PR. Rel. Minº Dias Toffoli. Dje de 06/02/2018).

[5] A falta de um regime jurídico específico para o Inquérito Civil Público prejudica uma análise autônoma do instituto e inevitavelmente comparações acabam sendo feitas com o Inquérito Policial. Conforme já dissemos: "Como se sabe, ao tratar do Inquérito Civil Público no artigo 129, inciso III , a Constituição apenas recepcionou o instituto criado pela Lei nº 7.347 de 1985, em cujo artigo 8º, §1º, limitou-se a prever e autorizar a instauração do ICP pelo Ministério Público. Isso significa que os atributos do Inquérito Civil Público não decorrem de Lei, mas de construção doutrinária emprestada da teoria do Inquérito Policial". (OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; BARROS FILHO, Wilson Accioli de. Inquérito Civil Público e acordo administrativo: apontamentos sobre devido processo legal adequado, contraditório, ampla defesa e previsão de cláusula de segurança nos Termos de Ajustamento de Conduta (TACS). In: OLIVEIRA, Gustavo Justino de (coord.); BARROS FILHO, Wilson Accioli de (org.). Acordos Administrativos no Brasil: teoria e prática. São Paulo: Almedina, 2020, p 110).

[6] Cf.: BARROS FILHO, Wilson Accioli de; CARVALHO, André Castro. A decodificação de informações trazidas pelo Whistleblower para a formalização de acordos administrativos público-privados. São Paulo, 2020, p. 23. No prelo.

[7] Cf.: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01mfru4wc2q 60r6xyjjzoav8fx13290518.node0?codteor=1448689&filename=PL+3855/2019+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+4850/2016%29

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