Opinião

Juiz das garantias: um ano e meio de espera

Autores

  • Raquel Nuvolini Wajngarten

    é pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas - FGV e mestranda em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas em regime de dedicação exclusiva.

  • Lucas Catib de Laurentiis

    é doutor em direito pela Universidade de São Paulo especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CCHSA) e coordenador do mestrado em Direito da PUC-Campinas.

27 de junho de 2021, 18h15

23 de janeiro de 2020. Nesse dia entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, apelidada de pacote "anticrime", que, entre outras modificações à legislação penal e processual penal, introduziu o juiz das garantias. Em síntese, essa figura tem a função de monitorar o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais do suspeito ou indiciado, na primeira fase da persecução penal, sem prejuízo de também preservar o direito do Estado de investigar o fato e apurar a sua autoria, visando à devida aplicação da norma penal violada [1]. E, no intuito de regulamentar essa atuação, foram inseridos no Código de Processo Penal (CPP) os artigos 3º-A a 3º-F, cujo intuito é regulamentar a atuação desse magistrado.

Já não era sem tempo. De forma geral, o artigo 3º-A simplesmente adequa o CPP à ordem constitucional de 1988, fazendo opção expressa pelo sistema processual acusatório (artigo 129, inciso I e VIII, da Constituição Federal) e corroborado pelos direitos ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV). Reafirmou-se, pela lei, aquilo que já era óbvio na ótica constitucional e da proteção internacional de direitos humanos: deve existir uma separação rígida entre os momentos da acusação e do julgamento. Disso decorrem algumas consequências, duas delas de especial significado constitucional. Em primeiro lugar, o magistrado não deve exercer um papel ativo na fase de investigação e de acusação, preservando-lhe sua neutralidade para eventual julgamento das imputações. O objetivo dessa medida é evitar, ou atenuar, o risco de que se formem pré-compreensões em qualquer sentido. Em segundo lugar, o sistema acusatório busca promover a paridade de armas, fazendo com que que as partes se encontrem dissociadas e, ao menos idealmente, equidistantes do Estado-juiz. Mais uma vez, o óbvio: o magistrado deve ser inerte, cabendo à acusação e à defesa o ônus de desenvolverem seus argumentos à luz do material probatório disponível. E, com isso, é afastada a dinâmica inquisitorial em que a figura do juiz se confunde com a de um acusador, direcionando a sentença, quase sempre, no sentido de um juízo condenatório [2].

Com exceção das infrações de menor potencial ofensivo, a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa, momento em que todas as questões pendentes passam a ser decididas pelo juiz da instrução e julgamento. As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e seu julgamento, cuja imparcialidade será assegurada pela separação dos autos relativos à investigação e ao processo, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos em apartado (artigo 3º-C). A figura do juiz das garantias mostra-se, portanto, um instituto-chave, pois com ele ocorre a separação das atribuições funcionais desse magistrado e daqueles que atuam na fase processual propriamente dita, garantindo uma prestação jurisdicional efetivamente neutra e comprometida com o equilíbrio das partes ao longo de toda a relação processual.

Estava tudo certo até que surgiu o Supremo Tribunal Federal. No dia 15 de janeiro de 2020, ou seja, mesmo antes de a Lei 13.694/2019 entrar em vigor, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli, em decisão liminar proferida em plantão judicial no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 6298, 6299 e 6230, suspendeu a eficácia dos dispositivos regulamentadores do juiz das garantias até que houvesse sua implementação nas comarcas pelos tribunais, o que deveria ocorrer no prazo de 180 dias contados da publicação da sua decisão. Uma semana depois, o relator do caso, ministro Luiz Fux revogou a decisão do presidente da corte e, em sede de medida cautelar, suspendeu a própria implementação do juiz das garantias, isto é, determinou que nada fosse feito para tornar efetiva a alteração legislativa até que se reúnam, nas suas palavras, "melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias (…)".

Sob o ângulo processual, o que foi feito é basicamente um completo sem sentido: suspensão da decisão que suspendia a eficácia da lei que ainda estava suspensa. Pior, a segunda suspensão cautelar ocorreu em uma das ações diretas propostas contra a lei em questão (ADI 6.305) e foi determinada pelo vice-presidente do tribunal, sendo que a mesma matéria já havia sido analisada pela presidência do Supremo na decisão que englobou os pedidos cautelares de quatro outras ADIs. Os resultados, mais do que inusitados, sob o ponto de vista processual, são: a) a suspensão de decisões da presidência pelo vice-presidente; b) a substituição da decisão proferida em três ações diretas pela decisão proferida em uma ação paralela; c) a desnecessidade de se utilizar recurso apropriado para a cassação de medida liminar (basta propor nova ação com novo pedido liminar); d) a concessão de medida liminar, que pressupõe a urgência e a urgência pressupõe efeitos da lei, sem que a lei nem mesmo tivesse efeitos práticos. Com razão, por isso, no mês de março deste ano o ministro Gilmar Mendes afirmou que:

"A liminar precisa ser submetida ao plenário do Supremo, e até agora não foi. Devemos evitar dar liminar sem submeter a matéria ao plenário. Porque foi o Congresso que aprovou a lei. (…) Se nós formos decidir pela suspensão, isso tem que ser feito pelo Supremo Tribunal Federal. Só em hipóteses raríssimas, como o período do recesso, se justificaria, muito excepcionalmente, uma liminar que suspendesse uma lei (…). Liminares, com relação a leis, têm que passar pelo Supremo. Nesse caso do juiz das garantias, é um escândalo" [3].

As afirmações do ministro fazem referência à Lei nº 9.868/99, que em seu artigo 10 dispõe que, como regra, as decisões em medidas cautelares proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade devem observar o quórum da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, exceção feita somente aos períodos de recesso. O sentido dessa regra é reproduzido pelos artigos 21 e 170, §1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

O tempo passou, veio a pandemia e todos passaram a ter outras preocupações. Mas o tratamento dispendido ao juiz das garantias merece atenção. Se do ponto de vista procedimental é essencial compreender o papel e a contribuição deste instituto para a criação de um modelo de persecução penal mais equânime e equilibrado, do ponto de vista constitucional a situação é dramática. Sob essa última ótica, o que se fez foi uma costura procedimental sem sentido, com o único propósito de superar a decisão legitima do poder competente para avaliar a pertinência da alteração da lei processual (Legislativo). Nesse ponto, são particularmente graves afirmações como "dados da vida real são essenciais para a análise da inconstitucionalidade formal dos dispositivos atacados" (ministro Luiz Fux), não só porque elas não o menor embasamento fático, mas também porque a "realidade" do sistema penal e prisional brasileiro é retratada diariamente em presídios superlotados, excesso de presos provisórios, prisões sumárias de pessoas carentes que pertencem a grupos estigmatizados, enfim, processos em que o juiz atua como parte interessada do começo ao fim.

Tudo isso mostra não só que o Supremo, no caso, o relator de uma das ações diretas, impôs a sua própria compreensão da realidade, desconsiderando tudo o que o Parlamento disse e fez a respeito do tema, mas também, ao não colocar a sua decisão em debate perante o Plenário da corte, exclui tudo e todos do debate. Não é só como o jogador que pega a bola e quer jogar sozinho, mas alguém que quer jogar um jogo criando as próprias regras e jogando contra si mesmo. É o exemplo mais típico e acabado de monólogo constitucional, por meio do qual o julgador se coloca acima da lei devidamente aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República. Na prática, um ano e meio depois, é essa a decisão que vale: a arbitrária e individual. Mais grave é constatar que talvez o Supremo e seus ministros ainda não perceberam que situações bizarras como essas minam a sua própria autoridade e podem fazer com que, no futuro, uma autoridade tão desarrazoada e autoritária quanto a dele se volte contra ele. Afinal, quem um dia entra no jogo do autoritarismo e das decisões sem sentido deve ou estar preparado para enfrentar alguém que seja tão autoritário quanto ele ou estar conformado com a sua própria extinção.

 


[1] GOMES, Luiz Flavio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo código de processo penal. p. 01.

[2] STF. BARROSO, Roberto. ADI 5104 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2014, DJe-213. Publicado em 30/10/2014.

[3] MENDES, Gilmar. Entrevista dada no webinar O papel do Legislativo na produção da Justiça, promovida pela ConJur em 18/03/2021.

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  • é pós-graduanda em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas - FGV e mestranda em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em regime de dedicação exclusiva.

  • é doutor em direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CCHSA) e coordenador do mestrado em Direito da PUC-Campinas.

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