Embargos Culturais

Jessé Souza e 'A Guerra contra o Brasil'

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

27 de junho de 2021, 8h00

Na leitura de Jessé Souza, as chaves interpretativas da realidade nacional predicariam na subserviência da elite econômica às agendas norte-americanas, na expansão do fundamentalismo religioso e numa latente tradição autoritária. Parece-me esse o tema central de "A Guerra contra o Brasil", um bem fundamentado livro que dá continuidade à linha crítica de Jessé Souza, importante pensador brasileiro, sobre quem já tratei nesta coluna Embargos Culturais. O livro é dividido em três núcleos argumentativos, em forma de capítulos: a ideologia do imperialismo formal norte-americano, a transformação do racismo em moralismo e as metamorfoses do neoliberalismo.

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O autor explora o conjunto de ideias e valores que buscam a legitimação e a justificação da ascendência norte-americana sobre o Brasil, e que o senso comum aceita sem qualquer forma de impugnação mais consistente. Parece-me que ainda estaríamos presos a uma antiga questão que professores de História e Geografia lançavam em salas de ensino médio, entre 1960 e 1980, isto é, como se poderia explicar o nosso atraso em relação às condições econômicas norte-americanas. Palpitava-se invocando aspectos raciais e culturais (difícil concorrer com uma nação de brancos protestantes e ascéticos), ou geográficos (nosso clima tropical impossibilitava qualquer forma de crescimento) ou ainda econômicos (os norte-americanos esboçam sua realidade no contexto de uma colonização de povoamento, enquanto nossa trajetória deu-se nas fórmulas das colônias de exploração). Insinuava-se que nenhuma das respostas seria plenamente satisfatória. Creio que o problema estava na pergunta e nas premissas que seguiam.

Sem tocar necessariamente nesse dilema (ou trilema), o livro de Jessé Souza enfrenta a questão. Jessé argumenta que o pensamento social norte-americano construiu uma falsa concepção de que racismo e preconceito cederam ao avanço da ordem democrática. Pior, sustenta que as ideias da extrema direita norte-americana, centrados no racismo e no elitismo, reverberaram no Brasil.

Para Jessé, o problema do racismo fundamenta a vida social e política. O racismo é justificado por concepções muito gerais e abstratas que lhe dão uma certa aparência de verdade inconteste. Há uma inicial justificativa religiosa, à qual seguiu uma fundamentação supostamente científica. Exemplifica com os estudos de Max Weber, no tema da sociologia da religião, especialmente nos comentários feitos à religião hindu. A metempsicose (a passagem das almas) justifica a aceitação da dominação, no contexto da sociedade de castas. É o sistema predominante na Índia.

Jessé retoma argumento de outras de suas obras e explora o tema do ideal platônico de virtude, especialmente como reelaborado por Agostinho. A virtude estaria no espírito, caminho para a salvação. No corpo, não há virtude. Haveria apenas vícios, a exemplo do sexo, da violência e de uma inclinação para a vulgaridade. À classe dominante o ócio garante ascese espiritual. Às classes dominadas, a vida não transcende aos desejos naturais do corpo. É o mundo de senhores (centrados no domínio do espírito) e escravos (submetidos às determinações do corpo). Nessa dicotomia se assentariam as concepções justificativas das formas de racismo.

O ambiente protestante dos Estados Unidos realizaria de forma plena a ordem centrada na virtude espiritual. Max Weber explorou essa contingência, a partir da concepção de predestinação da ética da salvação calvinista. O pensamento weberiano foi apropriado pela sociologia norte-americana, especialmente em Talcott Parsons, que inclusive traduziu o autor da "Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Parsons enfatizou o excepcionalismo norte-americano, que transita de pesos e medidas para o triunfo do protestantismo ascético.

É a doutrina da superioridade norte-americana, que substituiu o paradigma de raça por uma concepção de cultura. Trata-se de um dos temas mais discutidos nas universidades norte-americanas, nos vários think tanks, na linguagem do cinema hollywoodiano, na música popular, sempre veiculados por um domínio linguístico que exclui de qualquer discussão mais séria quem não domine o inglês. Segundo Jessé, essa superioridade fora também explorada no confronto com o Islã. Cuida-se do livro de Samuel Huntington, "O conflito de civilizações".

É o caso também dos estereótipos explorados no cinema norte-americano, a exemplo de histriônicas figuras de árabes, latinos, eslavos e negros. O norte-americano se autorrepresenta como disciplinado, detentor do controle das emoções, expressão de um pensamento meticuloso e prospectivo. É a lógica de Talcott Parsons, excepcionada por C. Wright Mills, sociólogo norte-americano que criticamente opôs um contraponto à teoria do culturalismo dominante.

Entre nós, no Brasil, continua Jessé, preponderam explicações pseudocientíficas. É o caso do homem cordial e do jeitinho. Não conseguimos evitar a substituição de paradigmas e bem mais propriamente não conseguimos anular esses paradigmas. O racismo supostamente cientifico nos afetou, do modo como pensado pelos ingleses no século XIX. De igual modo, o culturalismo norte-americano nos diminui. Ao brasileiro emotivo opõe-se o norte-americano racional. Ao brasileiro ignorante opõe-se o norte-americano instruído. Ao brasileiro manipulado opõe-se o norte-americano esclarecido. Ao brasileiro supostamente corrupto opõe-se o norte-americano singularmente honesto. Simplificam-se as coisas, e nos tornamos menores. Por quê?

Entre nós, a dulcificação da escravidão e o mantra de um mestiço feliz foram sustentados na obra teórica de Gilberto Freyre e na ação política de Getúlio Vargas, ainda nos anos 30. Para Jessé, o mito do homem cordial, do jeitinho brasileiro e do patrimonialismo escondem a realidade do ódio que martiriza excluídos e marginalizados.

A teoria hegemônica norte-americana alcança seus pontos mais avançados com a manipulação da opinião pública, na chamada "fabricação do consenso", do modo como concebida por Walter Lippmann. Uma elite dita esclarecida deveria construir a opinião do país. Segundo Jessé, a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial exemplifica essas fórmulas. Para Jessé haveria uma elite de proprietários que se valeria de uma elite funcional (magistrados, advogados, economistas, quadros do estado) para manter e expandir situações privilegiadas, circunstância clara nos Estados Unidos, e também repetida no Brasil.

Jessé relata a história de Edward Bernays, sobrinho de Freud, que revolucionou o controle da opinião pública nos Estados Unidos. Bernays alavancou a venda de bacon divulgando a opinião de quatro mil médicos que justificavam a necessidade do consumo de gordura animal no café da manhã. Bernays duplicou o público consumidor de cigarros ao vincular o movimento da luta pelo voto feminino ao consumo de tabaco, o que metaforicamente realizou mediante as "tochas da liberdade".

Jessé discute problemas mais contemporâneos, com digressões em torno das ideias de Andrew Korybko, criador do conceito de "guerra híbrida", que consiste em uma guerra também calcada na propaganda maciça. É o uso da imprensa e de todos os meios de comunicação para minar o inimigo, inclusive criminalizando-o. O Direito é o palco mais propício para essas táticas, conhecidas como táticas de lawfare.

No caso brasileiro, Jessé exemplifica com os casos do "mensalão" e da "lava jato". A acusação de corrupção, no âmbito da lawfare, é o mecanismo mais dinâmico e imediato para a destruição de reputações. No caso brasileiro, continua Jessé, há uma continua criminalização do Estado, ao mesmo tempo em que insiste nas virtudes do mercado. A lei de combate dos crimes de organização criminosa e obstrução de justiça (Lei nº 12.850, de 2013) teria fornecido, creio na opinião do autor aqui estudado, as estruturas jurídicas para a criminalização do inimigo.

Jessé conclui o livro analisando as metamorfoses do neoliberalismo. Exemplifica com as terceiras vias, representadas por Clinton, Blair e Schröder, cujas promessas não se realizaram. É o que alicerçaria a nova direita, que se mostra como sincera, adepta incondicional da verdade, e que ataca quem quer que se apresente como esclarecido, cuja fala é desconstruída com a acusação de que se esgota com "mimimis". Nesse passo Jessé narra as trajetórias de expoentes desse novo segmento radical: Steve Bannon e Robert Mercer.

No contexto da beatificação do mercado Jessé explora as linhas gerais da chamada análise econômica do Direito, o movimento law and economics, que abandonou critérios humanistas de justiça em favor do mercado e das relações entre custo e benefício. Esse movimento ainda conta com o capital simbólico de se revelar detentor de muita credibilidade, que decorreria de sua interdisciplinaridade. Muitos dólares são colocados à disposição de universidades norte-americanas que estudam essa disciplina. Harvard, Yale, Columbia e Cornell seriam seus centros mais dinâmicos.

"A Guerra contra o Brasil" é um livro que alavanca alternativas para tentativa de compreensão de nossos dilemas e problemas, cujas explicações não se esgotam na leitura dos pensadores canônicos que moldaram nossas ciências sociais, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Raymundo Faoro, principalmente. "A Guerra contra o Brasil" é um livro insurgente, de militância. Pode-se discordar de seus postulados, mas não é um livro que provoca a indiferença.

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