Opinião

Cabe a convalidação de edital de certame que apresente vícios?

Autor

  • Guilherme Simões Credidio

    é professor de Direito Urbanístico e Ambiental no Centro Universitário FAM mestre em Administração pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Administrativo pela Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).

27 de junho de 2021, 15h14

A convalidação de edital de certame com vícios é uma questão recorrente em sala de aula, principalmente quando há alguma aluna ou algum aluno prestando concursos públicos. É um assunto inquietante, que merece maior compreensão. Ademais, a unidade do Direito é construída por meio das interpretações dos tribunais, ressaltando a importância dos precedentes judiciais para a compreensão dos mais diversos assuntos do Direito [1]. Nosso objetivo é responder à questão que intitula o artigo por meio da análise de um precedente que esclarece o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo. 

Partindo da conceituação de ato administrativo como "a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário" [2], é fundamental ponderar que, como uma espécie de declaração, o ato administrativo é passível de vícios.

Os atos administrativos, na qualidade de atos jurídicos, são enunciados que carregam consigo determinada dose de prescrição. Como atos emanados pela Administração Pública, os atos administrativos carregam também a vontade do administrador, podendo, por conseguinte, ser anulados devido à presença de vícios.

Os vícios podem gerar nulidades absolutas (quando referentes aos atos nulos, cujos vícios não podem ser sanados) e nulidades relativas (quando referentes aos atos anuláveis, cujos vícios podem ser sanados). Já a convalidação deve ser compreendida como "ato pelo qual é suprido o vício existente em um ato ilegal, com efeitos retroativos à data em que este foi praticado" [3]. Somente os atos anuláveis podem recuperar sua legalidade por meio do instituto da convalidação.

Di Pietro ainda esclarece que o ato de convalidação pode ser discricionário [4]  no caso de ato discricionário praticado por autoridade incompetente, que seria convalidado se adequado ao interesse público ou invalidado por vício de competência se reputado inadequado  ou pode ser vinculado  quando deve ser convalidado, se presentes os requisitos para sua prática, e anulado, se ausentes estes requisitos legais.

No intuito de abordar o tema da convalidação de atos administrativos, será analisado o seguinte acórdão que versa sobre a convalidação de certame público, após correção de vícios que figuravam no edital:

"AÇÃO POPULAR — ANULAÇÃO DE CERTAME PÚBLICO POR VÍCIOS CONTIDOS NO EDITAL  Pretensão do município à convalidação do certame, mediante retificação do edital, visto inexistir ilegalidade na contratação da banca organizadora do concurso  Subsistência  Convalidação do certame, com retificação do edital, que é medida que concretiza o interesse público primário, bem como o interesse dos particulares que já haviam se inscrito no certame  Convalidação de ato administrativo que é dever jurídico da Administração Pública, conforme princípios da boa-fé e da segurança jurídica  No mesmo sentido, parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ)  Sentença reformada, para se determinar a retificação do edital  Recurso da municipalidade parcialmente provido, para tanto  Não conhecido o apelo dos autores populares, por intempestivo, nem o adesivo deles, por precluso e prejudicado" [5] (grifo do autor).

O caso em tela versa sobre vícios em edital de certame e a possibilidade ou não de sua convalidação.

Em primeira instância, a juíza determinou o cancelamento do concurso público, tendo apontado "os seguintes vícios no edital do certame: 1) formação de cadastro de reserva; 2) conteúdo programático e divisão das questões da prova; 3) ausência de aplicação de peça prática ao cargo de procurador jurídico; 4) não participação de membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em relação ao cargo de procurador jurídico e 5) ausência de elementos indicativos acerca da capacidade técnica da banca, pois a comissão é organizada por servidores, sem a respectiva menção de reunirem qualificação à avaliação dos candidatos" [6].

Diante da decisão da magistrada, a municipalidade de Mira Estrela interpôs recurso de apelação, arguindo que não havia vício na contratação da empresa organizadora do certame e que a retificação do edital do concurso deveria ser determinada por constituir opção menos onerosa ao seu cancelamento e pelas irregularidades apontadas pela juíza de primeiro grau poderem ser sanadas.

A convalidação de ato administrativo que figura do referido acórdão pode ser analisada à luz dos cinco elementos do ato administrativo, a saber: sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade.

Segundo o requisito do sujeito, somente estariam presentes vícios relativos ao sujeito, caso houvesse incompetência ou incapacidade do sujeito. Na decisão em análise, o ato administrativo foi praticado pela pessoa pública política (municipalidade de Mira Estrela) competente para realizá-lo.

No que concerne ao requisito da forma, é preciso compreender que forma nada mais é do que maneira pela qual determinado ato deve ser praticado. A Lei nº 4.717/65 dispõe no seu artigo 2º, parágrafo único, "b", que "o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato". Nas palavras de Di Pietro [7], "o ato é ilegal, por vício de forma, quando a lei expressamente a exige ou quando uma finalidade só possa ser alcançada por determinada forma". É a hipótese materializada no caso em tela. Há vícios no edital do certame nos tópicos de formação de cadastro de reserva; de conteúdo programático e divisão das questões da prova; de aplicação de peça prática ao cargo de procurador jurídico; de participação de membro da OAB em relação ao cargo de procurador jurídico; e de indicação da capacidade técnica da banca. Contudo, nesse caso a convalidação seria possível pela forma não ser essencial ao ato válido.

Em relação ao requisito do objeto, é preciso compreendê-lo como atinente ao conteúdo do próprio ato. De acordo com o artigo 2º, parágrafo único, "c", da Lei nº 4.717/65, "a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo". Por isso, Di Pietro esclarece que o objeto do ato deve ser lícito [8], possível (de fato e de direito), moral e determinado. Não é o caso do resultado do edital do certame, pois seu objeto é previsto em lei, é possível, não é imoral e não é incerto em relação às pessoas a que se destina.

Sobre o requisito do motivo, a matéria de fato e de direito em que se fundamenta o ato administrativo não é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado que se pretende. Por isso, no caso em análise não há vício quanto ao motivo.

Acerca do requisito da finalidade, o artigo 2º, parágrafo único, "e", da Lei nº 4.717/65 apresenta que "o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência". Com o ato administrativo praticado, por óbvio, não se buscou atingir um resultado diverso do previsto em lei. Antes, o ato administrativo é motivado pela necessidade de preencher cargos públicos que é absolutamente condizente com o interesse público.

A doutrina prescreve que é possível convalidar atos administrativos que tenham vícios quanto à forma e quanto ao sujeito, não sendo possível convalidar aqueles viciados quanto ao objeto, ao motivo e à finalidade [9]. Por isso, os vícios presentes no edital do certame podem ser sanados, podendo ocorrer a sua convalidação. Nesse sentido, a Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pela convalidação nos seguintes termos:

"A convalidação é modo eficaz e idôneo para recompor a legalidade lesionada quando da expedição de ato administrativo inválido. Trata-se de uma prerrogativa inerente à Administração, que está prevista no art. 55 da Lei nº 9.785/99, permitindo-lhe ratificar seus próprios atos, suprimindo os vícios nele presentes, reproduzindo-o de forma legítima.
Nesse sentido, a convalidação enaltece os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da eficiência administrativa, porquanto evita a expulsão do ato do sistema, preservando todas as relações jurídicas pertinentes. O que se busca, em verdade, é atender àquelas situações em que o interesse público é melhor tutelado pela correção do ato administrativo do que por sua invalidação, levando em consideração o grau de intolerância do sistema jurídico em relação aos vícios do ato
(…)
Dessa forma, cabe lembrar que a convalidação não é uma prerrogativa adstrita à discricionaridade da Administração, mas é verdadeiro dever jurídico imposto a esta. Isto porque, sendo tanto a invalidação quanto a convalidação formas adequadas para recompor a legalidade no caso, sempre militarão mais razões jurídicas e vantagens ao interesse público em favor da última do que em relação a primeira.
Sempre que sanável o vício que macula o ato administrativo, não subsistem motivos para extirpá-lo do sistema. Não se estando frente a um ato nulo ou inexistente e sendo o ato atinente ao interesse público, sua preservação sempre é a opção mais benéfica tanto aos particulares quanto a própria Administração. Assim, deve ser ela a
hipótese mandatória, por aplicação do princípio da 'boa administração" [10] (grifos do autor).

A análise do caso retratado na decisão permite compreender que a convalidação consagra os seguintes princípios da Administração Pública: 1) legalidade, pois é sanado vício de legalidade; 2) supremacia do interesse público, pois são atendidos os fins de interesse geral; 3) segurança jurídica, pois assegura uma interpretação mais uniformizada das normas atinentes à Administração; 4) boa-fé, pois o administrado atua na crença de que está agindo corretamente ao seguir os requerimentos da ato administrativo; e 5) eficiência, pois permite que a Administração Pública alcance os melhores resultados na prestação do serviço público.

A convalidação do ato administrativo com a retificação do edital do certame atende em primeiro lugar ao interesse da coletividade. Ademais, atende aos interesses daqueles que se inscreveram no certame. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reformou em parte a sentença da magistrada de primeiro grau, determinando a convalidação do certame, mediante a publicação de novo edital que corrija os vícios presentes no edital original. Portanto, a decisão do tribunal privilegiou o interesse público, sendo, a meu ver, acertada diante do painel fático.

 


[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil – Volume 2 – Tutela dos Direitos mediante Procedimento Comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 599

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 232.

[3] Ibidem, p. 288

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 280.

[5] TJSP; Apelação Cível 1005751-05.2019.8.26.0189; Relator (a): Percival Nogueira; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Cardoso – Vara Única; Data do Julgamento: 12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020

[6] TJSP; Apelação Cível 1005751-05.2019.8.26.0189; Relator (a): Percival Nogueira; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Cardoso – Vara Única; Data do Julgamento: 12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 276.

[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 275.

[9] Ibidem, p. 281

[10] TJSP; Apelação Cível 1005751-05.2019.8.26.0189; Relator (a): Percival Nogueira; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Cardoso – Vara Única; Data do Julgamento: 12/11/2020; Data de Registro: 12/11/2020.

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