Opinião

A negativa do Poder Judiciário quanto ao direito à herança digital

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26 de junho de 2021, 15h11

O desenvolvimento da tecnologia e a larga expansão do uso da internet certamente resultam em maior número de bens e serviços utilizados, publicados ou guardados em plataformas e servidores virtuais. Esses ativos, caracterizados como bens incorpóreos, possuem valoração econômica ou afetiva e compõem o patrimônio digital de uma pessoa.

Em uma época em que 82% dos domicílios brasileiros têm acesso à internet e 140 milhões de pessoas usam ativamente as redes sociais no país, não há dúvidas de que esses usuários têm acumulado, cada vez mais, diferentes bens digitais, fato que repercute no Direito, especialmente no que tange à herança digital, isto é, à transferência desse patrimônio quando do falecimento do titular.

Para o espanto de alguns leitores, o que se verifica atualmente é que o Poder Judiciário tem negado o direito à herança digital. No entanto, essa tendência possui fundamento bastante razoável, na medida em que ainda não há legislação que regulamente especificamente o tema, tendo os magistrados entendido de maneira acertada ao negar aos familiares o pleito de acesso aos bens digitais deixados pelo falecido, em respeito aos direitos personalíssimos.

Vale lembrar que os importantes Projetos de Leis nº 7.742/2017 e nº 8.562/2017 foram recentemente arquivados pela Câmara dos Deputados. O primeiro pretendia acrescentar um artigo ao Marco Civil da Internet para que houvesse expressa determinação legal quanto ao dever dos provedores de aplicações de internet de excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos, imediatamente após a comprovação do óbito, mediante requerimento de cônjuge, companheiro ou parente. Por sua vez, o segundo pretendia acrescentar capítulo próprio sobre herança digital ao Código Civil, assegurando o direito dos familiares de gerir o legado digital daqueles que já se foram.

Hoje, outros projetos sobre o tema estão em andamento e pretendem realizar alterações no artigo do Código Civil que trata sobre sucessão. Eles apresentam como justificativa à inclusão do dever de transmissão aos herdeiros de conteúdo, contas e arquivos digitais do autor da herança, a necessidade de medida de prevenção e pacificação de conflitos sociais, ante ausência de lei que trate do tema.

De tal forma, cria-se o dever de transferência de titularidade do material que é construído em vida por determinada pessoa na internet, sem que sejam tutelados a privacidade e a intimidade, a imagem e outros direitos de personalidade do falecido, questões extremamente fundamentais.

Há de se ressaltar, portanto, que ainda que os bens que possuem valor econômico possam ser passíveis de compor o espólio de seu titular, em caso de falecimento, devendo haver transmissão aos herdeiros, as informações estritamente personalíssimas, relacionadas aos direitos de personalidade do falecido, devem ser protegidas, principalmente em casos de ausência de disposições de última vontade, não devendo haver presunção de transmissão automática, como pretendem alguns dos projetos em trâmite perante o Congresso Nacional.

O que se depreende da lacuna legislativa em relação ao tema é que a solução de eventuais conflitos passa a ser uma atribuição do Poder Judiciário. Apesar da doutrina estar dividida quanto ao assunto, vez que parte dela defende o direito constitucional à herança, há corrente que entende pela impossibilidade de transmissão do patrimônio digital aos herdeiros, de cunho personalíssimo, priorizando-se a privacidade e a intimidade do falecido, tese que tem sido seguida pela maioria dos tribunais e que possui maior razoabilidade em vista ao choque de direitos. Reforçando esse entendimento, em recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a autora de ação movida em face do Facebook teve seu pedido negado ao pleitear restauração de perfil utilizado pela sua falecida filha e indenização por supostos danos morais sofridos em razão da exclusão repentina da página.

O desembargador relator acertadamente entendeu que, ao criar o perfil, a filha da autora aderiu aos termos de serviço e padrões da comunidade do Facebook, disponibilizados aos usuários quando ingressam na rede social e, optando pela exclusão da conta em caso de morte, não existiria qualquer abusividade ou ilegalidade na conduta do Facebook, já que decorrente de manifestação de vontade exarada em vida.

Portanto, diante das novas realidades geradas pela tecnologia digital, o ordenamento brasileiro deve se posicionar de forma clara e rápida, a fim de acompanhar a evolução das relações jurídicas, desde que respeitados direitos e interesses individuais, notadamente os direitos de privacidade e intimidade do falecido, evitando-se, de tal forma, mais insegurança jurídica.

Enquanto não existe legislação específica sobre a herança digital, cabe às plataformas criar limites e obrigações sobre o tratamento de dados e facilitar a manifestação de vontade do usuário, a partir da disseminação das informações pertinentes ao legado que será deixado após a morte. E, nesse sentido, devem os usuários tomar as medidas cabíveis em vida, evitando maiores problemas quando houver necessidade de transmissão dos bens e direitos digitais aos seus herdeiros.

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