Opinião

Reconhecimento facial: compreendendo os limites de uso

Autor

  • Pedro Zucchetti Filho

    é bacharel em Direito e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e mestrando em Direito e Tecnologia na Universidade Nacional Australiana (ANU).

26 de junho de 2021, 11h14

O reconhecimento facial não se encontra regulamentado como novo sistema de identificação pessoal no PL 8.045/10 (projeto do novo Código de Processo Penal, ou CPP). Não obstante essa omissão, já vem sendo utilizado como ferramenta em grandes metrópoles ao redor do planeta [1].

O reconhecimento facial funciona graças à utilização de um sistema computadorizado mediante o qual, recorrendo-se a um banco de dados, consegue-se acessar o histórico do indivíduo (profissão, estado civil, antecedentes etc.) que teve a imagem da face capturada pela câmera de vigilância [2]. O computador, ao utilizar um sistema de inteligência artificial, consegue analisar diversas características do rosto gravado/fotografado (a distância entre os olhos, o tamanho do nariz e da boca, a linha da mandíbula, dentre outras). Essas informações, que se transformam em um algoritmo, um número (tornando-se a identidade biométrica da pessoa), ficam armazenadas para eventual necessidade de comparação futura desses dados com outros.

A despeito de seu uso encontrar justificativa em finalidade aparentemente inofensiva, qual seja, facilitação do serviço de segurança pública  localização de veículos furtados/roubados e de suspeitos de crimes e de foragidos da Justiça , conferindo celeridade a procedimentos prolongados, esta forma de reconhecimento não é imune a várias críticas.

Os dados do reconhecimento facial frequentemente derivam de imagens de detidos em delegacias, antes mesmo de o juiz ter a chance de determinar sua culpabilidade ou inocência. Esses retratos policiais usualmente são mantidos em banco de dados, mesmo quando o detido não foi oficialmente acusado de nenhum delito. Em algumas cidades dos Estados Unidos, o reconhecimento facial é também utilizado mediante dispositivos móveis e permite aos agentes estatais utilizarem celulares ou tablets para bater fotografia de um motorista/pedestre e imediatamente compará-la com outras insertas em banco de dados [3].

Dada a elevada quantidade do número de rostos nessas bases de dados, e tendo em conta que muitas pessoas assemelham-se, elevadas são as possibilidades de o sistema identificar rostos similares, havendo sério comprometimento do nível de acurácia. Daí advém uma das principais críticas que podem ser feitas a esta tecnologia, é dizer, ao invés de identificar positivamente uma pessoa desconhecida, normalmente o sistema calcula a probabilidade de semelhança entre ela e moldes de rostos específicos armazenados no banco de dados [4].

Em virtude da comparação realizada por esse sistema geralmente basear-se em informações padronizadas (elevada quantidade de imagens de indivíduos brancos e adultos), a tecnologia acaba sendo particularmente deficitária na identificação de negros e outras minorias étnicas, mulheres e crianças, impactando de forma discrepante determinados grupos sociais.

Não bastasse a potencialização do risco de ocorrerem erros por semelhança e a viabilização da manutenção permanente de imagens em banco de dados, o reconhecimento facial traz também a consequência de reduzir a privacidade em espaços públicos [5], não sendo trabalhoso imaginar-se que muitos indivíduos deixariam de realizar determinados comportamentos e atividades (não criminosos) se soubessem que estivessem sendo vigiados.

Por isso que, na contramão do que aparentemente é tendência, São Francisco recentemente editou lei proibindo a utilização de reconhecimentos faciais pelos departamentos de polícia e por outras agências públicas do município, ressalvando que a restrição não afeta outros serviços como, por exemplo, o uso da tecnologia em aeroportos ou em outras dependências cuja regulamentação seja da competência do governo federal.

Além desse efeito proibitivo, a decisão aprovada no Parlamento municipal, em 14/5/2019, contém a previsão de que a aquisição pública de quaisquer dispositivos que monitorem os cidadãos terá de ser aprovada previamente pelos parlamentares. De acordo com a lei, há propensão da tecnologia de reconhecimento facial para colocar em perigo os direitos e as liberdades civis, além do fato de que o reconhecimento facial poderia "exacerbar a injustiça racial e ameaçar nossa capacidade de viver sem a contínua vigilância do governo" [6].

Sobre a possibilidade de serem realizadas gravações públicas de imagens dos indivíduos, Huertas Martín alude à decisão exarada pelo Tribunal Supremo espanhol [7], de 6 de abril de 1994 – R. A. 2889, na qual a corte entendeu que a prova resultante de gravação por videocâmaras terá validade se não tiver violado a intimidade e a dignidade da pessoa atingida pela gravação, e que não se estará vulnerando nenhum direito do indivíduo afetado quando a captação de imagens, ainda que feita de forma velada ou sub-reptícia, fundamentar-se no esclarecimento de conduta supostamente delitiva. A corte também estipulou que a filmagem, para ter validade, deve ser realizada apenas em lugares públicos, sendo exigida autorização judicial fundamentada para que eventual imagem do indivíduo possa ser coletada em seu domicílio.

Importa ainda registrar que a autora faz menção ao informe do Consejo General del Poder Judicial (CGPJ) ao anteprojeto da LO 4/1997, datado de 12 de agosto de 1996, segundo o qual não se pode desconsiderar que a captação de sons e imagens por meios audiovisuais tem reflexos importantes sobre os direitos e liberdades fundamentais, tais como a imagem e a intimidade dos indivíduos. O informe também esclarece que, para que essa intervenção do poder público seja considerada legítima, deve ser precedida de uma lei que regulamente os casos em que poderá ocorrer, além de aduzir que, à luz dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, a atividade de vídeovigilância fundamente-se na existência de um "perigo claro, atual e iminente para a segurança das pessoas e bens", não sendo suficiente para seu uso a existência de meras suspeitas ou de um perigo meramente potencial [8].

Ao comentar a referida LO 4/1997, a autora critica o excesso de generalidade da norma ao autorizar o emprego da videovigilância fixa quando verificar-se, na situação concreta, razoável risco para a segurança pública, sendo permitido o emprego de câmeras móveis quando verificar-se a existência de um perigo concreto. Em razão de tratar-se de medida restritiva de direitos fundamentais, seria importante que a lei regulamentadora do uso de videocâmeras pelos agentes de segurança contivesse critérios específicos, de modo que impedisse a possibilidade de emprego arbitrário ou indiscriminado destes meios [9].

Se as limitações dos direitos fundamentais (privacidade, intimidade, direito à imagem) devem atender a determinadas circunstâncias, resulta que da interação entre reconhecimento facial e princípio da proporcionalidade (o qual requer a ponderação de interesses para legitimar a ingerência estatal nos direitos individuais) haverá um (razoável) sacrifício quando não houver a captação casual e aleatória das imagens, sendo mister a demonstração de uma suspeita razoável de que delitos serão ou de que há indícios de que serão perpetrados (situação de perigo concreto para interesses públicos) [10].

Portanto, além de o reconhecimento facial ter seu uso condicionado à regulamentação legal e a determinados critérios, o tratamento normativo dessa tecnologia também deve dispor acerca da quantidade de tempo que as imagens ficarão à disposição das autoridades, além de estabelecer quem terá direito a acessá-las.

Requisitos para avaliar-se a credibilidade da imagem capturada também devem estar normativamente previstos, a exemplo da obrigatoriedade de sua submissão à perícia.

Porém, a necessidade de regulamentação legal, embora necessária, não é suficiente, sendo indispensável que o emprego do sistema seja acompanhado pela elaboração de estudos sobre suas consequências (estatísticas de erros e de acertos, principalmente).

 


[1] Embora as câmeras de vigilância já fossem uma realidade no final do século XX, foi a partir do 11 de setembro que o sistema eletrônico de fiscalização propagou-se pelo mundo. A prática é vista por muitos como extensão do uso dos panópticos (PITZER, Rafael Mendes Zainotte. Câmeras de Vigilância – Um Sistema de Controle Social. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=048e2f1447691907. Acesso: em 11 abr. 2019, p. 3 e ss.). O autor faz alusão ao livro "1984", de George Orwell, em que determinado Estado totalitário fictício, denominado Pista de Pouso n. 1, mantém vigilância e monitoramento ininterrupto de indivíduos da sociedade mediante o emprego de "teletelas" (equipamentos instalados por toda parte que permitiam não só a comunicação pelo Partido de suas programações e principais informações, mas também o constante acompanhamento dos atos dos súditos. Instaladas em todos os locais, públicos e privados, sob a justificativa de fiscalizar eventuais irregularidades e transgressões, as câmeras acabam impondo um estilo de vida aos indivíduos, uma vez que todos os seus atos passam a ser virtualmente acompanhados). O livro parece ter vaticinado uma prática que seria implementada num ambiente democrático (?) nas décadas vindouras. A título de ilustração da disseminação dessa prática, na China o número de câmeras localizadas em locais públicos que permitem o reconhecimento facial já ultrapassou a quantidade de 200 milhões.

[2] Conforme anota Moreira, muito embora existam diversos métodos tecnológicos para extração dos componentes faciais, grande quantidade deles possuem limitações, tais como: "i) não funcionar em tempo real; ii) ser sensível a variações de iluminação; iii) ser sensível a ruídos gerados pelo dispositivo de câmera; iv) possuir dependência de orientação; v) possuir dependência do espaço de cor utilizado; vi) não permitir que gestos sobreponham características (ex.: mão sobrepondo um dos olhos)" (MOREIRA, Juliano Lucas. Detecção de Componentes Faciais Baseados em Modelos de Cor e Antropometria. 58f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Computação) – Faculdade de Informática, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010, p. 14-15).

[3] Street-level Surveillance. Face Recognition, Em São Diego, por exemplo, um programa chamado TACIDS (Sistema Tático de Identificação) permite aos agentes de segurança pública de quase 25 agências abordar pessoas na rua, usar seus tablets ou celulares para bater fotografias e depois analisar as imagens com bases em retratos inseridos em bancos de dados.

[4] Street-level Surveillance. Face Recognition. Disponível em: https://www.eff.org/pt-br/pages/face-recognition. Acesso em: 21 jun. 2019. Recentemente, no Rio de Janeiro uma mulher foi detida e conduzida até a delegacia em razão do sistema de identificação facial ter considerado seu rosto compatível com o de uma foragida da justiça (Sistema de Reconhecimento Facial da PM do RJ Falha e Mulher é Detida por Engano. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/11/sistema-de-reconhecimento-facial-da-pm-do-rj-falha-e-mulher-e-detida-por-engano.ghtml. Acesso em: 23 jul. 2019). Nos EUA, estudo conduzido pela União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) apontou que o reconhecimento facial reconheceu equivocadamente vinte e oito parlamentares federais americanos em álbuns fotográficos policiais (Por que uma das Maiores Cidades dos EUA Baniu o Reconhecimento Facil? Disponível em: https://noticias.uol.com.br/tecnologia/noticias/redacao/2019/05/16/por-que-uma-das-maiores-cidades-dos-eua-baniu-o-reconhecimento-facial.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR398MQjNMCkozNlI8zs23-DN0ObTIlVca7iEqmyNvm9shJx0Q_urW25lc8. Acesso em: 16 mai. 2019).

[5] The Guardian View on Facial Recognition: A Danger to Democracy. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/jun/09/the-guardian-view-on-facial-recognition-a-danger-to-democracy. Acesso em: 21 jun. 2019.

[6] Por que uma das Maiores Cidades dos EUA Baniu o Reconhecimento Facil? De acordo com a reportagem, os dois principais argumentos utilizados para a aprovação da lei poderiam ser explicados da seguinte forma: quanto aos erros de identificação que conduziriam a um aumento nas injustiças sociais, estes seriam consequência do fato de que a tecnologia usa, como modelos para estabelecer algoritmos, geralmente rostos de homens brancos, existindo uma considerável probabilidade de que o sistema se engane ao tentar reconhecer a fisionomia de uma mulher negra, por exemplo. Já o argumento relacionado à violação da vida privada das pessoas encontra fundamento no fato que o sistema precisa realizar uma varredura dos rostos dos indivíduos que circulam pelas vias públicas, mesmo sem o conhecimento destes. A reportagem alude ainda a estudo realizado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) sobre a dificuldade de um famoso sistema de reconhecimento facial – Rekognition, da Amazon – em identificar rostos de mulheres e de negros.

[7] HUERTAS MARTÍN, M. Isabel. El Sujeto Pasivo del Proceso Penal como Objeto de la Prueba, p. 245-246. Em outra decisão (de 27 de fevereiro de 1996 – R. A. 1394), o STS espanhol considerou válidas como meio de prova as fitas de gravação (de câmeras instaladas em espaços públicos), estabelecendo que sua eficácia probatória vincula-se às cautelas que foram tomadas para aquisição e conservação da imagem, uma vez que não estão isentas do risco de falsificação ou de descaracterização.

[8] HUERTAS MARTÍN, M. Isabel. El Sujeto Pasivo del Proceso Penal como Objeto de la Prueba, p. 247. A fim de não ser indiscriminada a captação de imagens e objetivando-se evitar violações sistemáticas de direitos fundamentais, a medida deve pautar-se por critérios de racionalidade, necessidade e proporcionalidade, sob pena de descambar para a reinstituição do estado policialesco. Todavia, deve-se ter o cuidado para que determinados espaços públicos não sejam os únicos alvos de monitoramento eletrônico (por exemplo, fiscalização por câmeras exclusivamente de locais socialmente desfavorecidos, numa clara extensão da teoria do etiquetamento social). A fim de conferir-se legitimidade à instalação das câmeras, indispensável faz-se a existência de prévia pesquisa acerca dos locais em que há maior incidência de crimes, não podendo ser aceito seu uso em qualquer logradouro público e sob qualquer pretexto genérico supostamente válido.

[9] HUERTAS MARTÍN, M. Isabel. El Sujeto Pasivo del Proceso Penal como Objeto de la Prueba, p. 248-250. Para a autora, a instalação destas câmeras deve nortear-se pelo princípio da adequação (ou da intervenção mínima), devendo estar seus espaços de vigilância devidamente delimitados e justificados pela existência de um perigo claro, atual e iminente, isto é, de "indícios fundados de criminalidade".

[10] HUERTAS MARTÍN, M. Isabel. El Sujeto Pasivo del Proceso Penal como Objeto de la Prueba, p. 250. J. A. Choclán Montalvo apud HUERTAS MARTÍN, M. Isabel considera que o sistema indiscriminado de vigilância das atividades dos cidadãos constitui-se em uma "ingerência proibida no âmbito da intimidade que compreende as manifestações públicas da vida privada".

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