Opinião

Primeiras linhas do Código de Processo Civil constitucional

Autor

  • Jorge de Oliveira Vargas

    é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná mestre doutor e pós-doutor pela Universidade Federal do Paraná professor de Direito Tributário da Universidade Tuiuti do Paraná e de Direito Constitucional no Centro Universitário Opet e na Escola da Magistratura do Paraná membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas e do Instituto Tributário do Paraná e membro-fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual.

24 de junho de 2021, 16h06

Este artigo tem o objetivo de trazer algumas reflexões sobre o Direito Processual Civil constitucional, que se extrai da Constituição Federal de 1988.

Todos sabemos que temos o devido processo legal procedimental e o devido processo legal substantivo, bem como a diferença entre eles.

No primeiro, o juiz continua sendo a boca da lei, enquanto que, no segundo, passa a ser a boca da Constituição.

E essa é também a diferença de um Código de Processo Civil (CPC) procedimental e um Código de Processo Civil constitucional.

O processo civil do Estado liberal está baseado em regras, enquanto que o do Estado democrático de Direito, também chamado Estado de Justiça, em princípios.

O processo civil constitucional é principiológico e os princípios, todos sabemos, são normas superiores. As regras se legitimam quando realizam os princípios.

A finalidade última do processo civil constitucional é a concretização dos direitos fundamentais.

Pode o processo civil, por exemplo, ser utilizado para a erradicação da pobreza? Uma das principais metas da Agenda 30 da Organização das Nações Unidas (ONU) e objetivo da nossa República.

É o que diz o artigo 3º, III, da Constituição Federal. Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, erradicar a pobreza.

A resposta é sim, e isso pode ser alcançado de várias formas, como, por exemplo, a determinação do Estado de cumprir os direitos fundamentais de sexta dimensão: direito a água potável e ao saneamento básico. Isso é fundamental para que tenhamos uma população saudável; outra forma seria a regulamentação da Lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004, que institui a renda básica de cidadania, a qual até hoje não foi regulamentada, mas que felizmente está sendo objeto do Mandado de Injunção n° 7.300/DF, impetrado pela Defensoria Pública da União, cujo relator, o ministro Marco Aurélio, já se pronunciou pela procedência do pedido, estando, até onde me consta, com vista para o ministro Gilmar Mendes.

Outro ponto relevante é que para o processo civil constitucional a legalidade não basta, precisamos implementar a juridicidade, esse supraprincípio do Direito Público, com ênfase nos direitos fundamentais e no regime democrático de direito.

A lei por si só não basta, como diz o artigo 8º do novo Código de Processo Civil.

O juiz não julga como determina a lei, mas, sim, de acordo com o ordenamento jurídico, do qual a lei é apenas uma parcela.

Diz o dispositivo: ao aplicar o ordenamento jurídico o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum.

Aqui é importante destacar a consagração da interpretação corretiva das leis, que vem desde o Código de Bustamonte e o Decreto-Lei n° 4.657, de 4 de setembro de 1942, que já dispunha em seu artigo 5º (pouquissimamente aplicado) no sentido de que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Mas não é só, a nossa Constituição do Império, de 1824, já previa em seu artigo 179, II, que "nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública".

Devemos lembrar a diferença de lei e Direito. Lei é o texto, Direito é a aplicação do texto buscando o que é justo.

Summum ius, summa iniuria é fruto do maior esplendor do Direito romano, que decorre a interação da lei com a moral e a justiça [1].

O brocardo significa "o máximo do direito, o máximo da injustiça", ou seja, a aplicação da lei pode levar a resultados injustos. É uma disposição axiologicamente superior a qualquer regra positiva.

Esse princípio também está consagrado no referido artigo 8º, ou seja, dele se extrai a nascente concepção humanista de direito e com a noção de equidade.

O direito exagerado é a extrema maldade (ius summum saepe summa est militia).

O juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, ainda tem de resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, que é o princípio que caracteriza o Estado democrático do Direito ou Estado de Justiça.

O Estado democrático de Direito é o Estado da dignidade da pessoa humana.

No julgamento, o juiz deve observar a proporcionalidade, que caracteriza o devido processo legal substantivo, onde o julgador deve analisar os subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, buscando a solução justa e adequada, bem como a razoabilidade, que é o novo nome da equidade.

O artigo 6º do novo CPC determina que todos os sujeitos do processo devem cooperar para que se obtenha uma decisão de mérito justa.

Isso mais uma vez faz parte do processo constitucional, que diz, no artigo 3º da Carta Magna, que o objetivo da nossa República é construir uma sociedade justa, o que significa dizer que toda lei ou sentença injusta é inconstitucional.

Também no processo civil constitucional temos de avançar na questão da legitimidade para estar em juízo. O artigo 70 do Código de Processo Civil de 2015 limita essa legitimidade para toda a pessoa que se encontre no exercício de seus direitos.

Necessária aí a abordagem dos direitos ambientes; desses direitos transgeracionais.

O Código de Processo Civil não é um manual de instruções, mas, sim, um instrumento de concretização dos valores e normas fundamentais estabelecidos, como diz seu artigo 1º.

O artigo 225 da nossa Carta da República dispõe que:

"Todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

O que significa dizer que as futuras gerações têm direitos e podem exercê-los desde já.

Isso faz-me lembrar uma questão em que pessoas que irão nascer daqui a 300 anos e já poderiam acionar um órgão judicial, em defesa das Sete Quedas, essa maravilha da humanidade que desapareceu com a construção de Itaipu. Essa usina, segundo consta, terá uma durabilidade de no máximo 300 anos, ocasião em que Sete Quedas ressurgirá; mas havia um projeto de demolição das rochas desse presente da natureza, que impossibilitaria que isso acontecesse.

Ora, as futuras gerações têm direito de defender o meio ambiente e, no caso, à ressurreição de Sete Quedas; portanto, possuem legitimidade, desde já, para evitar essa demolição. Possuem legitimidade ativa ad causam. E quem teria a legitimidade ad processum? Qualquer cidadão, nos termos do artigo 5º LXXIII.

E a legitimidade dos animais? Ora, os animais fazem parte do meio ambiente e também necessitam ser protegidos e preservados.

 A Constituição da República do Equador, recentemente aprovada, assim dispõe no artigo 72. A natureza ou Pachamama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.

É perfeitamente possível, portanto, em razão da maior integração da sociedade mundial, através do transconstitucionalismo, legitimarmos processualmente a natureza.

Nesse aspecto temos o Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934, que estabelece medidas de proteção aos animais, o qual prevê, em seu artigo 1º, que todos os animais existentes no país são tutelados do Estado, e no artigo 2º, §3º, que todos os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.

Esse decreto foi editado com base no artigo 1º do Decreto n° 19.398, pelo qual o então governo provisório exercia, em toda sua plenitude as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do Poder Legislativo, portanto, o Decreto 24.645, citado, tem força de lei e, assim sendo, encontra-se vigente, não tendo sido revogado, como se alega, pelo Decreto n° 11, de 1991, pois uma lei, como era a natureza jurídica do Decreto 24.645, não pode ser revogada por decreto, só o pode ser por uma outra lei.

Esse decreto está em total sintonia com os artigos 225 e seguintes da Constituição de 1988, portanto, por ela foi recepcionado, porém, com conteúdo ampliado para qualquer cidadão a ter legitimidade ad processum para assistir aos animais.

O processo civil constitucional também é avesso às demandas frívolas, por não obedecerem ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, por importarem num custo muito superior ao benefício, como acontece com milhares e milhares de execuções fiscais inúteis.

Por fim, importa relembrar que o Direito não é só ciência, o Direito também é arte, arte para se buscar o justo.

No processo civil constitucional busca-se o casamento da segurança jurídica e da justiça.

Não se pode desprezar o direito fundamental da segurança jurídica, mas em nome dele não se pode fazer sucumbir a justiça.

Segurança jurídica e justiça são os pilares do processo civil constitucional. Encontrar esse equilíbrio é o objetivo.

Conclusões
a) O processo civil constitucional é principiológico;

b) O processo civil constitucional é uma garantia constitucional, uma regulamentação do texto constitucional, cujo objetivo é a concretização dos princípios fundamentos da nossa República e dos direitos fundamentais;

c) O processo civil constitucional requer a observância do nosso ordenamento jurídico como um todo, e não apenas da lei;

d) O processo civil constitucional consagra a legitimidade ativa das futuras gerações, de maneira especial nas ações transgeracionais, como as relacionadas com o meio ambiente;

e) A legitimidade processual ativa dos animais encontra amparo no processo civil constitucional;

f) O processo civil constitucional é avesso a ações frívolas;

g) O processo civil constitucional promove o casamento da segurança jurídica com a justiça;

h) O processo civil constitucional transforma o juiz como a boca da Constituição, e não mais como mera boca da lei;

i) O processo civil constitucional é um instrumento do devido processo legal substantivo.


[1] Pimenta, Leonardo Goulartigo Direito e religião no direito romano antigo. https://revistas.newtonpaiva.br/redcunp/wp-content/uploads/2020/05/PDF-D16-10.pdf.

Autores

  • é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, integrante da 3ª Câmara Cível com competência em matéria tributária, mestre, doutor e pós-doutor pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Tributário na Universidade Tuiuti do Paraná e de Constitucional na Escola da Magistratura do Paraná e no Centro Universitário Opet, membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Instituto de Direito Tributário do Paraná e membro fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual.

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