Opinião

Uma divergência oculta no Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • Luiz Augusto Rutis

    é advogado criminalista mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e associado ao escritório Peixoto Bernardes Advogados.

24 de junho de 2021, 15h05

Recentemente, a 5ª Turma do STJ decidiu que o ingresso de imóvel por policiais que viram e sentiram cheiro de maconha na residência sem autorização judicial prévia é válida, pois, "quando existente crime de caráter permanente, feita a denúncia anônima e realizada averiguação preliminar por policiais, estes podem ingressar em domicílio alheio mesmo sem mandado judicial" [1]. Tudo isso porque, na visão do ministro relator, Reynaldo Soares da Fonseca, "estamos diante de um fato que em princípio se enquadra numa das exceções de ingresso de domicílio: quando existente crime permanente, feita a denúncia anônima e realizada averiguação preliminar, é possível ingressar em domicílio alheio mesmo sem mandado judicial, exatamente porque essa averiguação notícia e aponta no sentido do estado flagrante de crime permanente" [2].

À direita da página do sítio eletrônico onde a notícia do caso está, consta um link para uma entrevista com o ministro Rogerio Schietti intitulada "Abusos intoleráveis". A conversa é excelente e de leitura obrigatória. Nela, afirma o julgador:

"Nossa interpretação [sobre a necessidade de comprovar a autorização do morador para que houvesse entrada de policiais na residência sem mandado judicial prévio no caso de tráfico de drogas], com base em farta doutrina, é que o flagrante delito que autoriza alguém a entrar no domicílio de outra pessoa é aquele com caráter de um dano iminente, de uma necessidade de urgente intervenção. Os exemplos são de alguém que está sendo vítima de agressões ou de uma tentativa de homicídio, sequestro, roubo, enfim, crimes que não podem aguardar um mandado judicial para serem cessados, porque, caso contrário, se se aguardasse, a vítima pereceria. No caso do tráfico de entorpecentes, a não ser que se comprove que o suspeito, ciente da ação policial, poderá desfazer-se da droga ou ocultá-la, nada justifica dispensar o mandado judicial. Se a polícia tem conhecimento, por observação, fotografias, testemunhos etc, que em determinada residência se realiza tráfico, deverá se dirigir ao juízo competente, por meio do Ministério Público, e solicitar um mandado de busca e apreensão" (grifos do autor) [3].

Em 9/5/21, o ministro Schietti sustenta que não é todo flagrante no crime de tráfico de entorpecente que autoriza a entrada sem mandado judicial prévio, mas apenas aquele com "caráter de um dano iminente". Em 16/6/21, o ministro Reynaldo dirige a compreensão da 5ª Turma para dizer que o estado de flagrância de crime de tráfico de entorpecente — por ser de caráter permanente —, quando associado à averiguação preliminar, autoriza sempre o ingresso sem mandado. Ao que parece, há uma divergência na jurisprudência do STJ.

É necessário destacar que o dissenso que se quer abordar é o mais perigoso: aquele que não é declarado frontalmente. A entrevista do ministro Schietti aborda precedentes da 6ª Turma — HC nº 598.051/SP (2/3/21) e AgRg no RHC nº 127.144/RJ (9/3/21) — que já foram referenciados em casos da 5ª Turma (HC nº 653.202/PE e HC nº 625.504/SP), fazendo com que, numa primeira leitura, creia-se haver harmonia. Não é esse o caso.

A moldura fática da notícia indicada ao começo é clara: policiais receberam uma denúncia anônima, foram ao local e lá, do lado de fora, foi possível sentir o cheiro de maconha e visualizar a existência da planta no interior do imóvel. Independentemente da autorização do morador [4], está autorizada a entrada dos agentes sem mandado nesse cenário?

A 5ª Turma diz que sim. Houve uma denúncia anônima, houve diligência preliminar, está autorizada a entrada sem mandado judicial. Por quê? Porque se trata de crime permanente (tráfico de entorpecentes), havendo permissão de ingresso imediato dos policiais para fazer cessar a situação de flagrância.

A aplicação do entendimento da 6ª Turma ao caso concreto diz que não. Houve uma denúncia anônima, houve diligência preliminar, mas a entrada sem mandado não está autorizada porque se trata de um crime cuja permanência pode aguardar um mandado judicial para ser cessada (não há risco de fuga do agente, perecimento da vítima ou da prova)[5]. Nas palavras do ministro Schietti, "se a polícia tem conhecimento, por observação, fotografias, testemunhos etc., que em determinada residência se realiza tráfico, deverá se dirigir ao juízo competente, por meio do Ministério Público, e solicitar um mandado de busca e apreensão (…) No caso do tráfico de entorpecentes, a não ser que se comprove que o suspeito, ciente da ação policial, poderá desfazer-se da droga ou ocultá-la, nada justifica dispensar o mandado judicial" [6]. Portanto, no caso, o ingresso foi inidôneo. Por quê? Porque, apesar do cheiro da droga e da existência do entorpecente no interior da casa, não havia urgência na cessação da situação de flagrante.

É de se perguntar por que o dissenso existe se a 5ª Turma aparenta concordar com o entendimento da 6ª Turma? Em nosso sentir, a razão fundamental é uma incompreensão da inteira extensão da essência da posição da 6ª Turma no tema.

A leitura atenta dos precedentes mais recentes da 5ª Turma mostra que são rechaçadas apenas as apreensões sem mandado que não foram precedidas de diligências preliminar por parte dos agentes policiais. Em geral, a urgência ou não na cessação da situação de flagrância não integra a fundamentação dos acórdãos. O problema é que vincular a legitimidade da entrada sem mandado apenas à (in)existência de diligências preliminares esvazia a evolução da jurisprudência do STJ.

A apreensão sem mandado judicial feita sem diligências policiais prévias é inidônea, isso é lição consolidada. A novidade surgiu quando, no julgamento do HC nº 598.051/SP, a 6ª Turma colocou parâmetros adicionais: 1) a existência de fundadas razões de que há uma situação de flagrante delito, aferíveis de modo objetivo e devidamente justificadas nos autos; 2) nas hipóteses de flagrante delito em crimes permanentes, o ingresso só será permitido em situação de urgência quando se concluir que, do atraso decorrente da obtenção do mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que há perigo à prova, à aplicação da lei penal ou à vítima; 3) para validar o ingresso, o consentimento do morador precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

Dizer que, na aferição da legalidade do ingresso policial sem mandado judicial, só interessa a análise da existência ou não de diligências prévias torna inócua a ratio da 6ª Turma, justamente aquela que deve prevalecer.

No âmago da decisão da 6ª Turma, há uma rara compreensão jurisdicional do real funcionamento das instituições que compõem o sistema penal. A criação de novos parâmetros se deu pela constatação de que as apreensões eram feitas sem mandado e as instâncias policiais lançavam justificativas formais a posteriori que não retratavam a realidade do que acontecera. Essa é uma compreensão que vale para rechaçar a confiabilidade das afirmações genéricas também elencadas depois da entrada de que "a apreensão foi precedida de diligência prévia". Na análise do ingresso policial em domicílio sem mandado, é muito mais seguro — pela natureza objetiva da questão — que se questione a existência ou não de uma situação de urgência na cessação do estado de flagrante no crime de tráfico de entorpecentes.

A posição da 6ª Turma também merece proteção por uma questão constitucional. Afastar a inviolabilidade do domicílio sem autorização judicial é uma situação excepcionalíssima. É consectário lógico desse caráter de exceção à regra a exigência de um standard objetivo de urgência que obrigue os agentes a entrar no domicílio sem mandado judicial por um dever do ofício. Mais uma vez, nas palavras do ministro Schietti:

"Tal compreensão não se traduz, obviamente, em cercear a necessária ação das forças de segurança pública no combate ao tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso policial no domicílio alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua cessação desautorize o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial — meio ordinário e seguro para o afastamento do direito à inviolabilidade da morada — legitimar a entrada em residência ou local de abrigo" (HC nº 580.051/SP, relator ministro Rogerio Schietti, julgamento em 2/3/21).

Não se trata de dizer que há um maior protagonismo da 6ª Turma em relação à 5ª na proteção das garantias que regem o processo penal. Isso seria um erro crasso e uma injustiça a um colegiado que não se curva ao populismo judicial que Ferrajoli criticou recentemente [7]. Todavia, especificamente na questão de apreensões feitas sem mandado judicial prévio diante da suspeita de tráfico de entorpecente, há uma divergência que precisa ser resolvida no sentido de fazer prevalecer a posição da 6ª Turma.

O papel do advogado criminal é inerentemente inconveniente, faz parte da luta contra o poder punitivo. Destacar inconsistências e expor problemas na prestação da jurisdição raramente é palatável, mas, muitas vezes, é necessário. Tomara que essas linhas sejam recebidas com a intenção com que foram escritas: a de ajudar na contenção do poder de punir que quer sempre se expandir, expondo um de seus muitos esconderijos.

 


[2] Idem.

[4] A (in)existência de autorização do morador não é o ponto dessa exposição, mas é preciso anotar que, no RHC nº 141.544/PR, há essa controvérsia posta.

[5] No caso confrontado, nunca se ventilou qualquer urgência na cessão do flagrante.

[6] Trecho retirado da referida entrevista com o ministro Rogerio Schietti, posição também indicada no HC nº 598.051/SP e no AgRg no RHC nº 127.144/RJ.

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