Opinião

Consequencialismo judicial no Direito Tributário: o que é isso?

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24 de junho de 2021, 9h13

1) Introdução
O consequencialismo é técnica de decisão. Toda decisão pressupõe escolha entre, pelo menos, duas possibilidades de ação. Essa escolha somente pode ser feita mediante a utilização de um critério. Não há outra forma de decidir.

No consequencialismo, o critério de decisão a ser levado em conta é representado pela projeção das consequências que as possibilidades decisórias em jogo trarão ou provocarão.

Em outras palavras: diante de uma ou mais possibilidades de ação, o decisor realizará prognóstico das consequências de cada uma delas. Em seguida, decidirá por aquela cujas consequências lhe interessem mais ou lhes sejam menos gravosas, descartando as demais.

Trata-se de técnica decisória típica da Economia, que toma suas decisões sempre projetando o futuro. O passado só interessa à Economia como fonte de experiência [1].

No âmbito da ética (Filosofia), a seu turno, dá-se o mesmo. Quando se está tratando das escolas que buscam responder sobre o que é o "bem" ou a "vida boa", costuma-se dividir as visões que pregam o consequencialismo daquelas que assim não consideram.

O utilitarismo (Bentham e Mill) prega que a boa ação é aquela que evita a dor, maximiza o prazer e traz felicidade para a maior quantidade de pessoas. Há outras escolas que pensam nesta mesma linha, ou seja, valorizam preponderantemente o critério da consequência: o epicurismo (busca do prazer), o hedonismo (busca do prazer mundano), o pragmatismo [2] (busca do que funciona para o alcance de determinado propósito preestabelecido), o egoísmo (busca do que é melhor para si), o comunitarismo (busca do que é melhor para todos).

O contrário também é possível, ou seja: há visões éticas segundo as quais a boa decisão não deve ser tomada, necessariamente, com base nas consequências projetadas.

Para elas, o bem, o êxito, o positivo deriva, essencialmente, das virtudes que as pessoas cultivam e que as conduzem a boas atitudes e, por conseguinte, às melhores decisões e aos melhores resultados.

O direito, por sua vez, também precisa lidar com o consequencialismo, afinal guiar a tomada de decisões por parte de cidadãos, de advogados, esteja-se, ou não, diante de situação litigiosa, bem como de juízes e demais autoridade públicas é, simplesmente, seu principal objetivo. A questão é: como os juristas devem compreender isso?

2) O consequencialismo jurídico
Antes de tratar do consequencialismo no âmbito do Direito, é preciso, contudo, deixar claro do que estamos falando quando utilizamos essa palavra tão gasta e esvaziada de sentido: Direito.

Forte nas lições de Paulo de Barros Carvalho e Tercio Sampaio Ferraz Jr. [3] [4], quando falamos de Direito, podemos nos referir, pelo menos, a três realidades possíveis: o ordenamento jurídico, o estudo e a construção acadêmica de referenciais teóricos, para alguns, de cunho científico, e o plano das decisões jurídicas, administrativas e judiciais, mas principalmente estas.

O aspecto do Direito que mais nos interessa para o debate do consequencialismo é o direito enquanto prática decisória, isto é, as decisões proferidas por juízes e tribunais no exercício da função jurisdicional, cuja finalidade é resolver as questões controvertidas que lhes são apresentadas. Porém, ao fazê-lo, deve utilizar os critérios de decisão trazidos pela lei, não pela vontade do julgador.

Em tais termos, ou seja, em razão dessa condicionante da decisão judicial, que não está presente na economia, na ética nem na política, é nesse âmbito que o consequencialismo menos deveria aparecer como critério decisório.

Em outras palavras, juízes não deveriam se interessar pelo consequencialismo, de modo que esse tema sequer deveria aparecer entre as preocupações dos juristas.

E por que não?

Porque o critério de decisão para a atuação dos juízes já está posto pela lei, que foi criada justamente para propiciar a prevalência da autoridade política e a previsibilidade das decisões de juízes e tribunais. É por isso que a segurança jurídica é o núcleo do Direito enquanto prática decisória, só podendo ceder para a equidade e a justiça, sendo justamente nestes que residem o coração dos juízes. É a morada dos magistrados. E, como dito acima, o legislador já fez seu cálculo consequencialista quando da atividade política envolvida em todo o processo legislativo.

Aos juízes, portanto, a princípio, não cabe esse juízo consequencialista, uma vez que a prognose, enquanto critério decisório, não é própria da atividade jurisdicional.

Não deve ser esquecido que, como frisamos acima, os juízos consequencialistas envolvem prognósticos, ou seja, projeções sobre o futuro, e juízes, em regra, não projetam o futuro, nós decidimos sobre o passado, sobre o que está posto, sobre o que aconteceu e foi objeto de prova, não sobre o que virá. Sobre o porvir, decidem os legisladores, os economistas e os formuladores de políticas públicas.

3) O consequencialismo judicial
A chave para se entender esta complexidade está na ideia de interpretação jurídica como processo de tradução. Toda vez que um juiz se deparar com um texto de lei, ele precisa interpretá-la, o que implica em um processo de tradução da linguagem do legislador para a linguagem do juiz.

Nesse movimento, ou seja, nesta travessia [5], o texto da norma se destaca da norma jurídica encontrada pelo magistrado, dando origem a duas realidades distintas [6].

Existem vários métodos para demonstrar e explicar este fenômeno [7]. Um deles é a semiótica, que nos diz que as palavras, os termos, as frases e os textos não são a realidade, eles representam a realidade. E como as palavras e os termos são falhos, ou seja, são vagos, ambíguos e/ou porosos, a tradução envolvida no processo de interpretação sempre está impregnada pelo universo do intérprete, ou seja, seus valores, interesses e referenciais.

Ao duplicar a realidade, a partir do seu próprio universo, os juízes, muitas vezes sem saber ou se dar conta, estão legislando. E, ao legislar, o que fazem?

Acabam realizando juízos consequencialistas, ou seja, utiliza-se o critério consequencialista para a tomada de decisão. Como será visto adiante, às vezes, essa atitude é levada a termo com desconsideração do critério legal, outras vezes não.

E assim, quanto mais vagas, ambíguas e porosas forem as palavras dos textos de lei, mais amplos podem ser esses juízos e, portanto, o consequencialismo judicial: vou decidir assim, porque isso conduzirá a melhores consequências.

Neil McCormick traz uma distinção que nos interessa muito nesse momento [8]. Para ele, é possível se distinguir entre o consequencialismo externo e o interno. No consequencialismo interno, as consequências da decisão judicial estão previstas no próprio texto de lei ou são inferidas a partir dele. Portanto, não se constituem em prognósticos dos juízes, mas do próprio legislador. Nessa hipótese, não há subversão do sistema.

O maior exemplo desse tipo de consequencialismo está no artigo 927, §3º, do CPC, que trata da modulação dos efeitos de decisão judicial vinculante: "Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica". Aqui o consequencialismo é inerente à regra posta pelo texto legal. Aqui também pode ser citado o artigo 27 da Lei nº 9.898/99.

A seu turno, no consequencialismo externo, as consequências estão fora do texto da lei e não podem, portanto, ser inferidas diretamente dele ou do ordenamento jurídico. Nesse caso, o consequencialismo seria criação do magistrado, que acaba por, de forma voluntarista, criando critério de decisão a lattere da lei.

Em tais termos, pode-se definir consequencialismo judicial externo da seguinte forma: tipo de argumento que fornece razões para a tomada de uma decisão jurídica específica a partir da prognose e consideração dos possíveis efeitos dessa decisão [9].

Quem se utiliza desse tipo de consequencialismo, basicamente, acredita que as decisões judiciais, ao resolverem as questões controvertidas, não devem se ater a construir uma narrativa e qualificá-la juridicamente com base no texto da lei aplicável, mas devem também projetar suas consequências futuras.

Para tanto, precisa-se construir outra narrativa, alusiva a fatos sociais não juridicizados (ampliando o contexto da demanda), porque é a partir deles que as consequências são construídas e é neles que elas se projetam. Por exemplo, quando se considera possíveis efeitos negativos da perda de arrecadação e se utiliza desse critério para julgar improcedente demanda na qual o contribuinte alega, e demonstra, a inconstitucionalidade da exação.

Cria-se, assim, sem base em texto de lei, nova norma que irá decidir o caso concreto, de acordo com a ideia de se evitar ou se buscar determinada consequência.

Acredita-se que, assim agindo, será sempre tomada a melhor decisão, ou seja, aquela que evita certas consequências, tidas como negativas, e promove outras, tidas como positivas.

Luis Fernando Schuartz, no artigo "Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem", propõe excelente classificação para os tipos de consequencialismo criados pelos juízes.

Segundo o referido autor, diz-se que o consequencialismo é máximo, ou em sentido forte, quando: "o critério de decisão é a consequência vislumbrada pelo julgador e somente outra consequência diferente aparece como critério concorrente". Aqui, deve-se frisar que essa consequência vislumbrada está apenas na mente do julgador, daí o voluntarismo.

São exemplos típicos os argumentos utilizados pelo STF quando concluiu pela não incidência de contribuição previdenciária sobre salário maternidade (RE 576.967), sob o fundamento de que esse tipo de exação degradaria o mercado de trabalho da mulher.

Da mesma forma, ocorreu quando o STF excluiu o ICMS da base de cálculo da contribuição para o PIS/Cofins, sob a alegação de que "não se pode faturar tributo", ignorando a legislação de regência, a praticabilidade do Direito Tributário e décadas de jurisprudência, inclusive súmulas, acerca do tema (RE 574.706).

Esse fenômeno também foi observado quando o STF concluiu ser indevida a presunção do valor da base de cálculo da operação futura do substituído (substituição para frente ou progressiva), no caso do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a venda de combustíveis (RE 593.849), sob o fundamento de que não se pode tributar a partir de presunções sobre o valor real da base de cálculo.

Na aludida classificação do saudoso professor Luis Fernando Schuartz, o consequencialismo é moderado ou, nas palavras dele, é residual, quando o juiz não chega a substituir a norma jurídica como critério de decisão. Nesse caso, o juiz utiliza critério consequencialista quando é a própria norma jurídica que deixa duas ou mais possibilidades de decisão igualmente viáveis. Nessa situação, o julgador apela para as consequências e opta por uma dessas soluções legais a partir do critério de projeção futura. Essa situação é limítrofe, e rara. Ela só ocorre realmente quando a opção dada pelo legislador é inconteste ou expressa.

No Direito Tributário, é exemplar o caso do Imposto sobre Propriedades de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações e aeronaves. A Constituição, ao estabelecer este imposto e fixar a competência estadual (artigo 155, III), não deixa claro o critério material da regra-matriz, permitindo ao juiz, em caso de controvérsia, a opção. Foi exatamente o que o STF fez ao julgar o RE 134.509, quando, com sua decisão, buscou evitar a guerra fiscal. Para o tribunal: 1) navios e aeronaves nunca foram objeto de tributação sobre o patrimônio, de modo que estar-se-á inovando o sistema tributário nacional; 2) navios e aeronaves não possuem qualquer vinculação com Estados ou municípios, porque são fiscalizados pela União; e 3) admitir esta tributação, certamente vai gerar guerra fiscal.

Por fim, há o consequencialismo em sentido fraco. Nesse caso, o critério de decisão é a norma jurídica, sendo que a argumentação pode ser apenas complementada a partir da projeção das consequências.

Dessa forma, nessa hipótese, não se tem propriamente o consequencialismo judicial, mas a utilização das possíveis consequências da decisão apenas como reforço de argumentação.

Um bom exemplo dessa situação é o caso do Tema 325 do STF (RE 603.624), quando se concluiu ser devida a incidência de contribuição previdenciária sobre a folha de salário para o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), uma vez que o rol de bases materiais previsto no artigo 149, §2º, III, da CR/88 é apenas exemplificativo.

No caso, o abalo financeiro para os cofres públicos, caso acolhida a tese dos contribuintes, foi utilizado apenas como reforço de argumentação, uma vez que a questão controvertida já seria suficientemente decidida pelo argumento acima mencionado, ou seja, com base no critério legal.

4) Conclusões

a) O consequencialismo é técnica que adota como critério de decisão o prognóstico acerca das consequências para cada uma das possibilidades que se apresentam;

b) O decisor escolhe a opção cujas consequências projetadas estejam de acordo com a finalidade ou o objetivo da sua decisão;

c) No Direito, o critério de decisão é posto pelo texto da lei e ele deve conduzir ao cumprimento dos valores, princípios, objetivos e regras previstos na Constituição;

d) Os juízes, em regra, diferentemente, trabalham a partir de critérios legais, postos pelo legislador, e se debruçam sobre o passado;

e) Dessa forma, o consequencialismo é vetado aos juízes, salvo quando do tipo interno, ou em situações específicas; 

f) Porém, ao interpretar os textos das leis, os juízes realizam uma atividade de tradução, criando novas normas jurídicas e as acrescentando ao ordenamento; 

g) Nessa atividade, se não observarem que as consequências da lei já foram consideradas pelo legislador, é inevitável que elaborem juízos consequencialistas, o chamado consequencialismo externo;

h) Se isso ocorrer, é possível que o juiz esteja substituindo o critério legal pelo critério consequencialista, o que, em regra, não é possível, sob pena de subversão do sistema jurídico-político;

i) Dessa forma, o consequencialismo externo somente é possível, estritamente, em três situações: 1) o próprio texto legal deixe margem à discricionariedade judicial; 2) a aplicação do critério legal conduza, de forma evidente, à afronta a regras ou princípios constitucionais; 3) nos casos em que cabível a aplicação do juízo de equidade, que, por ser complexo, é tema para outro artigo.

 


[1] Todos os modelos decisórios, preponderantemente matemáticos, operam com essa projeção: a "utilidade esperada", de Blaise Pascal, o "cálculo infinitesimal", de Leibniz e Newton, o "desvio padrão", de Abraham de Moivre, a "utilidade marginal descendente", de Daniel Bernoulli, o "teorema de Bayes", de Thomas Bayes, o "teorema minimax", de John Von Neumann). Assim também trabalham mesmo as teorias mais sofisticadas que, com o desenvolvimento da economia enquanto ciência, passaram a combinar certa doutrina, como a moral ou a psicologia, com a matemática: a "utilidade marginal", o "equilíbrio entre oferta e demanda" e a "teoria dos preços", de Carl Menger e Alfred Marshall, a "teoria dos jogos", de John Von Neumann, o "equilíbrio de Pareto", de Vilfredo Pareto, a "eficiência de Kaldor-Hicks", de Nicholas Kaldor e John Hicks, o "equilíbrio de Nash", de John Nash, o "Teorema de Coase", de Ronald Coase, a "teoria das escolhas racionais", de Cooter e Ulen e as teorias comportamentais, fundadas em uma heurística de estimativas e vieses psicológicos.

[2] Sobre o conceito de pragmatismo jurídico, consultar: STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.

 

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2015.

[5] BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define um julgamento e quais o limites dos juízes. São Paulo: Noeses, 2017.

[6] Acerca da diferença entre texto e norma, sob a perspectiva do direito alemão, consultar: STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017.

[7] Para visão analítica do consequencialismo, a partir da estrutura da norma jurídica, consultar: MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Argumentação Consequencialista na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Sistema Tributário Brasileiro e Crise Atual. VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. São Paulo: Noeses, 2009.

[8] Retórica e o estado de direito: uma teoria da argumentação jurídica. Tradução de Conrado Hubner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

[9] A regra constante do artigo 20 da LINDB não pode ser interpretada, portanto, como um cheque em branco para que juízes substituam os critérios legais de decisão por critérios consequencialistas. Ela deve ser interpretada de forma justamente inversa, ou seja, como regra de autocontenção com relação ao consequencialismo externo: "Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

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