Interesse público

Dispute Boards: na nova Lei de Licitações e em leis municipais

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

24 de junho de 2021, 8h43

Spacca
Em coluna anterior, publicada antes do advento da Lei 14.133/21, analisamos o então Projeto de Lei e as propostas nele contidas quanto ao uso de meios extrajudiciais de soluções de conflitos.

À época dissemos que "o entendimento de que o interesse público há de ser protegido por meio de uma postura agressiva, litigiosa, por vezes unilateral, pautada pelo preconceito de que a convergência com o privado revela incúria com o trato da coisa pública, é tradicionalmente adotado pela Administração Pública no bojo dos seus conflitos. Mas há algum tempo, reconhece-se que a salvaguarda do interesse público não colide com o diálogo e a construção de pontes entre privados e entidades integrantes do aparato estatal".

Os contratos de que são partes entidades da administração pública refletem o desejo/necessidade de órgãos e entes públicos cuja satisfação depende da atuação privada. Os operadores econômicos por sua vez reconhecem a relevância do mercado público. A capacidade de compras estatal não pode ser desprezada. Privar-se de participar do ambiente estatal de contratações, focando apenas em vínculos privados, não apenas limita o horizonte de atuação, como por vezes é inviável, dependendo do objeto social a que se destina a empresa.

Portanto, há uma atração recíproca que impulsiona os dois polos para a celebração do ajuste. Se por um lado, as entidades estatais aspiram encontrar um particular que reúna as condições necessárias para prover suas demandas, mola propulsora de todo o movimento público, o operador econômico reconhece as potencialidades da contratação pública.

Mas, claro, que o casamento pode desandar. Quanto mais extenso o vínculo, mais prováveis as desarmonias. Daí que a extinção prematura pode ocorrer seja por decisão unilateral da administração; seja porque assim deseja o privado, sobretudo considerando que a Lei 14.133/21 afirma existir um direito ao divórcio diante de certas posturas administrativas; seja por consenso. Romper de forma antecipada pode ser dolorido, mesmo quando a decisão parte da administração pública, quando identifica falhas graves na atuação privada ou quando o particular se depara com letargias públicas que embasam seu direito de desvincular-se. Não se casa objetivando o fim da união, em especial nos casos em que o escopo contratual ainda não foi alcançado, existindo remanescente de obra, produto ou serviço. Mesmo quando o privado postula a extinção, é provável (ou certo) que sua expectativa negocial não terá sido atingida.

E não há cláusula exorbitante que dê jeito quando as partes estão em conflito. Não há força estatal capaz de impor a pacificação. O acalmar dos ânimos também não se garante com a decisão proferida por terceiros.

Como já dissemos "ceder a terceiro estranho à lide a capacidade de resolver um problema que elas próprias poderiam solucionar, houvesse sobretudo menos resistência a uma cultura extrajudicial de resolução de controvérsias. Neste diapasão, além de desprestigiarem a si próprias como hábeis a perseguir um desfecho, inclusive porque são as que mais condições e conhecimento reúnem sobre os episódios, as partes enaltecem a voz de um personagem alheio às nuances e que, por estar até então à margem dos eventos, tem o desafio de primeiro tentar assimilar o ocorrido, para só depois, tentar solucionar a lide. E, ainda, a solução apontada pelo terceiro pode não contentar nenhuma das partes e pode inclusive ser totalmente alheia às necessidades da realidade fática, máxime considerando a complexidade dos contratos de concessão administrativa — comuns ou especiais. Logo, quando as partes em conflito se assenhoram da prerrogativa de edificar elas próprias a solução, a partir da convergência e do entendimento mútuo, ainda que com a relevante contribuição de um terceiro a quem cabe ajudar a pavimentar o caminho, mas sem ditá-lo, opera-se uma significativa alteração no modus operandi, de forma a abrir mão de uma solução que poderia ser a melhor para ambas as partes, nos termos da teoria do ganha-ganha da autocomposição dos conflitos".1

Capturando o que já preconizam as Leis 8987/95 e a Lei 11.079/04 quanto à utilização de mecanismos privados de resolução de conflitos e a Lei 13.140/15, que dispõe sobre a autocomposição no âmbito do Poder Público, e possibilita a criação de câmaras de resolução administrativa de controvérsias, a nova Lei faz referência à arbitragem, mediação, conciliação e aos comitês de resolução de disputas. Não são os únicos mecanismos de que se pode lançar mão, mas apenas os que a lei faz alusão expressa. Logo, para além do que o art. 151 da nova lei de licitações e contratos já salienta, os contratos podem prever outros mecanismos.

Os “dispute boards”, denominação aqui empregada com vistas a englobar possíveis oscilações terminológicas, são um potencial método de solução de conflitos cuja ideia central está na existência de comitês encarregados de examinar problemas nascidos da relação contratual. Composição, mandatos, competências, natureza vinculante ou não e regras procedimentais não constam da Lei e nem deveriam constar. Trata-se de informação que pode oscilar segundo a modelagem contratual, sem embargo de regras legais ou presentes em atos normativos a serem editadas pelos entes federados.

Os “dispute boards” buscam evitar o litígio ou abordá-lo concomitantemente à execução contratual. Podem ser constituídos com formatos e regras distintas, mas se caracterizam por serem conselhos/comitês cujos membros são indicados pelas partes. A promessa de uma possível solução mais rápida em comparação com outros métodos pode justificar eventual preferência por eles. Mas é preciso esclarecer que nem sempre será vinculante a decisão, podendo assumir natureza de recomendação, perfil inapto a conferir a agilidade na dissolução de problemas. Não se defende a afastabilidade do acesso ao Judiciário ou a aproximação com a sentença arbitral. Ao menos não no atual estágio de tratamento legislativo da matéria.

Até o advento da Lei 14.133/21, não havia lei nacional a referenciá-los, mas já havia leis municipais.

No âmbito do Município de São Paulo o tema foi tratado na Lei Municipal nº 16.873/18, que regulamenta a instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados e celebrados pela municipalidade. Belo Horizonte posteriormente editou a Lei nº 11.241/20, com o escopo de disciplinar “a utilização de Comitê de Prevenção e Solução de Disputas para prevenir e para solucionar conflito relativo a direito patrimonial presente em contrato administrativo de execução continuada”.

O fato de a Lei 8666/93 não tratar do assunto não representou óbice à edição das leis municipais, especialmente porque a competência geral da União para produzir normas gerais, não impede a produção legislativa pelos entes subnacionais.

As Leis Municipais preveem competência dos comitês para apreciar conflitos relativos a direito patrimonial.2 Questões contratuais como reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, pedidos de indenização, reajustes, pedidos de correção monetária em razão de atraso no pagamento pela Administração. A parte sancionatória não é referenciada, embora tanto se tenha evoluído, inclusive do ponto de vista legislativo, com a contratualização das sanções. Nem se há dizer que o interesse público demanda postura pautada por movimentos punitivos, porque já avançamos muito nesta matéria e em situações de maior gravidade (corrupção e improbidade) a legislação brasileira reconhece a afastabilidade da sanção, exatamente porque reconhece que a reprimenda não se traduz sempre no remédio mais adequado à tutela do interesse público. Perdeu-se a oportunidade de expressamente contemplar tal possibilidade. 3

Quanto mais ampla a possibilidade de solução rápida dos conflitos, e sem necessariamente o recurso a terceiros, melhor para que o contrato possa avançar e cumprir seu desiderato.

Assim, igualmente devem ser evitadas restrições legais para uso desse instrumento em determinados contratos. Como já afirmado, contratos expostos ao tempo tendem a gerar mais embates, mas não se pode ignorar também que essas disputas podem surgir nos vínculos contratuais de curta duração. Por isso, a previsão contida na Lei do Município de Belo Horizonte de uso dos “dispute boards” apenas nos contratos de natureza continuada soa inadequada.

Há ainda espaço para a consolidação do tema. O futuro há de conferir maior prestígio ao uso do instituto. Mais detalhes sobre a avaliação das leis municipais constam de outro artigo, produzido por mim e pelo Professor Felipe Alexandre Mucci Daniel, publicado em Portugal, na Revista de Contratos Públicos.4


1 FORTINI, Cristiana. Solução extrajudicial de conflitos com a Administração Pública: o hoje e o porvir. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-04/interesse-publico-solucao-extrajudicial-conflitos-administracao-publica. Consulta em: 10/03/2021.

2 A Lei do Município de SP faz alusão a “direitos patrimoniais disponíveis” na toada da Lei de Arbitragem. A Lei do Município de Belo Horizonte não faz distinção entre direitos patrimoniais disponíveis ou indisponíveis.

3 https://www.conjur.com.br/2021-jan-14/interesse-publico-consideracoes-pl-425320-futura-lei-licitacoes

4 https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/2021/06/RCP-26-indice.pdf

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Especialista (pós graduação) em mediação, conciliação e arbitragem. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

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